Ayurveda é a medicina mais antiga na ciência da saúde, originada na Índia há cerca de 5.000 anos.
Significa “ciência ou conhecimento da vida”, que tem como finalidade prevenir doenças através do cuidado com o corpo e o espírito.
Dentro desse contexto, há o sistema de doshas que trata da constituição física e psicológica de cada indivíduo, formada pelos cinco elementos da natureza: éter, ar, água, fogo e terra, que unidos dois a dois formam vata, pitta e kapha.
Para compreender a relação dos doshas com a alimentação, é necessário antes saber o que são os doshas, como são formados e qual sua relação com os alimentos que nutrem o corpo e a mente.
Cada um de nós se distingue de muitas maneiras, tanto física como mentalmente. Cada pessoa apresenta uma constituição única, que é diversa da de qualquer outro indivíduo. A forma e o tamanho do corpo, o temperamento e o caráter das pessoas apresentam grandes variações, que devem afetar sua saúde e felicidade (Frawley, 2018, p. 23).
Frawley explica que é necessário observar a natureza de cada indivíduo, para que sejam percebidas suas particularidades. O que pode ser adequado para uma pessoa provavelmente não será para outra, incluindo alimentação e condições psicológicas.
A não compreensão da constituição individual pode acarretar em um enfraquecimento da saúde, o que leva ao adoecimento. Um sistema que se propõe a perceber a individualidade de cada ser humano é capaz de propiciar uma vida com saúde e longevidade.
“O ayurveda apresenta essa ciência desenvolvida dos tipos individuais como sua sabedoria fundamental. Uma das grandes beleza do ayurveda é que ele nos ajuda a entender claramente nossas diferenças individuais, nossas capacidades especiais e nossas idiossincrasias”, afirma Frawley.
Ele explica os três doshas existentes: vata, pitta e kapha de maneira a abordar os humores biológicos dos quais o ser humano é constituído. Essa constituição não se dar por acaso, pois todos nós apresentamos variações que são manifestadas pelas forças da natureza.
Os três tipos constitutivos principais estão em conformidade com os três humores biológicos, que são as forças fundamentais da nossa vida física. Esses humores são chamados de vata, pitta e kapha e, em sânscrito, correspondem aos três grandes elementos do ar, do fogo e da água, do modo como atuam no complexo da mente e do corpo (Frawley, 2018, p. 23 e 24).
De acordo com o ayurveda, cada pessoa tem sua constituição formada pelos elementos da natureza, sendo classificada conforme suas características físicas e mentais.
A seguir, são apresentadas as descrições desses humores e suas principais características predominantes.
Vata – o ar: o humor biológico relacionado com o ar é chamado de vata, que significa literalmente “o que sopra”, numa referência ao vento. Ele apresenta um aspecto secundário de éter, como sendo o campo em que se move. Os interstícios da cabeça, das juntas e dos ossos servem como seu contêiner.
Vata rege o movimento e é responsável pela descarga de todos os impulsos voluntários e involutários. Ele trabalha principalmente através do cérebro e do sistema nervoso. No sistema digestivo, relaciona-se com o baixo abdômen, particularmente com o intestino grosso, onde o gás (o ar) acumula-se. Os sentidos do tato e da audição, que correspondem aos elementos do ar e do éter, fazem parte dele.
Vata é a força que guia os outros humores, porque a própria vida deriva do ar. Ele leva em conta a agilidade, a adaptação e a facilidade na ação. Seu poder nos anima e nos dá a sensação de vitalidade e entusiasmo.
Vata regula a sensibilidade fundamental e a mobilidade do campo mental. Ele energiza todas as funções mentais, desde os sentidos até o subconsciente. Permite-nos reagir mentalmente a impulsos externos e internos. O medo e a angústia são seus principais desequilíbrios emocionais, que ocorrem quando sentimos que nossa energia vital de alguma forma está sendo ameaçada ou comprometida (Frawley, 2018, p. 24).
