Ecologia acústica: saúde para ouvir o mundo e criar nossas paisagens sonoras – Parte II

O conceito de paisagem sonora (soundscape), derivado de paisagem (landscape), ganhou muita notoriedade a partir da década de 1970. Os primeiros autores a adotarem esse termo foram Murray Schafer, em sua obra sobre exercícios de escuta, Ear Cleaning, e Michael Southworth, em sua dissertação de mestrado em urbanismo, ambas publicadas em 1967.

Uma paisagem descreve os elementos visuais de um determinado ambiente, enquanto a paisagem sonora descreve os elementos sonoros, quaisquer detalhes possíveis de serem ouvidos, ou não, em determinado espaço físico, ou seja, tudo o que o ouvido humano é capaz de perceber em um intervalo de tempo ou, ainda, os sons inerentes a certo local.

Em entrevista concedida a Jesse G. L. Stewart, em 2013, Schafer definiu paisagem sonora como “o ambiente acústico total em que vivemos”. Ele também criou uma terminologia para descrever a paisagem sonora, com três classes fundamentais para a investigação do fenômeno: soundmarks – sons culturalmente significativos, keynotes – sons de operação contínua que estabelecem um fundo sonoro e sound signals – sons que figuram no primeiro plano da paisagem sonora.

John M. Picker realizou, em 2019, uma pesquisa histórica sobre o termo paisagem sonora, traçando uma linha do tempo com mais de cem anos em que ele foi utilizado em diversos contextos. Localizou o primeiro registro em uma matéria publicada em 1907, por George Harvey, editor da revista nova-iorquina Harper’s Weekly, em um contexto pictórico-sinestésico que se referia à captação de um ambiente costeiro em uma pintura feita pelo impressionista Edward Simmons, que adornava a lareira da casa do dramaturgo Augustus Thomas.

Em 1911, nas páginas de uma revista automobilística, há um relato de viagem pela região costeira de Long Island, que faz referência ao som paisagístico da península de Fort Schuyler. E de forma incipiente o termo foi usado na primeira metade do século XX. Picker encontrou o termo soundscape, no período após a Segunda Guerra Mundial, em publicações sobre as músicas de Debussy e Duke Ellington ou numa crítica sobre a Filarmônica de Boston performando a Sinfonia nº 6 de Mahler ou, ainda, como forma da compositora Hildegard Westerkamp descrever seu estilo de composição, após o início de seu trabalho no World Soundscape Project desenvolvido por Murray Schafer.

Picker resgatou também uma publicação de 1966 sobre o evento National Conference on the Uses of Educational Media in the Teaching of Music, realizado em 1964, quando o arquiteto e inventor Buckminster Fuller inaugurou o emprego do termo soundscape com o sentido de campo sonoro da humanidade.

Com todas essas referências, fica evidente que Murray Schafer não criou a palavra soundscape, mas criou o conceito que lhe deu significado e a espalhou pelo mundo. O estudo de Picker credita a Schafer a disseminação e contextualização do termo soundscape em seu alcance e sentido mais amplos, através da publicação e repercussão do livro A Afinação do Mundo.

Primeira investigação do ambiente sonoro das cidades

Um ano após a publicação da fala de Buckminster Fuller, o engenheiro Michael Southworth, formado pelo MIT (Instituto de Tecnologia de Massachusetts), obteve seu título de mestrado em planejamento urbano, com a dissertação The Sonic Environment of Cities, sobre a identidade sonora das cidades, em que investigava a percepção de um grupo de quinze moradores de Boston em relação a aspectos sonoro-visuais de um perímetro dessa cidade.

Os objetivos principais eram analisar a forma como as pessoas percebem a paisagem sonora, observar as características e o resultado que configurariam essa paisagem e estabelecer critérios para o desenvolvimento de projetos de sound design.

Foi a primeira vez que o termo paisagem sonora (soundscape) foi publicado em um artigo científico sobre questões ambientais e de planejamento urbano.

Nesse mesmo ano, Schafer também utilizou essa expressão em seu livreto Ear Cleaning, sobre educação sonoro-musical.

Segundo Southworth, para que se chegasse a escrever sobre paisagem sonora, foi necessário um longo caminho de degradação dos ambientes por meio da poluição sonora. A escrita sobre o tema da poluição sonora começou com relatos sobre a dificuldade dos moradores da cidade-estado de Roma em dormir com o barulho nas ruas, durante o período de ascensão do general Julius Caesar. E assim o tema do barulho seguiu sendo o proeminente nos escritos até o século XX.

