O corpo humano é um aparelho sofisticado, dotado de inúmeros recursos e com uma inteligência inerente em seu mecanismo. Mas, ao longo da vida, vamos perdendo muito contato com o nosso próprio corpo. Essa sensação de desconexão é evidenciada quando executamos um movimento ao qual não estamos acostumados ou com uma mudança de hábito. Por exemplo: ser destro e por algum motivo se ver obrigado a realizar um movimento com a mão esquerda. Mudar os hábitos alimentares e só perceber que está engordando quando as roupas começam a ficar muito apertadas.
Contudo, existe uma alienação ainda maior sobre nosso próprio corpo. Sobre aquilo que está dentro, como o coração e os diversos órgãos e sistemas que trabalham incessantemente. Lembramos da existência desses órgãos quando surge uma dor ou um desconforto. Uma dor no estômago, um desconforto intestinal, essas e muitas outras sensações geralmente só são registradas quando não estamos bem. Afora isso, em condições mínimas aceitáveis, nossos órgãos continuam trabalhando normalmente, mesmo sem nossa consciência.
Se adentrarmos mais a fundo, quem se lembra de suas células? Falamos “tenho uma dor de cabeça”, “machuquei a perna”, “estou com uma infecção na bexiga”. Até que às vezes reconhecemos essa posse: “minha cabeça dói”, “machuquei minha perna”. Mas nossa percepção não chega tão longe no nível celular. Longe pela falta de contato. E na realidade é dentro, no micro, no universo celular que a vida acontece. E, a partir daí, ela se amplia e se torna mais perceptível aos nossos órgãos dos sentidos.
Vida que se amplia
A célula é a menor estrutura do corpo humano. Células são elementos estruturais e funcionais com diversas propriedades. Estima-se que o corpo humano é constituído por cerca de 10 trilhões de células. As propriedades da célula são: irritabilidade (capacidade de reação perante um estímulo), condutibilidade (propagação de um estímulo de uma parte a outra da célula), absorção (captação seletiva de substâncias), respiração (processo pelo qual a célula obtém energia pela oxidação de substâncias nutritivas), excreção (eliminação de substâncias que resultam de determinados processos), crescimento (capacidade de aumentar seu protoplasma através da síntese de proteínas), reprodução (multiplicação celular) e secreção (produção de substâncias que serão utilizadas por outras células). Todas essas propriedades resultam do constante trabalho intracelular e das atividades extracelulares.
Reagir a um estímulo, absorver, respirar, excretar, em grande escala todas essas funções também fazem parte da vida diária de todo ser humano. Ingerimos alimentos que serão processados para que os nutrientes sejam levados nas devidas proporções a todas as células do corpo. Os pulmões captam o oxigênio que é distribuído pela corrente sanguínea e que, por meio de um processo bioquímico, permite que a célula produza a energia necessária para seu próprio metabolismo, para manter todas as funções vitais do organismo e para que possamos realizar inúmeras atividades. As células comunicam-se, interagem e trocam informações. Assim também o fazemos, e a partir dessa interação, como as células, criamos as condições para a multiplicação e perpetuação da espécie.
Trama de tecidos
O corpo humano é constituído de quatro tecidos fundamentais. Tecidos são conjuntos de células que possuem características e funções específicas. Células formam tecidos, estes formam órgãos, os quais formam sistemas. Esses quatro tecidos são: tecido epitelial, tecido conjuntivo, tecido muscular e tecido nervoso.
O tecido epitelial é constituído pela pele, o maior órgão do corpo humano, pelas mucosas (membranas que revestem tubos e cavidades do corpo) e pelas glândulas. O tecido muscular forma o músculo esquelético, o músculo liso e o músculo cardíaco. As células do tecido muscular são conhecidas como fibras musculares. Os músculos esqueléticos constituem a musculatura responsável pela estabilidade e movimento do corpo. São músculos voluntários, ou seja, cuja atividade depende da nossa vontade. Os músculos lisos, presentes nos órgãos internos, são de contração involuntária. O músculo cardíaco constitui o coração e possui características similares às do músculo esquelético,
porém com contração involuntária.
