Colocando a ciência por trás da prescrição da cannabis

Nota da redação: este artigo foi publicado em novembro de 2019. Sendo assim, algumas informações relacionadas à proibição do uso terapêutico da cannabis no Brasil foram modificadas. Veja no artigo As novas regras sobre cannabis medicinal no Brasil, publicado na Revista Medicina Integrativa. Entretanto, os dados históricos e relativos ao estágio atual do conhecimento e das pesquisas científicas sobre as aplicações terapêuticas da cannabis, citados no artigo, continuam atuais e relevantes.

Após séculos de uso medicinal do extrato da cannabis em todo o mundo, inclusive com vários produtos comercializados em farmácias, ao redor dos anos 30 do século passado, o governo dos Estados Unidos colocou a cannabis ou marihuana (denominação derivada do termo chinês ma ren hua ou flor de cânhamo) em uma lista de substâncias proibidas em todas as suas formas. O resto do mundo seguiu a medida.

As razões para classificar a cannabis como uma substância perigosa foram de cunho político. Porém, mais  importantes que razões obscuras são as consequências que todos sofremos com esse hiato de tempo de quase 100 anos: ficamos impedidos de desenvolver qualquer investigação médica, clínica ou pré-clínica, pois não havia mais o acesso legal à matéria-prima.

O que havia começado na China, em cerca de 2.700 a.C. com um relato do uso da cannabis para o tratamento de dores crônicas e gota, tinha sido interrompido por um movimento irracional. Nem mesmo o conhecimento de que a Rainha Victoria fez uso de extratos de cannabis para tratar cólicas intestinais que a afligiam com frequência e também os infinitos relatos e testemunhos ao redor do mundo foram suficientes para permitir a continuidade do desenvolvimento de medicamentos à base de extratos da planta.

Fazendo um paralelo, aproximadamente na mesma época, os derivados de heroína foram desenvolvidos a partir de extratos da papoula, planta também originária da Ásia Central e utilizada como entorpecente. Nunca ouvimos falar de heroína medicinal para nos referirmos à morfina! Mas não houve proibição de seu desenvolvimento. Houve até a distribuição de heroína pelo governo aos soldados norte-americanos durante a guerra do Vietnã nos anos 60 e 70. Foram estabelecidos controles muito frouxos na dispensação da heroína na sua forma medicamentosa chamada de morfina e, hoje, o hemisfério norte-americano sofre com uma epidemia de abuso da droga, com cerca de 400.000 mortes por opioides entre os anos de 2000 e 2017, somente nos EUA, além de internações frequentes e bilhões de dólares gastos nas tentativas de recuperação desses pacientes. A epidemia é tão grave que o atual presidente americano declarou como catástrofe sanitária o vício e abuso de analgésicos opioides em seu país.

Um outro exemplo da gravidade da situação é a oferta de 12 bilhões de dólares pela empresa americana Purdue Pharma, produtora de oxicodona, um derivado da heroína, como ressarcimento em 2000 casos judiciais que estão em andamento por mortes causadas por seus produtos.

Voltando à cannabis, sem a possibilidade de acesso à planta para realizarmos estudos clínicos, a utilização medicinal de seus extratos permaneceu com muitas questões a serem respondidas: quais seriam as melhores indicações para seu uso? Qual é o perfil de pacientes que melhor se beneficiariam em cada doença? Qual é a farmacodinâmica e farmacocinética de seus componentes, ou seja, como se comportam ao interagir com nosso metabolismo? Essas e várias outras perguntas ficaram sem respostas satisfatórias por muitos anos.

Mesmo assim, milhões de recursos foram gastos para demonstrar apenas os efeitos colaterais e indesejáveis da cannabis. Alterações de comportamento e outros efeitos colaterais foram muito bem documentados com o uso ilegal de cannabis fumada. Virtualmente não existiram trabalhos clínicos por muitos anos que demonstrassem os vários efeitos benéficos do medicamento. E se o mesmo tivesse sido imposto à heroína, a qual tem um potencial letal infinitamente maior do que a cannabis? Muito provavelmente hoje não teríamos a classe de drogas analgésicas que beneficia tantos pacientes quando bem utilizada. Somos gratos por terem sido gastos milhões de dólares no desenvolvimento de medicamentos como a oxicodona e o fentanil.

