Farmacologia é a ciência que estuda os efeitos de uma substância química sobre a função dos sistemas biológicos, os quais dependem fundamentalmente da interação droga/organismo.
No que diz respeito aos fitoterápicos, a Organização Mundial de Saúde determinou, por meio de um documento divulgado e consolidado internacionalmente (OMS, 1991), que o conceito de tradicionalidade seja adotado na definição da farmacologia.
Dessa forma, a OMS buscou instruir os países de todo o mundo a considerar as informações tradicionais devidamente documentadas como relevantes para orientar ações reguladoras de seus mercados na área de fitoterápicos.
No Brasil, tais orientações foram incorporadas e adotadas nas normas da Anvisa e aplicadas a todos os produtos fitoterápicos que não detêm documentação clínica própria.
No entanto, para que tal flexibilidade não se torne um problema, a OMS recomenda critérios para sua aplicação, os quais foram internalizados no Brasil por um documento de orientação emitido pela agência reguladora, com as seguintes informações (Brasil, 2010a): a) indicação para uso episódico ou para curtos períodos de tempo, b) coerência com relação às indicações terapêuticas propostas, c) ausência de risco tóxico para o usuário, d) ausência de grupos ou substâncias químicas tóxicas ou presença dentro de limites comprovadamente seguros e e) comprovação de uso seguro por um período igual ou superior há 20 anos.
Assim, podem-se aproveitar as dezenas e até milhares de anos de uso popular documentado como subsídio de valor ao registro e aproveitamento terapêutico de inúmeras plantas medicinais.
Nos casos que estejam fora dessas orientações, deve-se seguir o caminho clássico para o desenvolvimento de medicamentos, com estudos em animais e clínicos (WHO, 1993).
Complexidade química
Cada planta apresenta inúmeros constituintes químicos, que são oriundos tanto do metabolismo primário, como açúcares, lipídios, proteínas, ácidos nucleicos, etc., como principalmente do metabolismo secundário, como cumarinas, alcaloides e resinas, dentre muitas outras substâncias.
Entende-se como metabolismo vegetal primário aquele que é voltado às funções essenciais das células das plantas, e metabolismo secundário como sendo o relativo a funções especiais dos vegetais, principalmente no seu aspecto ecológico e na sua relação com o meio ambiente.
Os resultados terapêuticos obtidos dos fitoterápicos são, em última instância, oriundos da ação simultânea desses diversos ingredientes, estabelecendo o conceito de fitocomplexo, que pode ser definido como o “conjunto de substâncias originadas no metabolismo primário e/ou secundário e que são responsáveis, conjuntamente, pelos efeitos biológicos de uma planta medicinal ou de seus derivados” (Brasil, 2010c).
Desse conjunto decorrem efeitos sinérgicos diversos, os quais podem ser alterados ou mesmo perdidos em casos de fracionamentos inadequados ou do isolamento do fitofármaco (substância química presente na planta quando considerada em seu estado puro e isolada do conjunto das outras substâncias do vegetal).
A Figura 1 mostra tal possibilidade num caso concreto retirado de um estudo farmacológico de ação anti-inflamatória em modelo de peritonite.
Aspectos de segurança
A tradicionalidade da utilização dos fitoterápicos mostra ampla margem de segurança ou evidencia riscos que, com o tempo, acabam se consolidando na documentação e mesmo na tradição (ex.: alho e irritação gástrica em pessoas sensíveis) ou eliminam determinada espécie do uso popular (ex.: a espécie tóxica denominada comigo-ninguém-pode).
Tal perfil de segurança decorre da baixa concentração individual dos ativos presentes no fitocomplexo, bem como de atenuações de efeitos decorrentes de ativos antioxidantes protetores, dentre outros mecanismos (Schulz et al., 2002).
Também nesse caso, quando se procedem a fracionamentos e isolamentos de ativos em particular, invariavelmente há um paralelo aumento na toxicidade e risco.
O caso demonstrado na Tabela 1 ilustra o aumento expressivo na DL50 (dose letal mediana) da espécie carqueja, com diminuição das doses que respondem pela morte de 50% dos animais estudados, como expressão do aumento efetivo na toxicidade.
De todo modo, a segurança dos fitoterápicos, estabelecida experimentalmente ou por tradição, apesar de ser mais alta do que a dos sintéticos, não permite qualquer extrapolação sobre ausência de riscos.
Afinal, é da própria natureza que advêm algumas das substâncias mais tóxicas conhecidas, como é o caso da estricnina ou das aflatoxinas.