As células do tecido nervoso, chamadas de neurônios, encontram-se no crânio, compondo o sistema nervoso central. E, a partir da medula espinal, alojada na coluna vertebral, o sistema nervoso periférico faz a distribuição por todo o corpo de uma rede de neurônios que recebem e transmitem impulsos ao sistema nervoso central, possibilitando a interpretação e resposta frente a diferentes estímulos. O tecido conjuntivo
constitui cerca de 70% dos tecidos humanos, dando origem a cartilagens, ossos, sangue e tecido adiposo (células que acumulam gordura), além de se distribuir de diversas formas pelo corpo, proporcionando sustentação, preenchimento e proteção a órgãos, músculos, nervos e vasos.
A fáscia e suas interações
O corpo humano é constituído por mais de 600 músculos esqueléticos (tecido muscular). Embora eles sejam de contração voluntária, é impossível executar um movimento sem um estímulo nervoso. Pensamos em realizar uma ação e o córtex motor manda o comando através de um neurônio (tecido nervoso). Todas as milhares de fibras musculares, assim como todas as células do corpo, precisam de nutrientes e oxigênio, que são transportados pela corrente sanguínea.
Cada uma dessas fibras é revestida por uma membrana delicada de tecido conjuntivo. Essas fibras formam feixes maiores, que são revestidos por outra membrana e que, por fim, dão forma a um músculo específico, também recoberto por uma membrana de tecido conjuntivo. Essas membranas juntam-se e condensam-se em suas extremidades, formando o tendão que conecta o músculo ao osso.
O tecido conjuntivo também reveste os órgãos internos. Como exemplos, temos a membrana que recobre o coração, conhecida como pericárdio, as pleuras que revestem os pulmões e as meninges que protegem o encéfalo e a medula espinal.
As conexões entre essas camadas de tecido conjuntivo formam uma complexa rede de revestimento, proteção e nutrição, não só para os músculos, mas para todos os órgãos e estruturas do corpo. Essa intrincada rede estrutural trabalha como uma unidade funcional, conhecida como fáscia.
Nas últimas décadas, a fáscia vem sendo profundamente estudada por profissionais de terapias manuais e de áreas relacionadas ao movimento humano (especialmente pelos osteopatas). Uma das principais constatações foi compreender o papel integrativo da fáscia. Anteriormente, ela era considerada apenas como um invólucro de revestimento e proteção dos músculos. Mas, atualmente, um dos termos mais empregados é o de miofáscia (“mio” significa músculo). Isso porque, sem o papel da fáscia, os músculos funcionariam quase como unidades isoladas, entre outras complicações, e não seria possível a sua ação integrativa, conhecida como cadeias musculares.
A compreensão do papel da fáscia (felizmente com bastante material de estudo e pesquisa disponível, mas longe de estar esgotado) trouxe um grande insight sobre a globalidade do corpo. Essa incrível conectividade dos tecidos é um mapa complexo, que pode ajudar a desvendar os caminhos para a cura. E no sentido bem amplo do conceito de cura, já que, conforme o estudo e a prática se aprofundam, percebemos os componentes psicossomáticos (aspectos fisiológicos, psicológicos e emocionais) que se relacionam com a fáscia.
Quando consideramos a profunda conexão e interdependência entre os diferentes tipos de tecido (epitelial, conjuntivo, muscular e nervoso), percebemos como uma aparente heterogeneidade atua para a homogeneidade do sistema. Podemos lembrar da importância de uma vida mais ativa, onde através do movimento regular das pernas, os músculos da panturrilha atuam para o retorno do sangue e da linfa para a parte superior do corpo, funcionando como um segundo coração. Até mesmo nossas escolhas contribuem para uma melhor interação dos nossos sistemas. Alimentação, clima, cultura, interação social e muitos outros aspectos influenciam o desenvolvimento do nosso organismo e a nossa qualidade de vida.
Ocidente e Oriente se encontram
As medicinas tradicionais do Oriente desenvolveram concepções anatômicas e fisiológicas diferentes das adotadas no Ocidente. A compreensão sobre o funcionamento do corpo, dos mecanismos que nutrem e preservam a vida, parte de um entendimento mais amplo, que vai além do que consideramos como matéria física.