Vata é o dosha que promove todo o movimento necessário para o bom funcionamento do corpo. Como sua constituição deriva do ar e éter, é o dosha da ação, leveza e mobilidade, que promove o movimento dos alimentos dentro do organismo. É responsável por levar energia para o campo mental para que possamos reagir aos impulsos externos e internos.
Pitta – o fogo: o humor biológico relacionado com o fogo denomina-se pitta, que significa “o que cozinha”. O fogo não pode existir diretamente no corpo, mas é encontrado em líquidos quentes, como o sangue e os líquidos digestivos. Por essa razão, pitta apresenta um aspecto secundário de água. O fogo precisa da água para manter o equilíbrio.
Pitta rege a transformação no corpo e na mente, a forma de digestão e assimilação em todos os níveis, desde a alimentação até as ideias. Tem preponderância no sistema digestivo, particularmente no intestino delgado e no fígado, onde o “fogo” da digestão está em atividade. Além disso, é encontrado no sangue e no sentido da visão, que corresponde ao elemento fogo. Pitta é responsável por todo o calor e luz, desde a percepção sensorial até o metabolismo das células.
No que diz respeito à mente, pitta rege a razão, a inteligência e o entendimento – a capacidade iluminadora da mente. Ele faz com que a mente perceba, julgue e discrimine. A raiva é seu principal distúrbio emocional, pois ela é impetuosa, enche-nos de calor e ajuda a nos defendermos dos golpes que nos assentam de fora (Frawley, 2018, p. 24 e 25).
É dotado de energias que permitem colocar em prática os planejamentos e realizar os objetivos.
Pitta é o biotipo da digestão, transformando o alimento em tecidos orgânicos, processo que é essencial para a manutenção da saúde. Metabolismo estável não tem problemas digestivos, pois a presença do agni faz todo o processo digestório.
Kapha – a água: o humor biológico relacionado com a água é chamado de kapha, que literalmente significa “o que se molda”. Ele apresenta um aspecto secundário de terra, na forma do limite em que se encontra – a pele e as membranas mucosas.
Kapha rege a forma e a substância e é responsável pelo peso, pela coesão e pela estabilidade. Kapha é a solução fluida, o oceano interior, em que se movem os outros dois humores.
Constitui a principal substância do corpo, fornecendo a lubrificação necessária e a eliminação de secreções, além de acalmar os nervos, a mente e os sentidos. Predomina nos tecidos do organismo e na parte superior do corpo – estômago, pulmões e cabeça, onde o muco acumula-se. Relaciona-se com os sentidos do paladar e do olfato, que correspondem à água e à terra.
Kapha rege o sentimento, a emoção e a capacidade que a mente tem de se apegar à forma. Transmite serenidade e estabilidade, mas pode impedir o crescimento e a expansão. O desejo e o apego às coisas da mente são seus desequilíbrios emocionais mais comuns e isso pode sobrecarregar a psique (Frawley, 2018, p. 25).
Uma vez que esse dosha está relacionado com os elementos água e terra na natureza, suas caraterísticas são pesadas e firmes. É responsável pela estrutura óssea e gera estabilidade, mas tem um metabolismo lento, o que dificulta a digestão e promove um estado de desânimo por algum tempo.
O estado mental correspondente à kapha é calmo, generoso e estável, expressando-se com tranquilidade e passividade.
Os médicos e terapeutas ayurvédicos identificam o humor predominante de uma pessoa observando suas características físicas e psicológicas, sendo que todo indivíduo traz um pouco de cada humor, mas geralmente tem um que se destaca.
Porém, isso pode mudar de acordo com a idade, com as estações do ano e com os problemas de ordem física ou psicológica que possam ter afetado a pessoa durante sua vida.
Características do dosha vata – temperamento nervoso
O dosha vata é o regulador de todo o movimento que se processa no organismo. Nas pessoas que têm esse dosha como predominante, o núcleo do biopsicotipo é marcado pela instabilidade e inconstância, tanto no aspecto físico como mental e emocional.
