Estado de implementação das práticas integrativas e complementares na atenção básica de saúde

A Organização Mundial de Saúde (OMS) define as práticas integrativas e complementares (PICs) como práticas de saúde que não estão plenamente integradas ao sistema de saúde de um país.

Contudo, a OMS reconhece a importância das PICs para o enfrentamento de diversos problemas de saúde encontrados no mundo, sem restrição ao estado de desenvolvimento econômico dos países, uma vez que essas práticas destacam-se, em especial, por adotarem recursos terapêuticos, abordagem holística e conhecimentos tradicionais, levando em consideração a integralidade da pessoa, o que as distingue de forma marcante do modelo biomédico convencional.

O embasamento legal da implementação das PICs no Brasil, por meio do Sistema Único de Saúde (SUS), consolida-se por meio da Portaria nº 971/2006, a qual define o Programa Nacional de Práticas Integrativas e Complementares (PNPIC), que é composto atualmente por 29 práticas: apiterapia, aromaterapia, arteterapia, ayurveda, biodança, bioenergética, constelação familiar, cromoterapia, dança circular, geoterapia, hipnoterapia, homeopatia, imposição de mãos, medicina antroposófica/antroposofia aplicada à saúde, medicina tradicional chinesa/acupuntura, meditação, musicoterapia, naturopatia, osteopatia, ozonioterapia, plantas medicinais/fitoterapia, quiropraxia, reflexoterapia, reiki, shantala, terapia comunitária integrativa, terapia de florais, termalismo social/crenoterapia e yoga.

Apesar de sua incorporação ao SUS e de evidências científicas que apontam as práticas integrativas e complementares como geradoras de benefícios à saúde quando integradas à medicina tradicional, observa-se uma lacuna na inserção das PICs na graduação e níveis posteriores de formação acadêmica dos profissionais da área da saúde, assim como na atuação profissional.

Essa ausência resulta em uma escassez de conhecimento, em grande parte, entre os profissionais sobre a existência e aplicabilidades dessas práticas para os diversos problemas e desafios de saúde encontrados no cotidiano.

Essa constatação corrobora com a perspectiva do Ministério da Saúde, apontada num relatório divulgado em 2018, o qual revela que somente 54% dos municípios brasileiros implementam alguma modalidade de PICs, sendo que em 78% dos casos essa implementação ocorre no nível de atenção básica à saúde.

Esse fato permite-nos inferir que as PICs são grandes aliadas à atenção básica à  saúde e por isso devem ser financiadas e fomentadas pelo poder público, de modo a favorecer ainda mais o crescimento dos profissionais capacitados e a ampliação dos espaços físicos para aplicação das práticas integrativas e complementares, que por sua vez aumentam a valorização dos conhecimentos tradicionais de onde se originaram algumas dessas práticas.

Revisão sistemática

Para validar a preposição de que há uma carência de conhecimento quanto à existência e aplicabilidade das PICs, realizou-se uma busca sistemática na base de dados SciELO, no dia 13 de agosto de 2023, que resultou em 225 documentos no total.

Destes selecionaram-se para amostra dos estudos documentos brasileiros (128), publicados nos últimos 10 anos (112) e delimitados à área de ciências da saúde (99), dos quais 94 aparecem publicados em português, sendo que os demais não compuseram a amostra por buscar-se estudos nacionais.

Consideraram-se ainda, para composição da amostra, os documentos passíveis de citação, chegando-se então a um resultado de 91 documentos que se apresentaram distribuídos da seguinte forma: 83 artigos, seis artigos de revisão e dois relatos de casos.

A pesquisa foi atualizada em 12 de dezembro do mesmo ano e o novo resultado teve acréscimo de 11 pesquisas, sendo que apenas quatro seguiram os critérios de seleção pré-estabelecidos na fase anterior (estudos brasileiros, delimitados à área de ciências da saúde e passíveis de citação). Com isso, o resultado atualizado da amostra final para discussão deste estudo foi sintetizado em 95 documentos.

Diante desse resultado, visando maior aderência dos estudos ao objetivo desta discussão, realizou-se inicialmente a leitura de título de todos os documentos e dos 95 somente 73 apresentaram adequação à proposição delimitada. Na sequência, realizou-se a leitura dos resumos e então apenas 55 dos documentos fizeram-se congruentes. Esses documentos foram lidos na íntegra pelos autores deste artigo e o resultado foi de 43 documentos selecionados para contribuir com a reflexão aqui apresentada.

Destaca-se que a seleção dessa amostra final teve como base os 10 itens de verificação de avaliação crítica da organização internacional de pesquisa em saúde, conhecida como Joanna Briggs Institute (JBI) e suas entidades colaboradoras.

O resultado apresenta-se sintetizado a seguir (Figura 1), por meio do diagrama de fluxo de revisão sistemática do Preferred Reporting Items for Systematic Reviews and Meta-Analyses (PRISMA).

