Na medicina ayurvédica, a alimentação é considerada como um dos pilares fundamentais para que se tenha uma boa saúde não só física, mas também mental, emocional e espiritual.
O ayurveda considera que o alimento tem a função de nutrir o ser em toda a sua constituição e que por isso, durante a refeição, devem ser observados todos os sentidos envolvidos.
É essencial que o ato de comer seja uma experiência de bem-estar, satisfação, alegria, harmonia e tranquilidade.
Deepack Chopra afirma que “no ayurveda, a harmonia abrange tudo. Inclui a vibração das cores dos alimentos e o prazer de uma mesa bem-posta. Todas as sensações dizem alguma coisa e todas as mensagens são recebidas pelas nossas células”.
Três doshas e seis sabores
Outra característica básica no ayurveda é que a dieta precisa ser sempre personalizada de acordo com o biopsicotipo (dosha) de cada indivíduo.
A não compreensão da constituição individual pode acarretar um enfraquecimento da saúde, o que leva ao adoecimento. Um sistema que se propõe a perceber a individualidade de cada ser humano é capaz de propiciar uma vida com saúde e longevidade.
De acordo com o ayurveda, cada pessoa tem sua constituição formada pelos elementos da natureza, sendo classificada em um dos três doshas, conforme suas características físicas e mentais: vata (ar), pitta (fogo) e kapha (água e terra).
Na verdade, as atividades fisiológicas do corpo humano são impulsionadas pela ação dos três doshas: vata, com a função de movimentar a energia, pitta, gerando a energia e kapha, regulando a energia.
Mas cada pessoa apresenta sempre um desses biopsicotipos de forma mais marcante.
A medicina ayurvédica reconhece também a existência básica de seis sabores (rasas): doce, ácido, salgado, amargo, picante e adstringente.
Uma dieta ayurvédica balanceada precisa conter os seis paladares, ou seis rasas, em cada refeição. A regra básica é a de que as refeições sejam preparadas com alimentos que contenham todos os sabores, para que o corpo reaja harmonicamente com os alimentos.
Segundo Teotia (2007, p. 238), “vata é equilibrado pelos sabores salgado, ácido e doce. Pitta é equilibrado pelos sabores amargo, doce e adstringente. E kapha é equilibrado pelos sabores picante, amargo e adstringente”.
Portanto, faz-se necessário saber qual é o dosha predominante da pessoa que irá ingerir os alimentos, porque os sabores são importantes para manter o equilíbrio dos doshas e potencializar uma nutrição de boa qualidade.
Para se alcançar esse equilíbrio, é preciso observar ainda se o alimento é leve, pesado, seco, úmido, quente e frio. Por exemplo: deve-se ter o cuidado para não misturar numa mesma refeição dois tipos de alimentos pesados.
A refeição tem por finalidade nutrir o corpo e o espírito, trazendo bem-estar a ambos. Sendo assim, a dedicação empregada na preparação dos alimentos é fundamental no conceito do ayurveda.
Na prática
É fácil perceber, até mesmo intuitivamente, a verdade dos preceitos determinados pelo ayurveda com relação à alimentação.
Mas pode surgir a dúvida: será que é realmente possível aplicá-los no dia a dia ocidental?
E, às vezes, pode-se também ter a ideia errônea de que se trata de uma dieta exótica e distante do paladar ocidental.
Durante a elaboração de seu trabalho de conclusão de curso em Ciências das Religiões, Maria Natividade Gomes de Siqueira aceitou o desafio de fazer essa experimentação.
A seguir, são descritas algumas receitas que ela utilizou, com a identificação dos sabores e de para quais doshas as mesmas são apropriadas.
Almoço – dhal básico com cereais, legumes e amêndoas
Dhal básico com cereais: leguminosas segundo o dosha, 160 g de feijão moyashi verde, uma colher (chá) de cúrcuma, 200 g da parte verde da acelga, colheres (chá) de suco de limão, colheres (chá) de coentro picado, uma colher (chá) de sal, cereais segundo o dosha, 200 g de arroz basmati e ½ colher (chá) de sal.
Cozinhar o feijão com a cúrcuma em 700 ml de água. Adicionar as folhas e o sal e cozinhar por mais 10 minutos.
Pasta de curry: quatro colheres (chá) de óleo vegetal ou ghee, três colheres (chá) de gengibre fresco descascado, uma pitada de pimenta vermelha em pó, uma colher (chá) de cominho em pó, uma colher (chá) de coentro em pó, duas colheres (chá) de curry em pó e uma colher (chá) de cúrcuma.
Aquecer o óleo ou o ghee em uma frigideira. Acrescentar as especiarias na ordem citada e aquecer de leve. Acrescentar três colheres (sopa) de água e deixar evaporar. Adicionar os legumes já cozidos e o suco de limão. Servir com o arroz e a leguminosa.
Legumes com amêndoas: 800 g de beterraba e batata-doce, duas colheres (chá) de cúrcuma, oito colheres (sopa) de amêndoas moídas, quatro colheres (sopa) de óleo vegetal, duas colheres (chá) de cominho em pó, duas colheres (chá) de suco de limão, uma colher (chá) de sal e ½ colher (chá) de pimenta-do-reino.