Em virtude da prevalência dos elementos éter e ar, os tipos vata apresentam em sua fisiologia características relativas a esses elementos: leveza, sutileza, frieza, aspereza e mobilidade (Carneiro, 2017, p. 74).
Características físicas das pessoas com vata predominante: são mais altas ou mais baixas do que a maioria, são magras e têm dificuldade de ganhar peso, possuem um tipo físico ósseo, sem músculos desenvolvidos, sua pele é ressecada e facilmente torna-se grossa, seus olhos costumam ser pequenos, seu cabelo e couro cabeludo são secos, possuem uma capacidade variável para a digestão, seu apetite oscila entre grande, pouco ou nenhum, tem sono leve e sofrem de insônia.
Características psicológicas: são velozes e ágeis no pensamento, são falantes, informadas e intelectualizadas, sua mente por vezes divaga e escapa ao controle, não raramente são indecisas e inconstantes, são propensas a se aborrecer e a angustiar-se facilmente, em geral são criativas, sendo que a maioria dos artistas pertencem a esse tipo, comumente são rebeldes e não gostam de ser líderes nem seguidores (Frawley, 2018, p. 26 e 27).
O corpo vata: a constituição corporal de vata é bem delicada, com membros longos e finos, demonstrando fragilidade. Apresenta leveza estrutural e isso provavelmente permite que a pessoa em que esse dosha é predominante seja ágil em seus movimentos, deslocando-se com facilidade. A alimentação pode contribuir para um corpo tão delicado, já que indivíduos com esse dosha têm a tendência de gostar de alimentos que não são adequados para seu biotipo, o que acaba por trazer problemas para o seu trato digestório.
A mente vata: o dosha vata tem dificuldade em permanecer quieto, por ter como função o movimento. É o agente que promove a circulação no organismo, tanto dos alimentos quanto das energias que movimentam todo o sistema corporal do indivíduo. A pessoa vata é imprevisível. Nunca se sabe como ou o que esperar de seu comportamento, pois seguir rotinas é uma grande dificuldade para ela. O que é confortável hoje pode não ser amanhã, por isso ela está sempre mudando algo em sua vida. É agraciada por uma mente criativa e costuma ter ideias inovadoras. Isso contribui para ganhar dinheiro com rapidez, mas também para perdê-lo com a mesma rapidez.
Características do dosha pitta – temperamento bilioso
Pessoas nascidas com predominância desse dosha exibem um domínio do elemento fogo em sua constituição, uma vez que, como já foi dito acima, pitta é o próprio fogo ou originário dele. Sendo assim, essas pessoas trazem no núcleo de seu biopsicotipo a impulsividade, a intensidade, a ardência e a “biliosidade” do elemento fogo.
Como pitta é o princípio vital que governa, em cada ser vivo, todo o processo de metabolismo e transformação, o predomínio desse dosha confere aos indivíduos um “fogo digestivo” forte, com uma digestão aguda, um grande apetite e, às vezes, uma sede exacerbada (Carneiro, 2017, p. 76).
Características físicas das pessoas com pitta predominante: são de altura e compleição medianas, com músculos desenvolvidos, sua pele é oleosa e tem boa cor, são sensíveis à luz do Sol, seu cabelo é fino, seu sono é moderado, são competitivas e têm facilidade para fazer exercícios físicos ou praticar esportes.
Características psicológicas: são inteligentes e perspicazes, têm discernimento, são propensas a sentir raiva e tendem a ser agressivas e dominadoras, podem ser impulsivas e obstinadas, apreciam o uso da energia e da força e inclinam-se à discussão e à violência, são boas cientistas e amiúde têm uma fácil compreensão de mecânica e de matemática, têm um raciocínio inquiridor, sendo eficientes em pesquisas e em invenções em geral e são boas oradoras e pregadoras.