Uso das PICs no SUS
Fig. 1 – Prisma (Preferred Reporting Items for Systematic Reviews and Meta-Analyses) da busca sistemática realizada na base de dados SciELO, para a elaboração deste artigo sobre aplicabilidade das PICs. Fonte: elaborado pelos autores.

Diante da leitura integral dos documentos, notou-se uma desigualdade na menção explícita às PICs quanto ao seu uso e implementação. Logo, buscou-se a análise dessa distribuição, a qual foi baseada nas 66 menções explícitas a uma prática integrativa em específico nos documentos selecionados para a amostra final.

Fitoterapia

A prática integrada e complementar mais citada foi a FITOTERAPIA, com 24% das citações.

Enquanto abordagem terapêutica, a fitoterapia contempla o uso de plantas, cultivadas ou não, sem o isolamento farmacológico do efeito ativo.

Trata-se de uma prática que faz uso intenso dos conhecimentos tradicionais, muitas vezes emergentes da disponibilidade das plantas na comunidade local.

A utilização da fitoterapia é pautada na análise cuidadosa de via de administração, efeitos adversos, interações medicamentosas e contraindicações das plantas, buscando uma abordagem integral e racional do seu uso.

Através da Política Nacional de Plantas Medicinais e Fitoterápicos, aprovada em 2006, o SUS oferece à população doze medicamentos fitoterápicos, os quais estão presentes na Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (RENAME), documento que norteia profissionais de saúde para a prescrição, dispensação e promoção do uso racional dos medicamentos.

Acupuntura

A ACUPUNTURA foi a prática que conquistou a segunda colocação, com 19% de todas as menções.

Destaca-se como uma parte da milenar medicina tradicional chinesa, podendo ser aplicada de maneira independente ou em conjunto com outras abordagens.

Seu enfoque está relacionado com o estímulo de certos pontos, associados a diversos processos fisiológicos, espalhados pelos meridianos de todo o corpo.

Essa estimulação, realizada por meio de finas agulhas metálicas, visa à promoção, recuperação e manutenção da saúde.

Assim, a fitoterapia e a acupuntura destacam-se como as práticas mais conhecidas, mais utilizadas e mais aceitas pelos profissionais de saúde, estando à frente das demais práticas investigadas.

Homeopatia e auriculoterapia

Ressalta-se que duas outras PICs tiveram uma prevalência significativamente maior. a HOMEOPATIA, com 12% das citações e a AURICULOTERAPIA, com 10% das menções.

A homeopatia é uma prática terapêutica de caráter vitalista e holístico, que se baseia na lei dos semelhantes, na ultradiluição dos medicamentos e na experimentação do homem sadio e que tem seus medicamentos inclusos na RENAME.

Já a auriculoterapia é uma prática que busca a regulação psíquico-orgânica por meio de estímulos de pontos energéticos do pavilhão auditivo, com o uso de agulhas, esferas ou sementes de mostarda preparadas para esse fim.

No âmbito da atenção básica, além de médicos, outros profissionais que compõem a equipe multidisciplinar de saúde podem ser habilitados para a aplicação de PICs, como enfermeiros e fisioterapeutas, que já mostram participar da integração dessas práticas aos tratamentos convencionais.

Contudo, a aplicação das PICs não se limita a esses profissionais. Os estudos apontam que todos os profissionais do grupo Estratégia de Saúde da Família (ESF) e do Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF) são e/ou podem ser aplicadores das PICs em algum grau.

Vale ressaltar também que, em muitas unidades de atenção básica (UBSs), os profissionais sem registro específico em PICs atuam como protagonistas nesse campo, o que pode comprometer o levantamento e apuramento adequados do número de atendimentos realizados, podendo este ter maior representatividade do que mostram os relatórios publicados na área.

Limitantes potenciais

Apesar de as PICs fornecerem um potencial valioso para a qualidade da promoção de saúde no SUS, as informações limitadas oferecidas na graduação e em outras instàncias de formação dos profissionais de saúde no que tange ao seu uso e aplicabilidade resultan em uma falta de preparo e até mesmo de incentivo dos mesmos para trabalharem com essas práticas.

Nos cursos de graduação, os conteúdos relativos às PICs são geralmente ofertados como disciplinas optativas e não integradas ao projeto pedagógico, fazendo com que sua inserção no ambiente acadêmico seja incipiente. Além disso, constata-se que há diversas limitações à implementação, uso e registro das PICs.

Outro limitante que se destaca quando se fala sobre a utilização das PICs diz respeito à falta de validação e reconhecimento de sua efetividade, segurança e indicações, tanto por parte dos profissionais de saúde quanto pela população em geral.

Isso deriva, em primeira instância, da ausência de estudos decorrente da baixa aceitação e muitas vezes do recente uso de algumas PICs como tratamentos alternativos e complementares à medicina tradicional em algumas patologias.

Dessa forma, entende-se que pesquisas e publicações de casos clínicos a respeito desse tema devem ser disseminadas para ampliar o conhecimento e a utilização das PICs, já que elas têm sua contribuição como prática de saúde complementar e encontram-se inclusive disponíveis no SUS.