Assim sendo, atualmente para tratarmos a dor em milhares de pacientes podemos utilizar a morfina e o ópio, produtos que são convertidos em heroína quando ingeridos pelo organismo, mas não podemos usar a cannabis e seus derivados.

Em contrapartida ao grande perigo do abuso de analgésicos opioides, não existem registros de mortes devido ao uso informal da cannabis. Em um texto do Instituto Nacional de Abuso de Drogas americano, está claramente descrito que “não há relatos de adolescentes ou adultos que tenham morrido por uma sobredose de cannabis somente”.

Indicações médicas

Então, ainda resta a pergunta: a cannabis serve para o tratamento de doenças?

Temos somente uma resposta parcial, já que o desenvolvimento da ciência séria, conduzida com método reconhecido, toma muito tempo e, portanto, ainda está engatinhando após a proibição no século passado. Mas estamos avançando a passos largos.

Já temos 42 indicações médicas, com vários níveis de evidências, como as reconhecidas pelas autoridades médico-sanitárias do Canadá, país no qual desde o ano 2000 já se pode utilizar a cannabis como medicamento. Outro país bastante avançado nas pesquisas é Israel, onde foi descrito o mecanismo de ação da cannabis e o sistema endocanabinoide, o qual está presente em todos os mamíferos.

No Brasil, o Dr. Elisaldo Carlini foi um dos pesquisadores que nos anos 60, além de colaborar com o Dr. Raphael Mechoulam de Israel, desenvolveu várias pesquisas com canabinoides. Uma das consequências de suas pesquisas foram algumas visitas que recebeu da polícia buscando drogas ilícitas em sua posse. E isso me leva a pensar no porquê os pesquisadores de heroína não tiveram problemas com a polícia para desenvolver seus medicamentos.

Nos últimos 10 anos, houve uma explosão do interesse pela pesquisa com canabinoides, já que as legislações de países que tradicionalmente desenvolvem pesquisa clinica foram aos poucos permitindo a produção e a importação dos extratos de cannabis para fins de estudo.

No Brasil, já temos um medicamento à base de cannabis aprovado para a espasticidade muscular em pacientes portadores de esclerose múltipla. Essa indicação abrange um número muito pequeno de pacientes, além de ter custo proibitivo para a grande maioria da população.

Existem várias outras indicações que poderiam ser feitas para tratamento com cannabis medicinal, como por exemplo a epilepsia refratária a medicamentos convencionais em crianças maiores de dois anos ou adultos. Ou mesmo como coadjuvante no tratamento de dores crônicas, possibilitando a redução do uso de opioides. Outras indicações médicas estão em desenvolvimento ao redor do mundo: autismo, enxaqueca, distúrbios do sono, fibromialgia, obesidade, ansiedade, depressão, espasticidade muscular resultante de doenças neurológicas crônicas como esclerose lateral amiotrófica (ELA), doença de Crohn, síndrome do intestino irritável, anorexia nervosa, náuseas e vômitos resultantes de quimioterapia, glioblastomas (um tipo de tumor do cérebro), como estimulante de apetite e ganho de peso para pacientes com AIDS, disfunções sexuais e várias outras. É importante frisar que a cannabis não serve para tudo. Ela tem suas indicações em doenças que podem ser modificadas pelo nosso próprio sistema endocanabinoide.

Princípios ativos: canabidiol e tetra-hidrocanabinol

As formas farmacêuticas da cannabis são cápsulas gelatinosas, óleo de uso sublingual, spray, cremes dermatológicos, extratos e flores secas para vaporização controlada sem relação com a utilização ilegal que é feita para recreação. Quando comparamos o uso médico e o uso recreacional, os conceitos são muito diversos, as concentrações são muito diferentes, a extração dos princípios ativos (canabinoides) também é diferente, bem como a proporção desses mesmos princípios ativos.

Um dos princípios ativos essenciais é o canabidiol ou CBD, que compõe 40% do que é extraído da planta e não tem efeitos euforizantes. Tem propriedades analgésicas e anti-inflamatórias e é sedante e ansiolítico.

