Iniciado na década de 60, o movimento de aculturação da filosofia oriental e, mais especificamente, do sistema médico chinês, vem crescendo e se modificando ao longo do tempo.
O Ocidente presenciou a chegada dos recursos milenares como contestação social e cultura alternativa, passando pelo processo de mercantilização, instituição de polos educacionais, tradução de termos e ocidentalização de técnicas, até chegar aos dias atuais, com debates sobre eficácia, validação científica, regulamentação profissional e com a instituição de uma nova área de conhecimento: a dos saberes tradicionais.
Nesse processo, podemos por assim dizer, que as medicinas tradicionais importadas do Oriente ganharam algumas denominações conforme sua base se estabelecia: medicina alternativa, medicina complementar e, mais atualmente, com uma maior aceitação pela sociedade, medicina integrativa.
De início, o termo “medicina alternativa” cumpria seu papel, uma vez que trilhava junto ao movimento histórico-social que coincidiu com sua chegada ao Ocidente. Porém, com o declínio desse movimento e a noção de que não poderíamos fazer a opção entre um ou outro sistema médico, o termo foi substituído por “medicina complementar”.
Nesse momento, as medicinas tradicionais ganharam força e um espaço maior na sociedade, com o anseio das pessoas que procuravam por melhoria na qualidade de vida e práticas naturais para se manterem saudáveis, formando a chamada geração-saúde.
Mas, com a ampliação dos estudos e disseminação da filosofia oriental, principalmente da medicina chinesa, o termo “complementar” também foi abandonado.
A ideia de que algum dos sistemas médicos, convencional ou tradicional, pudesse ser complementado sugeria que eles fossem incompletos e careciam de suporte. No entanto, já podemos dizer que há consenso de que cada sistema médico possui meios diagnósticos, terminologia, princípios de tratamentos e raciocínio clínico próprios, assim como suas visões sobre saúde e doença também são diferentes, não sendo possível um substituir ou complementar o outro.
Podemos utilizar um fundamento da filosofia oriental e definir que as medicinas convencional e tradicional são como yin e yang: opostas e interdependentes, porém partes de um mesmo todo.
Hoje, caminhamos para um sistema de saúde multiprofissional e multidisciplinar que acena para a possibilidade de introdução das práticas tradicionais como método de preservação, correção e modificação de estados físicos e mentais do indivíduo: a medicina integrativa.
Tal princípio aproxima-se da filosofia médica chinesa que concebe o indivíduo como um sistema único e indissociável, não podendo ser tratada uma só parte, sem que se considere o todo.
Práticas integrativas no SUS
No Brasil, já é possível contar com a oferta dessas práticas integrativas de saúde no SUS (Sistema Único de Saúde), de forma pública, gratuita e com abrangência em todo o território nacional.
A Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares foi oficializada em 2006 e, segundo o site do Ministério da Saúde, existem no Brasil 9.350 estabelecimentos disponíveis para oferta dessas práticas, sendo 8.359 de atenção básica.
Atualmente, as PICs abrangem 29 práticas: apiterapia, aromaterapia, arteterapia, ayurveda, biodança, bioenergética, constelação familiar, cromoterapia, dança circular, geoterapia, hipnoterapia, homeopatia, imposição de mãos, medicina antroposófica/antroposofia aplicada à saúde, medicina tradicional chinesa/acupuntura, meditação, musicoterapia, naturopatia, osteopatia, ozonioterapia, plantas medicinais/fitoterapia, quiropraxia, reflexologia, reiki, shantala, terapia comunitária integrativa, terapia de florais, termalismo social/crenoterapia e yoga.
As UBSs (Unidades Básicas de Saúde) são responsáveis por cerca de dois milhões de atendimentos (individuais e coletivos), sendo um milhão em medicina chinesa.
A atenção primária à saúde (APS) é o primeiro nível de atenção em saúde e caracteriza-se por um conjunto de ações, no âmbito individual e coletivo, que abrange a promoção e a proteção da saúde, a prevenção de agravos, o diagnóstico, o tratamento, a reabilitação, a redução de danos e a manutenção da saúde com o objetivo de desenvolver uma atenção integral que impacte positivamente na situação de saúde das coletividades.
Trata-se da principal porta de entrada do SUS e do centro de comunicação com toda a rede de atenção do sistema, devendo orientar-se pelos princípios da universalidade, da acessibilidade, da continuidade do cuidado, da integralidade da atenção, da responsabilização, da humanização e da equidade. Isso significa dizer que a APS funciona como um filtro capaz de organizar o fluxo dos serviços nas redes de saúde, dos mais simples aos mais complexos.
No Brasil, a atenção primária é desenvolvida com o mais alto grau de descentralização e capilaridade, ocorrendo no local mais próximo da vida das pessoas. Há diversas estratégias governamentais relacionadas, sendo uma delas a Estratégia de Saúde da Família (ESF), que leva serviços multidisciplinares às comunidades por meio das Unidades de Saúde da Família (USF), por exemplo.
Necessidade de formação e regulamentação da atividade profissional
Essa explanação coloca-nos num ponto crucial da reflexão: temos iniciado um movimento de colaboração entre dois sistemas de saúde, opostos e interdependentes, inseridos num contexto de saúde pública de atendimento básico, com elevada aceitação e procura e com forte potencial para promover campanhas educativas em relação aos meios de manutenção e preservação da saúde e identificação e intervenção epidemiológicas precoces, porém, não temos definida e regulamentada a profissão para a realização dessas práticas. Não temos regularizadas e normatizadas as terminologias e os procedimentos, nem quais instituições de ensino estão capacitadas e qual o mínimo de grade curricular exigido para formar um profissional de medicina chinesa, por exemplo, de maneira a garantir à população um atendimento com segurança.