O corpo pitta: é mais definido, com a presença de músculos bem compactos, demonstrando firmeza. Isso pode ter a ver com o seu metabolismo, que é bom o suficiente para fazer o processamento dos alimentos e distribuir os nutrientes adequadamente em todo o sistema que compõe corpo e mente.
A mente pitta: o indivíduo pitta é intenso (comparado ao fogo) e precisa de água para baixar a temperatura. Sua mente permite que os problemas tomem conta dos seus pensamentos e só se aquieta quando encontra soluções. Ao contrário de vata, a pessoa com predominância de pitta é organizada, programa a rotina e gosta que tudo seja feito de forma correta e na hora marcada.
Características do dosha kapha – temperamento fleumático
Kapha é uma soma de lunar, frio e suave. Apresenta um predomínio dos elementos água e terra, o que lhe confere uma constituição mais densa, sólida e consistente. No núcleo de seu biopsicotipo estão a estabilidade, a constância e a tranquilidade.
Como o dosha kapha é o princípio vital da estrutura, da forma, da coesão e da estabilidade material, tais características sobressaem-se na constituição dos indivíduos em que esse dosha se destaca (Carneiro, 2017, p. 79).
Características físicas das pessoas com kapha predominante: são baixas e atarracadas, com a caixa torácica bem desenvolvida, tendem à corpulência ou obesidade, sua pele é espessa e costuma ser úmida e oleosa, têm olhos grandes, brancos e atraentes, possuem cabelos fartos, oleosos e espessos, têm pouco apetite, mas constante, apresentam um metabolismo lento e sofrem fisicamente sobretudo pela falta de ação e de disciplina.
Características psicológicas: têm um temperamento emotivo, são muito amorosas, dedicadas e leais, são mais lentas na aprendizagem do que os outros tipos, são tradicionais ou convencionais em seu comportamento e em suas crenças, são felizes e aceitam as coisas do modo como são, são bons pais/mães e provedoras, gostam de acumular riquezas e são muito apegadas ao que adquirem.
O corpo kapha: as pessoas com características kapha possuem um corpo com estrutura robusta, demostrando solidez e estabilidade. A mistura de água e terra em sua composição promove firmeza e força física. Porém, seu trato digestório e seu metabolismo são lentos, o que pode estar relacionado com o ganho de peso. Outra causa do aumento de peso pode ter a ver com o impulso que indivíduos desse dosha têm de querer compensar suas necessidades afetivas com o consumo de alimentos.
A mente kapha: a pessoa kapha enfrenta o mundo com tranquilidade. Sua energia é uniforme e, diferentemente de vata, ela mantém constância e lentidão em todos os aspectos de sua vida, sendo que a sua fala morosa por vezes chega a ser monótona. Demora para tomar decisões e não gosta de agitação. Para ela, a tranquilidade é essencial em todas as situações.
A partir do conhecimento de como os doshas são formados e de quais são suas características e sua constituição, é possível determinar que alimentos são apropriados para uma determinada pessoa de acordo com o seu tipo predominante.
Porém, é indispensável observar também que existem alimentos adequados para cada estação do ano, assim como para cada faixa etária, devido às mudanças que esses fatores provocam no metabolismo.
A alimentação segundo o ayurveda
No ayurveda, a alimentação é considerada como um dos pilares para que se tenha uma boa saúde física, mental, emocional e espiritual.
O alimento tem a função de nutrir o ser em toda a sua constituição, devendo-se portanto observar todos os sentidos envolvidos. É essencial que o ato de comer seja uma experiência de bem-estar, satisfação, alegria, harmonia e tranquilidade.
Como esclarece Deepack Chopra, “o ayurveda trata da experiência pessoal. Enxerga a alimentação como algo não isolado. Uma refeição harmoniosa encaixa-se num dia harmonioso. Vivenciamos com entusiasmo os cinco sentidos e as sensações que o alimento evoca. Ouvimos a sopa borbulhando no fogão e sentimo-nos acolhidos. Deliciamo-nos com a textura de uma colher cheia de creme. No ayurveda, a harmonia abrange tudo. Inclui a vibração das cores dos alimentos e o prazer de uma mesa bem-posta. Todas as sensações dizem alguma coisa e todas as mensagens são recebidas pelas nossas células”.