Essa abordagem, que interliga o indivíduo (microcosmo) com tudo que está ao seu redor (macrocosmo), não está presente apenas nas antigas medicinas do Oriente, mas também em todas as culturas antigas espalhadas pelo mundo inteiro, e que ainda são preservadas por tradições xamânicas, e até mesmo na chamada medicina popular.
Desde as últimas décadas, com a difusão, no Ocidente, de medicinas orientais tradicionais, em especial da medicina tradicional chinesa e da medicina ayurvédica, um grande esforço vem sendo realizado para compreender e correlacionar essas tradições com o pensamento científico ocidental, através de estudos, pesquisas e experimentações.
Começando na época das grandes navegações, passando por inúmeras transformações e mudanças e culminando na chamada globalização, muito foi compartilhado e muito se influenciou entre Ocidente e Oriente. Atualmente, em escolas e instituições de diversos países orientais que preservam suas medicinais tradicionais, matérias como anatomia humana, fisiologia, patologia, e muitas outras são empregadas como base e complemento para formação
de novos profissionais. No Ocidente, conceitos sobre energia e cura, pela visão milenar oriental, começaram a ser enxergados por novos ângulos. A meditação, por exemplo, passou a ser estudada, estimulada e recomendada como uma medida preventiva para a saúde.
Então, qual seria a maior diferença entre essas medicinas tradicionais e a medicina moderna que conhecemos hoje? De uma forma muito simplória, diríamos que no Ocidente a medicina baseou-se no visível, estudando as partes mais sólidas do corpo, até chegar ao universo microscópico da célula. No Oriente, a medicina abrangeu o invisível e, ao invés de dissecar e destrinchar as camadas do corpo, priorizou outros níveis sutis que compõem a vida (sem esquecer daquilo que é visível). Sem entrar num sentido mais amplo, consideremos aqui o invisível como aquilo que a ciência ainda não compreende. Isto é, a ciência da medicina moderna, pois essas medicinas milenares também se fundamentam em ciências, que, mesmo diferentes, desenvolveram-se com métodos, pesquisas e experiências de inúmeras gerações de profissionais. E quanto mais a medicina moderna avança, mais nos aproximamos da compreensão desses outros aspectos.
Teorias básicas da medicina tradicional tailandesa
Para a medicina tradicional tailandesa, toda matéria é composta por quatro elementos: terra, água, vento e fogo. O equilíbrio entre esses elementos é o responsável pela saúde e bem-estar do indivíduo. Outra teoria fundamental diz que a energia vital (Lom Pran) circula por uma rede invisível de cerca de 72.000 linhas que percorrem o corpo, sendo que 10 delas são consideradas como principais. Essas 10 linhas são conhecidas como Sen Sib (Sib = dez, Sen = linha), ou simplesmente, Linhas Sen.
O conceito sobre canais de energia que percorrem o corpo está presente em diversas medicinas milenares, sendo bastante difundido no Ocidente através da medicina tradicional chinesa (meridianos) e da medicina ayurvédica (nadis). Embora a medicina tradicional tailandesa tenha sido bastante influenciada por essas outras duas medicinas, muitos outros aspectos contribuíram para o desenvolvimento de um sistema próprio, que deve ser estudado dentro de seu contexto específico.
O vento é um elemento de fundamental importância na medicina tradicional tailandesa. Percorrendo o trajeto das Linhas Sen, ele equilibra e se harmoniza com os outros elementos. A principal função da massagem tradicional thai é fazer com que o vento circule em suas diferentes direções. Quando o movimento cessa, isso causa estagnações. Quando há excesso, surgem desgastes. Ambos provocam os desequilíbrios da saúde.
Todas as Linhas Sen originam-se ao redor do umbigo, sendo que, a partir daí, cada qual percorre um diferente caminho e termina num ponto diferente. É interessante perceber que o ponto final da maioria das 10 linhas principais (Sen Sib) relaciona-se com algum órgão dos cinco sentidos (visão, audição, paladar, olfato e tato).