O outro princípio ativo é o THC ou delta 9 tetra-hidrocanabinol, o qual possui efeito euforizante e psicoativo e tem propriedades terapêuticas em concentrações muito menores em comparação com aquelas utilizadas no uso recreacional.

Existem outras 400 substâncias no extrato da cannabis, em quantidades extremamente pequenas, que também podem fazer parte dos seus efeitos terapêuticos. As principais são os terpenos e flavonoides, que dão o aroma característico a cada tipo de planta. Atualmente, sabemos que o CBD ou o THC isolados ou sintéticos não têm o mesmo efeito terapêutico quando comparados nas mesmas condições com os extratos completos da planta.

Nova classe de medicamentos

Afinal de contas, a cannabis tem lugar no rol de medicamentos utilizados hoje por médicos para tratar algumas doenças? A resposta é sim. Ainda que sua utilização esteja limitada a poucas indicações aprovadas até agora, estamos desenvolvendo a ciência por detrás das prescrições para ampliarmos o uso da cannabis como um medicamento.

Quando combinamos os dois princípios ativos, CBD e THC, em proporções diferentes determinadas pelas pesquisas clínicas, os médicos devidamente treinados na utilização dessa nova classe terapêutica têm ao seu alcance mais uma ferramenta terapêutica potente para adicionar aos tratamentos em uso em várias doenças.

Muito importante lembrarmos aqui que estamos falando de medicamentos à base dos componentes da cannabis com grau farmacêutico, ou seja, com os mesmos controles rígidos de produção como em qualquer outro medicamento. E podem existir muitos riscos no uso empírico de qualquer substância. Esses riscos são maiores ainda quando estamos tratando de um extrato de planta sobre a qual não existem controles rigorosos de muitos detalhes importantes, como os componentes de sua genética (o que ela vai produzir?), o solo (o que a planta vai usar como nutriente?), a quantidade e qualidade da água (imaginemos tudo que recebemos na água fornecida pelos municípios), tipo e quantidade de luz (importante para o crescimento sadio da planta) e controles de pragas, metais pesados, pesticidas e tantas outras substancias que podem ser incorporadas em seu extrato.

Portanto, precisamos estar conscientes do que consumimos como medicamento e a cannabis não é uma exceção.

O panorama do uso da cannabis e seus derivados como medicamento no Brasil ainda é incerto. Estamos passando por um período de espera da publicação de uma regulamentação preparada pela ANVISA (ver nota da redação no início do artigo), nosso órgão de regulação sanitária e que tem como uma de suas principais responsabilidades regular como os medicamentos são introduzidos no País e como serão prescritos pela classe médica e utilizados pela população para garantir a segurança de todos.

Por enquanto, como médicos e pacientes nos resta apenas o caminho de importação individual, que demanda uma prescrição, um relatório médico completo e um termo de responsabilidade que devem ser submetidos à aprovação da ANVISA para que seja emitida a permissão de importação. E, a partir daí, trazer o produto de algum país no qual o mesmo esteja disponível e que permita a exportação, pagando preços abusivos e na maioria das vezes proibitivos.

Sabemos que existe um mercado paralelo de produtos à base de cannabis. Esses produtos podem conter CBD e/ou THC ou simplesmente óleo de oliva com orégano, na melhor das hipóteses. Conversando com um professor de toxicologia de uma universidade pública, ele mencionou que a grande maioria dos produtos comprados no mercado paralelo e que foram analisados no departamento não continham as quantidades alegadas dos princípios ativos e alguns continham outras substâncias como meta-anfetamina e mesmo cocaína. Isso é um risco muito grande para a saúde de qualquer um que recorre a esse tipo de mercado. Principalmente aqueles que estão enfermos e precisam do medicamento para diminuir seu sofrimento.

Seguimos avançando com a pesquisa clínica no Brasil e em outros países, para que possamos ter segurança em prescrever essa nova classe de medicamentos, com base na ciência e fatos.

Apesar do atraso, estamos colocando a ciência por trás da prescrição médica da cannabis.


Dr. Wellington Briques – Médico e Diretor de Pesquisa e Desenvolvimento e Medical Affairs da Canopy Growth para LATAM e Caribe.