Chopra fala de sua própria experiência como sendo alguém que nasceu na Índia, mas que durante anos manteve distância da medicina ayurvédica. Porém, ao se conectar novamente com esse conhecimento milenar, pôde entender a grande importância contida nessa medicina que se supõe ser a mais antiga da humanidade.
Ele afirma que se trata de ”um modo de vida milenar que oferece ao ser humano um lugar harmonioso e holístico na natureza. Fazemos parte de um todo, não somos partes. O indivíduo não é um corpo separado da mente, nem um espírito sem um habitar. O corpo é um espelho do cosmo e seu ritmo está relacionado às estrelas e às marés. As células estão plenas de inteligência, com o propósito de fazer da existência diária algo prazeroso e produtivo”.
Considerando os pressupostos do ayurveda sobre alimentação e contrapondo-os ao comportamento alimentar da maioria das pessoas nos dias atuais, percebe-se que existe um grande descompasso entre o que essa sabedoria milenar preconiza como sendo de fato uma alimentação saudável e capaz de nutrir uma pessoa e as atitudes contemporâneas dos indivíduos de comer qualquer comida processada em qualquer lugar, pensando que estão se nutrindo, quando na verdade estão consumindo alimentos contaminados por toxinas, que ao longo do tempo vão provocar algum tipo de doença ou várias delas.
Está posto que a comida natural tem um papel fundamental para a manutenção da saúde, pois promove a sintonia do corpo com a natureza, de onde viemos e da qual fazemos parte. É na natureza que encontramos tudo de que precisamos para nossa sobrevivência, já que somos uma combinação dos elementos da natureza, que determina o que somos e como somos.
Acharya Charak afirma que “o alimento é vida. A comida é a força da vida, que nutre o corpo, a mente e a alma”. Isso nos faz compreender que o alimento tem uma dimensão que vai muito além daquilo que entendemos por “estar bem alimentados”. A comida é nossa nutrição não só do corpo físico mas também do espiritual. A energia contida no alimento é nosso passaporte para uma vida plena física e espiritualmente.
A comida deve ser selecionada de acordo com a constituição psicossomática da pessoa. Ela pode tornar-se compatível pela utilização várias vezes de uma particular variedade ou combinação de alimentos. A qualidade da comida, o ambiente, o fator sazonal, a constituição da pessoa e os doshas podem afetar o consumidor (Teotia e Teotia, 2007, p. 241).
Pressupõe-se que a pessoa deve se auto-observar, perceber como sua digestão acontece e quais alimentos lhe trazem bem-estar, tanto físico como emocional. Partindo do princípio de que cada indivíduo é único, somente a própria pessoa é capaz de identificar o que lhe faz bem.
O ayurveda fala sobre o agni, como sendo o elemento essencial para manter o equilíbrio e funcionamento do sistema digestivo. Assim sendo, cada dosha tem os elementos da natureza que proporcionam de maneira eficiente ou não a ação do agni na digestão.
Partindo desse entendimento, entram as questões sobre quais alimentos e temperos ajudam ou atrapalham a ação do agni em cada dosha.
O ayurveda orienta-nos a comer uma dieta natural, balanceada e baseada em nossa intuição, sem transformar a nutrição em uma preocupação intelectual.
A medicina ayurvédica reconhece a existência básica de seis sabores (rasas): doce, ácido, salgado, amargo, picante e adstringente. A dieta ayurvédica balanceada contém os seis paladares, ou seis rasas, em cada refeição. A regra básica do ayurveda é a de que as refeições sejam preparadas com alimentos que contenham todos os sabores, para que o corpo reaja harmonicamente com os alimentos (Teotia e Teotia, 2007, p. 237 e 238).