Tal destaque é importante porque as pessoas, de modo geral, tendem a atribuir aos fitoterápicos noções de segurança inata (ex.: a frase comum “se não fizer bem, também não fará mal…”), o que não tem nenhuma consistência técnica ou legal.
Contraditoriedade de ações
Dentro do rol de usos populares, não é difícil encontrar às vezes plantas com indicações distintas ou mesmo opostas, como por exemplo laxante e antidiarreica, dentre outras.
Esses casos constituem-se em outro obstáculo à aceitação da fitoterapia pelos profissionais de saúde de formação ortodoxa, que têm dificuldades em compreender tais contradições.
As respostas a essa questão podem estar em vários aspectos da fitoterapia, desde o referenciamento da espécie pelo nome popular, que obviamente não tem precisão e pode envolver espécies diferentes, até diferenças químicas entre lotes de produtos que não sofreram a adequada avaliação de controle de qualidade.
A Figura 2 mostra as três espécies usualmente denominadas como “erva-cidreira” no Brasil. São espécies diferentes, de famílias igualmente distintas e com propriedades terapêuticas próprias, que têm em comum apenas uma semelhança no odor. A utilização ora de uma ou de outra trará, certamente, efeitos distintos e aparentemente contraditórios.
Considerações finais
O uso de medicamentos fitoterápicos apresenta-se atualmente como uma forte tendência no Brasil e no mundo, constituindo-se num mercado bastante promissor e de números expressivos. Assim, a fitoterapia representa um ambiente atrativo de negócios (Marques, 2010).
Por possuir uma das maiores biodiversidades do mundo, o Brasil pode se tornar um dos destaques nesse segmento.
No cenário brasileiro, mais de 80% das matérias-primas utilizadas na produção de medicamentos são importadas. Além disso, 60% de todos os medicamentos existentes no mercado são consumidos por cerca de 20% da população, deixando a maioria esmagadora das pessoas dependente dos remédios caseiros e sem acesso a produtos industrializados.
Visto por essa perspectiva, o aproveitamento das plantas medicinais brasileiras é de crucial importância para a expansão do atendimento à saúde, por seu potencial no tratamento de patologias diversas, tanto simples e agudas quanto de caráter mais grave ou crônicas.
Apesar das dificuldades existentes e pelos motivos expostos aqui, o desenvolvimento de uma indústria nacional de fitoterápicos é fundamental para o progresso dessa área no Brasil.
Cecilia E. F. Ognibene – Farmacêutica.
Luis Carlos Marques – Farmacêutico, com especialização em Fitofármacos e Fitoterápicos, mestrado em Botânica e doutorado em Psicobiologia.
Nota: artigo baseado em Introdução à Fitoterapia Científica. Disponível em https://wzukusers.storage.googleapis.com/user-33404663/documents/5b158371a86d84Bo7N7x/22.%20Material%20de%20divulga%C3%A7%C3%A3o%20-%20fitoterapia%20cient%C3%ADfica%20Eurofarma.pdf.
Referências bibliográficas
Brasil. Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Consolidado de normas da COFID (Versão II). Orientações sobre o item 8.3 da RDC 48/2004. Brasília, DF, maio de 2010a.
Brasil. Agência Nacional de Vigilância Sanitária. RDC 10 de 09.03.2010. Dispõe sobre a notificação de drogas vegetais junto à Agência Nacional de Vigilância Sanitária e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 10 de março 2010b.
Brasil. Agência Nacional de Vigilância Sanitária. RDC 14 de 31.03.2010. Dispõe sobre o registro de medicamentos fitoterápicos. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 05 de abril 2010c.
Marques, L. C. Fitoterápicos: perspectivas de novos e antigos produtos. In: Haraguchi, L. M. M., Carvalho, O. B. Plantas medicinais. São Paulo: Secretaria Municipal do Verde e do Meio Ambiente, 2010. p. 124-128.
Organización Mundial de la Salud. Pautas para la evaluación de medicamentos herbários. Genebra, 1991.
Pavan, A. G. Baccharis trimera, a plant used in popular medicine in Brazil. Anais da Faculdade de Farmácia e Odontologia da USP, 10: 205-214, 1953.
Schulz, V.; Hänsel, R.; Tyler, V. E. Fitoterapia racional: um guia de fitoterapia para as ciências da saúde. 1ª. ed. Barueri: Manole, 2002.
Taniguchi, S. F.; BersaniI-Amado, C. A.; Sudo, L. S.; Oga, S. Effect of Pfaffia iresinoides on the experimental inflammatory process in rats. Phytotherapy Research, v.11, p. 568-571, 1997.
World Health Organization. Research guidelines for evaluating the safety and efficacy of herbal medicines. Manila, 1993.