Como decorrência dessa incipiência no reconhecimento das diversas PICs como formas efetivas, cientificamente comprovadas e complementares aos tratamentos convencionais, percebe-se uma dificuldade de institucionalização e, por consequência, de implementação adequada dessas práticas.

Todavia, é necessário estabelecer processos definidos para a implementação das PICs na atenção básica à saúde, pois essa incipiência leva a divergentes modos de aplicação das práticas e isso dificulta sua institucionalização, devido às alterações de prioridades e entendimentos entre as gestões na área de saúde pública, que muitas vezes levam a mudanças de profissionais e de suas formas de atuação, comprometendo a aplicabilidade das PICs nas UBSs.

Outra limitação observada com base nos estudos é a falta de profissionais de saúde capacitados para a utilização das PICs na área pública, os quais ainda precisam ter conhecimento quanto à sua aplicabilidade e disponibilidade de tempo e de materiais, além de apoio administrativo, para que seja possível a implementação dessas práticas a longo prazo.

Em decorrência da baixa disponibilidade desses profissionais, em certos casos, programas de saúde não conseguem ser mantidos, quando por exemplo acontecem os períodos de licenças ou de férias, já que por vezes não há substitutos capacitados.

Diante dos fatores expostos, destaca-se que, apesar de o PNPIC ser o guia nacional de implementação das PICs, ainda há necessidades que ele não supre, seja em função do surgimento de novas práticas, regulamentação das antigas, problemas em relação à nomenclatura não padronizada dos fitoterápicos e falta de conhecimentos sobre o tema pelos gestores, profissionais de saúde e população em geral, entre outros.

Pode-se ainda destacar que a falta de financiamento, principalmente por parte do governo federal, para realizar a implementação das PICs de forma condizente com o que estabelece o PNPIC, limita amplamente o processo de disseminação do conhecimento teórico-prático sobre as mesmas.

Além disso, observa-se uma incoerência entre a quantidade e a diversidade de práticas registradas em prontuários e os atendimentos que são efetivamente realizados pelos profissionais.

Tal disparidade muitas vezes é resultado da subnotificação que ocorre como consequência de uma incapacidade do sistema de informação utilizado, que em muitos casos não permite o registro de determinadas práticas ou restringe tal prerrogativa apenas a médicos e enfermeiros, excluindo outros profissionais da atenção básica.

Essa lacuna no registro das PICs contribui para uma visão incompleta do panorama de cuidados oferecidos na atenção primária.

Reflexões finais

Mesmo diante desse cenário, destaca-se que a implementação das PICs leva a diversos processos produtivos para o tratamento, como promoção de saúde e atenuação de efeitos colaterais e a resultados positivos para o SUS, como a redução no uso de medicações, na frequência de transtornos mentais e nos custos do tratamento.

Ressalta-se que há também resultados indiretamente positivos, como a ampliação na definição de cuidado por profissionais multidisciplinares com maior conhecimento das PICs, favorecendo a autonomia dos pacientes e a valorização do patrimônio cultural brasileiro, o que leva a uma maior integração social da população nos seus processos de saúde-doença.

Isso, por sua vez, favorece o desenvolvimento de iniciativas relacionadas à propagação e implementação das PICs, a fim de promover a melhora na qualidade de vida.

Logo, compreende-se que a disseminação das PICs tem diferentes fragilidades institucionais, que se iniciam na carência da formação acadêmica que não expõe os futuros profissionais a essas práticas já reconhecidas e estendem-se à realidade de diversos municípios brasileiros que não têm uma estruturação como a proposta pelo Ministério da Saúde por meio do PNPIC para consolidar a divulgação do conhecimento e a oferta dessas práticas à população. Além disso, há a falta e a heterogeneidade de distribuição da capacitação dos profissionais de saúde que poderiam oferecer tais tratamentos.

Vale ressaltar que o processo de implementação das PICs e seu conhecimento, tanto pelo público em geral quanto pelos profissionais de saúde, está em um constante estado de fluxo, com melhoras e recrudescimentos durante os últimos anos e que há a necessidade de maior divulgação e de medidas que favoreçam sua institucionalização, de modo a promover uma melhor qualidade de vida para a população, principalmente em regiões e situações em que a medicina alopática mostra-se ainda carente de resultados.

E, portanto, conforme haja a progressão do estado atual serão necessários mais estudos teóricos e práticos, de forma a permitir uma análise mais congruente da realidade, para assim ampliar a definição e disseminação dos métodos de aprimoramento e estabelecer metas factíveis de implementação e utilização das PICs como medicina complementar à prática convencional de tratamento e promoção de saúde.


Arthur Lopes da Silva – Estudante de medicina da Universidade do Sul de Santa Catarina (Unisul).

Maria Luiza Martins André – Estudante de medicina da Universidade do Sul de Santa Catarina (Unisul).

Andreza Regina Lopes da Silva – Doutora em Gestão do Conhecimento pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

 

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