Observando o que foi posto acima, percebe-se a importância do preparo do alimento que será ingerido, para que o mesmo contenha os sabores que irão potencializar uma nutrição de boa qualidade.
Para tanto, faz-se necessário saber qual é o dosha predominante da pessoa que irá ingerir esses alimentos, porque os sabores são importantes para manter o equilíbrio dos doshas.
Segundo Teotia (2007, p. 238), “vata é equilibrado pelos sabores salgado, ácido e doce. Pitta é equilibrado pelos sabores amargo, doce e adstringente. E kapha é equilibrado pelos sabores picante, amargo e adstringente”.
Assim sendo, cada indivíduo que carrega determinado dosha precisa ficar atento a esse dado, que é essencial para se manter equilibrado, pois de acordo com o ayurveda o desequilíbrio é a principal causa de doenças.
Então, cada pessoa precisa manter-se conectada com seus sentimentos e observar o seu estado físico e emocional. Isso porque para a medicina ayurvédica os sabores desempenham um papel importante, que é o de transmitir mensagens distintas para o corpo.
A dedicação empregada na preparação das comidas é fundamental no conceito do ayurveda. E não teria como ser diferente, pois todos os cheiros que as especiarias exalam ao serem torradas e aplicadas trazem uma sensação bastante agradável para o olfato.
A medicina ayurvédica destaca ainda a preocupação com a incompatibilidade dos alimentos. De acordo com esse pensamento, os alimentos só podem ser misturados se combinarem entre si. A não compatibilidade pode transformar uma preparação alimentícia em comida tóxica e prejudicial para o indivíduo.
Quando o ayurveda preconiza que devemos usar os seis sabores na mesma refeição, isso não significa misturar os alimentos na mesma preparação. Podemos preparar juntos, por exemplo, arroz e lentilha ou arroz e feijão e usar as especiarias para temperar, observando suas combinações e principalmente tendo cuidado para que essa preparação esteja de acordo com o dosha da pessoa que irá ingerir a comida.
É necessário observar ainda se o alimento é leve, pesado, seco, úmido, quente ou frio, para que posamos fazer o equilíbrio entre os mesmos. Devemos ter atenção para não misturar na mesma refeição dois tipos de alimentos pesados, por exemplo. A refeição tem por finalidade nutrir o corpo e o espírito, trazendo bem-estar em ambos os sentidos.
Contudo, o cuidado com a alimentação vai além da compreensão e identificação dos doshas e da atenção em relação às combinações alimentares.
Existe o elemento já citado acima, que é essencial para a digestão: o agni, que pode ser designado como o fogo digestivo.
Agni e seu poder sobre a digestão e nutrição
Existem referências no ayurveda de que mais importante do que o alimento é a digestão. Isso porque, se a capacidade digestiva não é boa, a absorção dos nutrientes contidos nos alimentos não será boa o suficiente para nutrir o corpo e o espírito. Então, o que é o agni?
Agni, ou fogo digestivo, é o poder de converter os alimentos, bebidas, pensamentos, sentimentos e sensações em tecidos corporais, em energia vital.
O poder de agni permite limpar toxinas (ou ama), mantendo as funções do sistema digestivo em equilíbrio e consequentemente o corpo e a mente mais saudáveis.
Se o agni estiver muito baixo, pouco aproveitaremos daquilo que ingerirmos. Se estiver alto demais, poderá destruir os alimentos antes de serem assimilados corretamente (Pires, 2017, p. 30).
Sabemos que, dentre os humores biológicos, o que carrega o agni em sua constituição é o dosha pitta, que tem grande colaboração com o processo digestivo, embora os outros dois também ofereçam suas contribuições para que tudo aconteça harmonicamente.
Agni é o fogo biológico que governa o metabolismo. Em sua função, assemelha-se a pitta e pode ser considerado como uma parte integral do sistema desse dosha no corpo, funcionando como um agente catalítico na digestão e no metabolismo. Pitta contém energia-calor que ajuda a digestão (Lad, 2012, p. 46).