Cozinhar os legumes com a cúrcuma em 250 ml de água por 10 minutos. Acrescentar o restante dos ingredientes e deixar cozinhar por mais dois minutos. Retirar do fogo e acrescentar o suco de limão.
Cereais, legumes, leguminosas e gorduras são os quatro tipos principais de alimentos de que o corpo precisa. Um dhal básico servido com cereais e legumes é a forma mais popular de almoço na culinária ayurvédica.
A receita descrita acima é ideal para vata, pois tem os sabores de acordo com o que o ayurveda determina para esse dosha. Para pitta, pode-se trocar a beterraba e a batata-doce por brócolis, cenoura e feijão verde. Para kapha, substituem-se a beterraba e a batata-doce por repolho, couve-flor e feijão verde. Também o feijão moyashi por grão-de-bico e o arroz basmati por arroz integral.
Jantar – Massa integral com molho pesto
Essa receita, que é bem apreciada no Ocidente, também se adapta a cada dosha, o que prova como pode ser fácil seguir a dieta para um biopsicotipo específico.
Ela contém os seis sabores: a massa é doce, o queijo é ácido e salgado e as ervas são picantes, amargas e adstringentes.
Massa: 4000 g gramas de massa sem ovos, segundo o dosha (vata – massa de espelta, pitta – massa de trigo integral e kapha – massa de trigo-serraceno) e uma colher (chá) de sal.
Cozinhar a massa conforme as instruções da embalagem.
Molho pesto: quatro colheres (sopa) de castanhas ou sementes, segundo o dosha (vata – quantidades iguais de pinhole e de castanha-de-caju, pitta – quantidades iguais de amêndoas sem pele e de sementes de abóbora e kapha – quantidades iguais de sementes de girassol e de sementes de abóbora), quatro colheres (sopa) de ricota, colheres (sopa) de azeite, um maço de manjericão picado, colheres (sopa) de folhas de sálvia, colheres ( sopa) de folhas de alecrim, colheres (chá) de sal, ½ colher (chá) de pimenta do reino moída na hora, colheres (chá) de suco de limão e 200 g de queijo parmesão ralado na hora (opcional).
Tostar as castanhas ou as sementes. Adicionar a ricota, o azeite, as ervas, o sal, a pimenta do reino, o suco de limão e um pouco da água do cozimento da massa. Usando um mixer, misturar tudo até formar uma pasta cremosa. Misturar o molho com a massa e com um pouco da água do cozimento. Salpicar o queijo parmesão (Centro Sivananda de Yoga Vedanta, 2018, p. 102, 103 e 112).
Reposição de energias – kitchiri tridocha
Essa receita pode ser usada para nutrir a pessoa que passou por um período de desintoxicação alimentar e precisa repor suas energias.
Kitchiri tridocha: 1/3 de xícara de feijão-mungo, 2/3 de xícara de arroz basmati ou outro grão, como a quinoa ou a cevadinha, ½ colher (chá) de cúrcuma em pó, uma colher (sopa) de gengibre fresco picadinho ou ½ colher (chá) de gengibre em pó, ½ colher (chá) de sementes de cominho torradas, ½ colher (chá) de coentro em pó, de uma a duas xícaras de hortaliças da estação, como couve, acelga de talo colorido, espinafre, ervilhas, algas ou cogumelos e uma colher (chá) de azeite de oliva ou de óleo de cânhamo.
Numa caçarola, colocar o feijão-mungo, o arroz e três a quatro xícaras de água. Quando ferver, adicionar a cúrcuma, o gengibre, o cominho e o coentro e deixar cozinhar em fogo baixo. Quando estiverem macios, juntar as hortaliças e temperar com azeite a gosto (Chopra, 2014, p. 288). Essa receita pode ser adaptada para os doshas individualmente dependendo da situação.
Comentário
Maria Natividade relata que a experiência no preparo dessas receitas foi tranquila, sendo que os ingredientes foram encontramos com facilidade.
Para prepará-las, foi necessário todo um cuidado com os ingredientes, para que o resultado final atendesse ao propósito do experimento: pratos com cores que propiciam uma aparência atraente e que aromas bastante agradáveis e, principalmente, que cumpram o objetivo que a comida tem no ayurveda, que é o de nutrir toda a essência corpórea do ser humano.
A dedicação empregada na preparação das receitas é um fator muito importante.
Os cheiros que as especiarias exalam ao serem torradas trazem uma sensação muito agradável para o olfato.
Por fim, cabe salientar que, quando o ayurveda preconiza que se deve usar os seis sabores na mesma refeição, isso não significa misturar os alimentos na mesma preparação.
Pode-se prepará-los juntos, como por exemplo arroz e lentilha ou arroz e feijão e usar as especiarias para temperar, observando suas combinações e principalmente tendo o cuidado para que essa preparação esteja de acordo com o dosha da pessoa que irá ingerir a refeição.
Maria Natividade Gomes de Siqueira – Graduada em Ciências das Religiões, pela Universidade Federal da Paraíba – UFPB.
Nota: artigo extraído e adaptado do trabalho de conclusão de curso intitulado Ayurveda: um estudo das relações entre os doshas e os pressupostos alimentares e espirituais, apresentado no programa de graduação em Ciências das Religiões, da Universidade Federal da Paraíba – UFPB, em 2020, sob orientação da Profa. Dra. Maria Lucia Aburre Gnerre.
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