Atualmente, somente os profissionais da saúde podem exercer as práticas integrativas e complementares de forma legalizada. No entanto, ser profissional da saúde e estar juridicamente amparado pelo conselho de classe não garante um bom profissional de práticas integrativas, uma vez que as instituições formadoras desses profissionais não são padronizadas e nem fiscalizadas. Não está estabelecido o que é necessário para ser um médico de medicina tradicional chinesa, por exemplo.
Nichos de interesse em medicina chinesa: pediatria integrativa
Junto ao movimento da medicina integrativa, que tem como foco o indivíduo e não a doença, que prioriza formas humanizadas de atendimento e que dá espaço mais a escuta do que a fala, surgiram os nichos de interesse dentro da medicina chinesa: geriatria, ginecologia, esportes, neurologia, ortopedia, pediatria, etc.
Considerando que as práticas tradicionais, integrativas e complementares, e principalmente a medicina chinesa, são sistemas baseados na visão holística, “que considera o todo não somente como uma junção de suas partes; que busca entender os fenômenos por completo, inteiramente” (Dicionário Online de Português – www.dicio.com.br), não seria coerente serem divididas em especialidades. No entanto, com a evolução e expansão dessas práticas e a necessidade de aprofundamento das teorias para adaptação à demanda e ao contexto atual do cenário da saúde, houve necessidade de compartimentalizar e dividir os profissionais por afinidade de área de atuação.
Voltando ao cenário da oferta das práticas integrativas no sistema público de saúde na atenção básica, vou fazer um recorte com foco na medicina chinesa em pediatria.
Dentre as várias especialidades, considero a pediatria como aquela que abriga dentro de si todas as demais, além de contar com um universo diferente para cada fase da infância.
Numa breve pesquisa sobre perfil epidemiológico pediátrico no Brasil, destaquei 12 artigos, publicados entre 2000 e 2019, sobre estudos realizados em hospitais públicos, cujos resultados foram muito similares: prevalência de crianças do sexo masculino, prevalência de crianças com até três anos de idade e lactentes, tempo médio de internação de sete dias, índice de 2% de óbitos entre os internados, questões socioeconômicas relacionadas e principais motivos da internação, por ordem de maior porcentagem: afecções respiratórias (bronquite, pneumonia, asma), gastroenterites, acidentes (queda, queimadura), trauma/violência, desnutrição, prematuridade e sepse.
Considerando apenas os dois primeiros tópicos, em todas as literaturas traduzidas para o português, inglês ou espanhol, podemos encontrar, dentro do sistema da medicina chinesa, menção de diagnóstico, prognóstico e princípio de tratamentos para todas as situações mencionadas, guardadas as devidas proporções quanto ao grau de severidade da doença.
Aplicação dos cinco pilares da medicina chinesa na infância
A medicina chinesa se alicerça em cinco pilares que podem ser utilizados como prevenção ou tratamento de doenças, sendo todos eles amplamente aplicáveis à pediatria.
Qi gong (chi kung) – regula o sistema respiratório e a qualidade com que o ar atua no organismo (o ar é uma das energias vitais).
Dietoterapia – regula o sistema digestório e pode usar a alimentação como forma de manutenção da saúde (energia vital) ou como forma de tratamento.
Tuiná (massagem chinesa) – atua mantendo o equilíbrio dos sistemas do organismo e, em caso de doença, movimentando o Qi desordenado para restabelecer o equilíbrio.
Fitoterapia – pode atuar como alimento ou, em caso de doença, utilizar ervas, plantas, raízes, etc. como medicação.
Acupuntura – através da intervenção por estímulos, movimenta o Qi e Xue para reorganizar e restabelecer o equilíbrio do organismo.
Em todas as situações, a medicina chinesa age de forma a incentivar o organismo a fazer a recuperação em busca do reequilíbrio saudável, seja para cura total ou para melhoria da qualidade de vida, além de, nos casos em que é necessário, utilizar materiais de baixo custo ou, em muitas condições, somente as terapias manuais.
Ainda não são suficientes os estudos para mensurar o quanto a medicina chinesa pode contribuir com o sistema de saúde, agindo de forma a introduzir hábitos saudáveis e naturais de respiração, alimentação e autocuidado.
Algumas de suas práticas podem ser implementadas na rotina das famílias, e em especial das crianças, como sequências de Qi gong, massagens e até mesmo auriculoterapia, de maneira específica para aumento de imunidade ou em pequenas intercorrências peculiares da infância, o que contribuiria para reduzir a evolução de doenças comuns a quadros de urgência/internação e o uso de medicação, assim como seus desdobramentos, tais como faltas escolares, restrição de socialização, falta dos responsáveis ao trabalho, sobrecarga do sistema de saúde e custo de manutenção de urgências e internações.
E voltando novamente ao ponto crucial, sendo a pediatria uma especialidade com diversos níveis de particularidades, tanto em relação ao crescimento quanto ao desenvolvimento físico, mental, pedagógico e social da criança e considerando-se o movimento atual em busca da saúde integral, humanizada e multidisciplinar e o cenário das instituições educacionais formadoras de profissionais da medicina chinesa, a questão passa a ser como expandir a aplicação dessas práticas sem profissionais qualificadamente adequados para sustentar a demanda pediátrica e sem que haja infiltração de práticas de senso comum comprovadamente sem eficácia e sem segurança, uma vez que ainda carregamos o estigma histórico em que as terapias holísticas ganharam um significado místico que autoriza a prática do “vale-tudo”. O que seria correr o risco de caminhar na contramão do que se pretende aqui: promover práticas integrativas em saúde desde a infância.
Marina Martinho – Pedagoga e professora de Medicina Chinesa, Acupuntura e Práticas Integrativas com ênfase em Pediatria Integrativa.
Fontes
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