Algumas delas fazem um trajeto similar, só que em lados diferentes do corpo. Desse modo, temos uma linha que termina no canto do olho esquerdo (Sen Hadsarangsi) e outra no canto do olho direito (Sen Tawaree), uma linha que termina na orelha esquerda (Sem Jun-tha-pu-sunk) e outra na orelha direita (Sen Ru-chum), uma linha que termina na narina esquerda (Sen Itha) e outra que termina na narina direita (Sen Ping-Kala), uma linha que vai se encerrar na ponta da língua (Sen Sumana) e uma linha que se ramifica, com uma parte subindo pelo tronco e depois descendo pelos braços e terminando nas pontas dos dedos das mãos e outro ramo que desce pelas pernas e termina nas pontas dos dedos dos pés (Sen Gala-Taree). Além disso, temos uma linha que termina no ânus (Sen Su-ku-mung) e outra no órgão sexual (Sem Sikinee). Essas duas não se relacionam com os órgãos dos sentidos, mas com a eliminação de resíduos (órgãos excretores) e com a reprodução (órgãos reprodutores). As Linhas Sen nascem no centro do indivíduo e o conectam com o meio externo. Por elas a energia circula, abastecendo e equilibrando as funções de órgãos e sistemas.
A integração somática na massagem thai
Com essas pequenas considerações sobre a consciência corporal, o trabalho celular, os tecidos fundamentais, as medicinas tradicionais, a medicina moderna e as teorias da medicina tradicional tailandesa, podemos adentrar um pouco sobre o trabalho integrativo presente na massagem tradicional thai.
Há mais de 2.500 anos no Oriente (época de surgimento da massagem thai), não se tinha noção do que era a fáscia. Há 50 anos no Ocidente, não se sabia da importância da fáscia. Contudo, naquela época remota, mesmo sem os conhecimentos modernos que temos atualmente sobre anatomia, fisiologia e biomecânica, muito do que ainda estamos tentando compreender, em termos de terapia manual, já parecia permear a massagem thai. Essa de fato não é uma técnica, mas o ramo que contém toda a abordagem integrativa manual e psicossomática da medicina tradicional tailandesa.
É importante esclarecer que a teoria das Linhas Sen não é uma visão rudimentar, que talvez se refira ao que conhecemos como músculos, vasos sanguíneos, nervos ou mesmo a fáscia. Essa é na verdade uma ciência sofisticada, que necessita de um grande aprofundamento, de um resgate de suas raízes e, tão importante quanto, da compreensão desses princípios na prática.
Paralelamente, quando voltamos nossa atenção para a fáscia, mais somos levados a rever os princípios básicos de anatomia e fisiologia, em direção ao interior das células e daquilo que as circunda (matriz celular). Juntando esses diferentes temas e aplicando-os na prática clínica, é possível desenvolver novas abordagens e recursos e assim obter melhores resultados.
Integrando as fontes de conhecimento
Nos livros podemos ver esquemas ilustrativos sobre alguns sistemas separados (muscular, articular, nervoso, digestório, etc.) e, depois, algum esquema mostrando a sobreposição de vários sistemas. Visualize então todos esses sistemas, sem o envoltório da pele, e agora perceba uma rede delicada envolvendo todo o corpo. Essa película protetora é o primeiro olhar sobre a fáscia, que adentra e se aprofunda no organismo com seu imenso papel de proteção, sustentação e integração. Imagine agora outro sistema, que assim como a fáscia tem diferentes níveis de profundidade e diversas funções. Esse sistema interage com funções orgânicas e energéticas (que não são necessariamente separadas, pelo contrário), sendo composto pelas Linhas Sen. Linhas que cruzam e conectam o visível ao invisível.
Conclusão
Aqui tivemos que deixar de lado diversos aspectos sobre a fáscia e as bases da massagem tradicional thai, sem propositadamente nos aprofundar num ponto específico, objetivando assim incitar a busca e o questionamento sobre as considerações apresentadas.
Como o título remete, foram apenas considerações somáticas (soma vem do grego, referindo-se ao corpo físico), mas ao mesmo tempo indicando que existem muitas outras facetas, camadas e níveis intrínsecos a serem considerados dentro da massagem thai (e mesmo no que se refere à fáscia e a todos os componentes orgânicos do corpo), incluindo entre eles os fatores psicológicos e espirituais que permeiam essa arte.
JP Paixão – Terapeuta e professor de Massagem Tradicional Thai. Desde 2006, estuda e pesquisa as bases tradicionais, as influências, as correlações com as terapias manuais do Ocidente e as aplicações da Massagem Thai.