Southworth deixa claro que a ênfase de sua pesquisa é o som, que os projetos urbanísticos até aquele momento consideravam predominantemente os aspectos visuais e que uma cidade ideal deveria ser planejada para agradar a todos os sentidos, pois existe uma miríade de sensações auditivas, visuais, olfativas e táteis, que se interligam formando a percepção do ambiente. Sua contribuição está em uma abordagem detalhada e integrada de um desses aspectos não visuais, o ambiente sonoro, com todo seu espectro que engloba desde as sutilezas das gotas d’água caindo dos telhados até os jatos dos aviões que rasgam os céus.

Em sua obra The Sonic Environment of Cities, acima citada, Southworth organizou as seções e tópicos subdividindo-os em análises, experimentos e design. As análises referiam-se às interações entre visão e audição, efeitos do som na comunicação e aprendizado, realização de tarefas relacionadas ao som e investigações psicofísicas (limiares de frequência e intensidade, reações a variações sônicas e efeitos de incômodo e aceitação). Os experimentos envolviam a observação das diversas qualidades de som, em diferentes períodos do dia, diferentes dias da semana e condições climáticas variadas. E o design objetivava a definição de critérios para o desenvolvimento de projetos e possibilidades.

No estudo de Southworth, foram feitas análises sobre os tipos sonoros, suas qualidades e distribuição no tempo e no espaço e sobre como os sons relacionam-se com as formas visuais e as atividades. Em sua pesquisa a respeito da percepção, há diferenciação entre os períodos do dia, entre os dias da semana e entre as diferentes condições de clima, além da abordagem sobre a interatividade existente entre visualização e audição.

Esse trabalho de Southworth, além das considerações puramente técnicas, apresenta um conceito parcialmente subjetivo que tem como referências a psicologia experimental de Woodworth e Schlosberg e relatos sobre a percepção do ambiente por pessoas cegas em um mundo predominantemente sonoro e por pessoas surdas em um mundo predominantemente visual, fornecendo elementos para a busca de uma melhor compreensão das correlações entre ver e ouvir.

Outro aspecto de vanguarda é a enunciação de critérios para um possível planejamento sonoro (sound design) das cidades.

Para a realização desse estudo, Southworth determinou uma área de pesquisa com quatro quilômetros e meio de extensão, na região central de Boston, onde escolheu 33 pontos chamados de configurações, em uma sequência de mudanças de formas e atividades que se apresentavam nesse trecho da cidade. Essas 33 configurações foram visitadas em diferentes horários e condições meteorológicas, obedecendo a sequência do primeiro ao trigésimo terceiro ponto de referência. Não há indicação sobre o intervalo de tempo exato gasto na realização da pesquisa de campo, já que Southworth faz apenas referência a um período de meses.

O trajeto foi feito por cinco grupos com três pessoas em cada um, ora vendadas e conduzidas em cadeiras de rodas, para terem a audição aguçada sem se preocuparem com obstáculos, ora com a audição atenuada ao máximo, fazendo uso de protetores auriculares para aguçarem a visão e, por fim, com ouvidos e olhos livres.

É notável a contribuição oferecida por dados e reflexões sobre a audição das pessoas cegas, evidenciando a importância da associação entre som e imagem para que o mundo seja registrado da maneira característica como é feita pelos que possuem visão e audição satisfatórias. Quando a visão fica fora da equação, o potencial e os limites da audição podem ser melhor compreendidos. Há uma percepção mais sequencial do ambiente, com os sons predominantes ocupando o centro da imagem mental projetada. Portanto, para a pessoa cega o cenário de uma rua pode ser uma sequência de carros passando, que dará lugar a uma revoada de pássaros, podendo significar a perda da informação de que esses carros pararam em um semáforo e por isso foi possível ouvir os pássaros em primeiro plano.

A experiência de vida é composta a cada instante, com a fusão de uma quantidade imensa de informações de todos os matizes. A familiaridade dos sons que se repetem é outra marca para estabelecer uma relação segura com o espaço. A introdução de sons inéditos pode transformar, em segundos, um lugar conhecido em terra estrangeira.