Diante da afirmação acima, devemos procurar compreender a importância do dosha pitta na alimentação. “Pitta manifesta-se no estômago como o fogo gástrico – agni. Agni é ácido por natureza e sua ação dissolve o alimento e estimula a digestão” (Lad, 2012, p. 46).
Esse dosha, portanto, está comprometido com o bom funcionamento do estômago e do intestino, mantendo dessa forma o trânsito alimentar alinhado com as necessidades de cada indivíduo no que diz respeito a uma eficiente absorção dos nutrientes alimentares. “A longevidade depende de agni. A inteligência, compreensão, percepção e discernimento também são funções de agni” (Lad, 2012, p. 46).
Embora o termo agni, como usado no ayurveda, normalmente refira-se ao poder digestivo, ele pode ser usado também como um sinônimo de pitta. Em sentido amplo, engloba todas as funções digestivas e metabólicas do corpo. Ou seja, é responsável pela quebra, absorção e assimilação do alimento ingerido e pela transformação de substâncias heterogêneas em homogêneas.
Quando os três doshas do corpo estão em equilíbrio, os agnis ou enzimas funcionam normalmente. Entretanto, quando há qualquer distúrbio em seu equilíbrio, ocorre um prejuízo na função dos agnis (Carneiro, 2007, p. 54).
Conforme essa colocação de Carneiro, é necessário que os doshas estejam equilibrados para que o agni funcione com eficiência. Já que a pessoa traz em sua constituição os três humores, os mesmos precisam desempenhar os seus papéis harmonicamente.
Vata (união de espaço e ar) – é o princípio da energia cinestésica. Regula todos os movimentos do corpo e da mente. Tudo que se move, da molécula ao pensamento, o faz por causa de vata, que em sânscrito significa ”aquilo que movimenta as coisas”.
Sua função é colocar a energia em movimento e dar-lhe uma direção. Diz respeito principalmente ao sistema nervoso. É responsável pelo pensamento, atividade neuromuscular, respiração, circulação e movimento peristáltico. Está diretamente conectado ao tecido (dhatu) ósseo.
Pitta (resultado de fogo/muito e água/pouca) – regula a fome, a sede e todos os processos de transformação que ocorrem no corpo, como a digestão.
Representa o metabolismo e a energia potencial que dá brilho ao olhar. Em sânscrito, pitta quer dizer “aquilo que digere”.
Sua função é gerar energia. Diz respeito principalmente aos sistemas digestivo, endócrino e enzimático. É responsável por clarear a mente e pela percepção visual, digestão, metabolismo e regulagem da temperatura. Está diretamente conectado ao tecido (dhatu) do sangue.
Kapha (mistura de terra e água) – é a influência estabilizadora que lubrifica, mantém e contém. É o dosha responsável pelo acúmulo de gordura no corpo e pela retenção de líquidos. Em sânscrito, kapha é “aquilo que mantém as coisas juntas”.
Sua função é regular a energia. Diz respeito principalmente ao sistema linfático. É responsável por dar suporte e nutrir o sistema nervoso, por lubrificar o trato digestivo, as articulações e o trato respiratório e por regular a água e gordura.
Está diretamente conectado a cinco dos sete tecidos (dhatus) do corpo humano: plasma, músculo, gordura, tecido nervoso e tecido reprodutivo (De Luca e Barros, 2007, p. 119 a 120).
Observando o que está posto acima, fica claro que a pessoa precisa carregar os três doshas. As atividades fisiológicas são impulsionadas pela ação dos tridoshas: vata, com a função de movimentar a energia, pitta, gerando a energia e kapha, regulando a energia.
No processo digestivo, é isso que faz com que o organismo absorva os nutrientes dos alimentos e os distribua para onde for necessário. E no processo excretório, promova a eliminação dos malas: fezes, urina e suor.