Condições atmosféricas e de textura também influenciam na acuidade da captação da informação sonora e orientação territorial. O tempo frio e seco aumenta a precisão da escuta de um pedestre cego que precise atravessar a rua, enquanto que a chuva e o asfalto molhado geram uma cacofonia de informações que retira a segurança da imagem que esse pedestre teria dos deslocamentos sonoros dos veículos, desorientando-o. Em condições favoráveis, quando há competição entre sinais sonoros distintos, a prioridade é sempre para o evento mais recente da série, que se destacará como referência.

Essas e outras investigações efetuadas durante a pesquisa mostram que a percepção do mundo puramente através da audição projeta configurações de espaço e forma muito ou totalmente diferentes da realidade visível. Nesse sentido, Barrett e Truax acrescentam a seguinte imagem: se nada ocorrer sonoramente, o espaço desaparece. Portanto, o nosso senso de tempo e o ambiente acústico são criados pelo som.

O que Schafer chama de ambientes sonoros de baixa ou alta fidelidade, Southworth denomina como ambientes sonoros com pouca ou muita informação, fazendo uma ligação entre o desprazer de ouvir um ambiente que cobra muito e entrega pouco e o prazer daquele que possibilita muito e entrega muito.

Outra abordagem de destaque para o propósito da pesquisa foi estudar os impactos psicológicos da perda repentina da audição em pessoas saudáveis, registrados pelo Hospital Militar Deshon, na Pensilvânia, EUA. Para essas pessoas, a falta do som cortou conexões com a vida, tornando-a uma pantomima ininterrupta de difícil assimilação, por gerar a sensação de estarem fora da ação da vida e de uma vida sem continuidade num mundo que parece morto. O mundo repentinamente sem som, ao se estabelecer como uma condição permanente, tende a deprimir profundamente o sujeito atingido.

A respeito das configurações da interrelação virtuosa ou deficitária entre os campos visual e sonoro e do impacto que elas exercem na percepção das cidades, Southworth afirma que “se espera, então, que a visão e a audição juntas tornem a percepção da cidade potencialmente mais informativa e contrastante, e que a visão sem audição seja mais monótona e dependa de uma dramática atividade espacial, cor, iluminação e atividade visível para despertar interesse. Para as pessoas que ouvem e veem, espera-se que as configurações com sons que apoiam a atividade visível e a forma espacial sejam mais dominantes, desde que também sejam mais informativas e únicas ou contrastadas em relação a outras configurações em uma sequência. Por outro lado, espera-se que as configurações com sons que não se encaixam no que é visto causem um canal de interferência e uma resultante diminuição na transmissão de informação. Espera-se que as configurações preferidas sejam menos exigentes em atenção e permitam, mas não forcem, um envolvimento pessoal, tanto sonoro quanto visual”.

Entre os resultados obtidos com os experimentos realizados durante a pesquisa, destaca-se ainda a impossibilidade do bloqueio total do canal auditivo através de plugues. Mesmo com a utilização de um aparelho de encaixe ideal, só foi possível bloquear 100 dbA dos sons externos, sendo que se observou também que entre 50 e 60 dbA entravam pelos ossos do crânio e mesmo pelo peito e abdome. Ficou ainda evidenciada uma facilidade maior de memorização de imagens quando associadas aos sons.

Em seu texto, Southworth ressalta o caráter experimental de seu trabalho e adota analogias com a arte em alguns trechos, como ao ilustrar sua ideia de desfrute da cidade pela população, comparando-o com o prazer de tocar instrumentos musicais. Segundo Picker, Southworth foi o melhor precursor de Schafer. Este trecho mostra a clareza do papel inovador de Southworth, segundo ele próprio: “até onde chega o conhecimento deste autor, o design do ambiente sonoro nunca foi feito ou mesmo contemplado na escala da cidade. O que houve de mais próximo foram as tentativas de controle de ruído, mas elas são projetadas apenas no sentido mais estreito e estão mais preocupadas com o silêncio do que com o som”.

 Revoluções e contrarrevoluções

O conceito de design acústico nasceu do conceito de design industrial desenvolvido pela escola germânica Bauhaus, em que se combinava a ciência dos sons com a arte dos sons de forma integrada em duas disciplinas: projeto acústico e ecologia acústica.

Para Schafer, “a mais importante revolução na educação estética do século XX foi a executada pela Bauhaus. Muitos pintores famosos ensinaram na Bauhaus, mas os alunos não se celebrizaram porque o objetivo da escola era outro. Colocando lado a lado as belas-artes e as técnicas industriais, a Bauhaus inventou todo o novo tema do desenho industrial”.