Considerações finais
O ayurveda considera que, para alcançar boa saúde, a pessoa precisa seguir alguns princípios básicos, tais como conhecer a si própria, praticar uma alimentação natural, dormir bem, praticar a espiritualidade, fazer atividade física e preferir estar próxima da natureza.
Os doshas são os humores biológicos formados pelos elementos da natureza: ar, éter, água, fogo e terra, que unindo-se dois a dois formam a constituição do indivíduo.
E como somos formados pelos elementos da natureza, pressupõe-se que não podemos nos afastar da mesma. De acordo com o ayurveda, ao nos distanciarmos da nossa essência, ficamos expostos a elementos que nos levam ao adoecimento.
Esses elementos são os alimentos processados, os alimentos que não combinam entre si, o ato de comer sem fome, o ato de comer além do necessário, o não dormir o suficiente ou dormir em horários inadequados, o não praticar atividade física e o não cuidar da espiritualidade.
Com relação aos biotipos, é necessário que seja feito um estudo experimental, em que a pessoa com as características previamente supostas seja acompanhada por um profissional de ayurveda.
Seguindo a alimentação e as práticas propostas para determinado dosha, será então possível confirmar se os pressupostos alimentares condizem com os conceitos do ayuveda.
Na realidade atual, em que as pessoas estão mais distantes da natureza, as facilidades propostas pela modernidade contribuem para que elas se afastem da noção de cozinha como “laboratório” para a promoção da saúde do corpo e da mente.
Maria Natividade Gomes de Siqueira – Graduada em Ciências das Religiões, pela Universidade Federal da Paraíba – UFPB.
Nota: artigo extraído e adaptado do trabalho de conclusão de curso intitulado Ayurveda: um estudo das relações entre os doshas e os pressupostos alimentares e espirituais, apresentado no programa de graduação em Ciências das Religiões, da Universidade Federal da Paraíba – UFPB, em 2020, sob orientação da Profa. Dra. Maria Lucia Aburre Gnerre.
Referências bibliográficas
Ayurveda: Princípios e técnicas para atingir o equilíbrio e o bem-estar. Centro Sivananda de Yoga Vedanta [tradução de Fernando Santos]. São Paulo: Publifolha, 2018.
Carneiro, Daniel Maciel. Ayurveda: Saúde e longevidade na tradição milenar na Índia. São Paulo: Pensamento, 2009.
Chopra, Deepack . Você tem fome de que? 1ª ed. São Paulo: Alaúde, 2014.
De Luca, M.; Barros, L. Ayurveda: Cultura de Bem-Viver. São Paulo: Cultura, 2007.
Frawley, David. Uma Visão Ayurvédica da Mente: A cura da consciência. São Paulo: Pensamento, 2018.
Feuerstein, Georg. A tradição do Yoga: História, Literatura, Filosofia e Prática. São Paulo: Pensamento, 2006.
Ferreira, M.; Gnerre, M. L. A. e Possebon, F. apud. Gulmini, 2002. Antologia Védica. Edição bilíngue: sânscrito e português. João Pessoa: Libellus, 2016.
Lad, Vasant. Ayurveda: A Ciência da Autocura. Um guia prático. São Paulo: Ground, 2012.
Gomes, Fabíola Silva. Comidas, pessoas e deuses: etnografia de eventos alimentares na Índia. 2010. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social). Universidade de Brasília, São Paulo, 2010.
Organização Mundial de Saúde. Constituição da Organização Mundial de Saúde. Documentos básicos, suplemento da 45ª edição, outubro de 2006. Disponível em espanhol em https://www.who.int/governance/eb/who_constitution_sp.pdf.
Pires, Laura. O Sabor da Harmonia: receitas ayurvédicas para o bem-estar. Rio de Janeiro: Rocco, 2017.
Teotia, H. S. e Teotia, R. Ayurveda & Saúde: vida, saúde, harmonia, longevidade, espiritualidade e bem-estar. Campina Grande: Epgraf, 2007.