E traçando um paralelo com sua própria empreitada junto ao World Soundscape Project, ele afirmou que “uma revolução equivalente está agora sendo exigida entre os vários campos de estudos sônicos. Essa revolução consistirá na unificação das disciplinas ligadas à ciência e à arte dos sons. O resultado será o desenvolvimento das interdisciplinas ecologia acústica e projeto acústico”.

A compositora Hildegard Westerkamp diz que os aspectos da escola Bauhaus que atraíram Schafer foram o treinamento interdisciplinar, a prática de projetos e as conexões entre o artesanal e a produção em escala e entre a funcionalidade e a criatividade.

Ela afirma que os integrantes do World Soundscape Project percebiam-se fazendo ligações semelhantes, como projetistas acústicos da vida cotidiana, que estudavam e se familiarizavam com os vários aspectos científicos do som, com o propósito de unir as diversas profissões que lidam com som, ruído e acústica, de forma a propor mudanças factíveis para o mundo real.

“A experiência profundamente enriquecedora de trabalhar como um membro do World Soundscape Project estava conectada ao esforço sincero do grupo em combinar conhecimento científico e conhecimento artístico e perceptivo do som”, afirma Westerkamp. “Foi precisamente nessa combinação de pesquisa, educação, criatividade e ativismo que a energia do WSP estava localizada e foi isso que nos permitiu produzir, em tempo relativamente curto, um número de projetos e documentos pioneiros”.

No entanto, mesmo com os avanços, ela aponta que a ideia de unificação das disciplinas de acordo com a proposta original de Schafer ainda não se concretizara. Talvez pelo fato de o estudo da paisagem sonora revelar muitos problemas ecológicos. Mas reconhece que, aos poucos, pesquisadores e profissionais diversos reúnem-se como forma de ampliarem sua prática, se bem que a maioria das pessoas engajadas diretamente continua sendo formada por compositores e músicos.

Westerkamp associa a intenção do design simples, sem “ruídos” visuais, proposto pela Bauhaus, ao silêncio como base para o design acústico da paisagem sonora. Vê nessa abordagem uma eliminação dos floreios em excesso da burguesia europeia.

O trabalho da Bauhaus foi esteticamente transformador, mas foi adotado e explorado pelos donos do capital, resultando em grandes edifícios de aço, concreto e vidro e dependentes de luz elétrica e ar-condicionado. Esses prédios são ruins do ponto de vista puramente ecológico, por não se utilizarem da luz e do ar naturais, e também da ecologia acústica, por terem uma acústica que não privilegia a inteligibilidade e o conforto auditivo. O conjunto final de ruídos desse tipo de edificação foi sinestesicamente chamado por Schafer de “mau hálito”.

Esses enormes edifícios de aço, concreto e vidro espalharam-se pelo mundo, levando aos grandes centros urbanos uma mesmice visual e auditiva. Um evento que ocorreu após o advento desse tipo de arquitetura foi a criação da empresa Muzak, que distribuiu o marasmo sonoro por essas edificações mundo afora, neutralizando a força da música, banalizando os ambientes, despersonalizando as cidades e criando o que ficaria conhecido como “música de elevador”. Isso mostra a necessidade, sob o olhar da ecologia acústica, das especificidades, das características locais, de ressaltar o que é único em cada espaço e cultura.

Como ressalta Westerkamp, essa construção alienada da sua localidade não era a intenção da Bauhaus, que teve os pintores Wassily Kandinsky e Paul Klee entre seus professores, mas se tornou um marco da internacionalização. Se fôssemos resgatar ideias originais de funcionalidade dessa escola, seria preciso submetê-las à transformação causada pelos efeitos nocivos da sociedade industrial e do pensamento corporativo, olhando diretamente para o ambiente natural como força de inspiração e beleza para uma nova urbanidade.

E para reverter os malefícios dessa configuração, os criadores dessa nova urbanidade seriam arquitetos compositores dos novos projetos acústicos e precisariam dialogar com a linguagem concreta do ambiente sonoro no contexto da ecologia acústica e ter a responsabilidade de cuidar das paisagens sonoras.

Escutando cidades

Em 1994, a convite do Instituto Goethe, Westerkamp ministrou um workshop, em Brasília, sobre paisagem sonora e assim pôde explorar as sonoridades brasilienses durante cinco semanas. Com base nessa experiência, ela aprofundou algumas elaborações sobre pontos de influência da escola Bauhaus, tendo como objeto de reflexão essa cidade construída no interior do Brasil, cujo projeto, criado por Lucio Costa e Oscar Niemayer, foi influenciado por tais conceitos. Assim, Westerkamp fez as seguintes perguntas: o que acontece com a paisagem sonora de uma cidade projetada do zero e baseada em um plano diretor? O som figurou no esquema do projeto?

Ao observar a disposição do trânsito de veículos pelo eixo monumental, percebeu a preocupação com a fluidez, mas questionou se no projeto houve preocupação com o ambiente sonoro, já que nessas grandes vias de tráfego em Brasília é possível enxergar longe, mas sem que a audição possa acompanhar a grandiosidade do cenário. Há muito para ver e apenas motores para ouvir, criando uma desconexão. No entanto, em um curto espaço de tempo, ao se afastar do eixo monumental, é possível encontrar paisagens sonoras repletas de sons naturais e quietude, o que resulta em uma cidade de enorme contraste sonoro entre ruído de tráfego e sons naturais, quando além dos motores é possível ouvir grilos e cigarras.

Westerkamp registrou a falta dos sons sociais humanos gerados pelas esquinas, bares, cafés, restaurantes e pequenas praças de uma cidade comum, sons que em Brasília ficam circunscritos aos aglomerados das regiões residenciais e comerciais das superquadras e lá ouviu afirmações sobre a preocupação acústica do arquiteto Lucio Costa, que teria sido uma das razões para os edifícios terem no máximo até seis andares. Apesar de fazer esse relato textualmente, ela ressalta que não encontrou um registro oficial que confirmasse a intenção do arquiteto em limitar a altura dos prédios dentro de uma escala humana que permitisse aos pais e filhos comunicarem-se das janelas para a rua e vice-versa.

Mas é possível averiguar que essa hipótese idílica que despertou a curiosidade de Hildegard Westerkamp de fato se confirma nas palavras arquitetadas poeticamente pelo próprio Lucio Costa, em sua autobiografia, ao referir-se à concepção dos prédios residenciais de Brasília: “para conciliar a escala monumental, inerente à parte administrativa, com a escala menor, íntima, das áreas residenciais, imaginei as superquadras – grandes quadrados com 300 metros de lado – que propus cercadas em toda a volta por uma faixa de 20 metros de largura plantada com renques de árvores cujas copas se tocam, que mexem com o vento e respiram, formando assim, em vez de muralhas, enquadramentos vivos, abrindo para amplos espaços internos. Creio que houve sabedoria nesta concepção: todos os prédios soltos do chão sobre pilotis, no gabarito médio das cidades europeias tradicionais – antes do elevador –, harmoniosas, humanas, tudo relacionado com a vida cotidiana; as crianças brincando à vontade ao alcance do chamado das mães”.

Outro ponto que chamou a atenção de Westerkamp foi o fato de Brasília não possuir sinais ou marcas sonoras expressivas da vida na cidade. É o oposto do que acontece em uma cidade mais tradicional como Vancouver, que possui o apito a vapor da marina como sinal sonoro ou o relógio a vapor como marca sonora na praça Gastown. Como visitante, sua recordação sonora do setor dos hotéis em Brasília ficou marcada pelo ruído constante dos automóveis e pela constatação de que o espaço acústico ocupado pelo barulho da frota de carros é muito maior do que o espaço geográfico das avenidas do eixo monumental.

Para ilustrar a diferença sonora entre as cidades, Westerkamp comparou Brasília com Nova Deli, na Índia, que também funciona como capital federal. A importância política e a escala monumental das edificações e traçados urbanísticos são as únicas similaridades entre as duas cidades, pois cultural e sonoramente são muito diferentes. Nova Deli tem origens que remontam há dois mil anos, mas adquiriu status de capital em 1912, por determinação do Império da Grã-Bretanha no período em que dominou a Índia. Os arquitetos britânicos Herbert Baker e Edwin Lutyens foram responsáveis pela maioria dos projetos urbanísticos da nova capital, com vias largas, rotatórias, gramados e fileiras duplas de árvores, o que gerou um contraste entre novas áreas monumentais e velhas áreas labirínticas dentro da mesma cidade, por onde se espalhavam dez milhões de pessoas à época da visita de Westerkamp.

Diferentemente do fluxo contínuo dos automóveis modernos de Brasília, que criam um ruído uniforme com algumas variações em que pouco se vê dos humanos que os guiam, em Nova Deli há um tráfego apenas caótico à primeira vista, pelo número de veículos que simultaneamente disputam espaço em todas as direções, com seus motoristas expostos e vocalizando uma espécie de Babel motorizada. Mas com o  passar do tempo, Westerkamp ouviu o que lhe pareceu um surpreendente código social dos motoristas, que utilizam suas buzinas para se comunicarem de uma maneira nunca vista e ouvida por ela, em que raramente gritam “sai da frente!”, mas em vez disso dizem “ei, eu quero passar, me dê algum espaço!”. Foi assim que Westerkamp descreveu o trânsito e o som próximos ao local onde se hospedou: “todos parecem se mover em todas as direções ao mesmo tempo, ninguém fica nas pistas, ninguém para ou espera, todos continuam se movendo, encontrando os espaços vazios onde quer que estejam, movendo-se uns em torno dos outros, em volta de vacas, carroças com cavalos, bicicletas, pedestres. E todo mundo buzina. Buzine por favor!, diz em muitos caminhões e tuk-tuks”.

A paisagem sonora da cidade de Nova Deli, segundo Westerkamp, reflete os padrões intrincados das relações sociais e suas marcas e sinais sonoros em escala humana, que ainda não contam com tantas supermáquinas sonoras, permitindo assim que sons artesanais de menor volume sejam ouvidos e marquem presença, seja no tráfego, comércio ou espaços religiosos, em uma trama sonora muito expressiva, apesar das contradições de difícil compreensão que saltam aos olhos e ouvidos ocidentais.

Não há marcas da escola de Bauhaus em Nova Deli, podendo ser vista como o oposto de Brasília e exibindo porções diversas da história política, social e cultural da Índia, do passado distante à contemporaneidade.

Já Brasília lhe pareceu mostrar um isolamento do Brasil real. Mas mesmo a arquitetura e a paisagem criadas de cima para baixo no intuito de desenvolver o Brasil interiorano, não evitam que a realidade social e cultural do País apareça em suas cidades-satélites, bolsões dos trabalhadores que servem Brasília todos os dias, num fluxo que soa totalmente diferente do de Nova Deli.

Westerkamp registra que ouviu, inúmeras vezes, moradores de Brasília dizerem que gostam de viver na cidade. Ela diz entender que a organização e praticidade podem ser grandes atrativos, além da anonimidade cultural que permite maior liberdade física e psíquica para alguns inventarem uma nova vida longe das tradições, ponto com o qual se identificou por ter migrado da Alemanha para o Canadá.

Westerkamp chama atenção para a insuficiência de centrar esforços em medições e legislação antirruído, sem que se atente para a relação que temos com o ambiente, pois consciente ou inconscientemente nós ouvimos e fazemos sons.

Ela fala ainda sobre a natureza disruptiva da escuta quando é imposta, fechando os canais de percepção. Ao receber uma ordem para escutar, a reação de fechamento do indivíduo é semelhante a que ocorre numa exposição a um pico violento de ruído. Por outro lado, quando desenvolvida com delicadeza, a escuta rompe com padrões estabelecidos de comportamento e percepção, podendo levar à conscientização sobre perturbações interiores e padrões sociais insalubres. Westerkamp afirma que a escuta nunca é estática, é um estado. E, por ser um processo contínuo, precisa ser encontrada e reencontrada muitas vezes, pois nos escapa.


Paulo Henrique Carvalho dos Passos – Graduado em Musicoterapia pelo Centro Universitário das Faculdades Metropolitanas Unidas (FMU-2015), pós-graduado em Musicoterapia Preventiva e Social (FMU-2019) e Mestre em Saúde Ambiental, com a dissertação “Ecologia Acústica e a Requalificação da Paisagem Sonora” (FMU-2020). Tem experiência profissional como músico desde 1987. Na área da saúde, trabalha como musicoterapeuta desde 2015, em consultórios, clínicas, escolas e domicílios, tanto no campo da saúde individual quanto da coletiva. Foi preceptor da Clínica de Musicoterapia da FMU, em 2019. Apresentou o evento internacional de saúde ambiental XXXVII Encontro Anual de Etologia, em novembro de 2019. Atualmente é docente da Graduação em Musicoterapia da FMU.

 

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