Quem nunca ouviu falar em dança circular talvez não imagine do que se trata somente pelo nome. Danças circulares são aquelas realizadas em roda, geralmente com os participantes de mãos dadas, executando os mesmos movimentos orientados por um líder, que é chamado de focalizador, ou seja, aquele que dá o foco.
O focalizador passa as instruções pertinentes à prática, ensina os passos antes de cada dança e orienta como proceder ao longo da atividade, dando todo o suporte necessário para o fluir do encontro.
As danças englobam coreografias com músicas tradicionais e contemporâneas de todos os povos do planeta. Cada combinação de coreografia e música é trazida para a prática honrando sua história, seu surgimento e seu intuito.
O convite é para que os participantes movam-se em todas as direções e experimentem uma conexão mais profunda a partir da consciência corporal e espacial.
A arte da dança está presente em todas as pessoas que sabem e podem andar, assim como a arte do canto está presente em cada pessoa que sabe e pode falar. Esse conceito é baseado num provérbio africano e dialoga bem com a proposta da dança circular, que é desenvolver habilidades corporais e sensoriais que irão se desdobrar em autoestima e autoconfiança.
A dança circular é uma atividade coletiva que leva a um estado de harmonia interior. Estimula a conexão consigo mesmo, pois apesar de ser efetuada em grupo, o dançar em círculo coloca cada um dos integrantes que compõem esse grupo em posição igualitária e única, despertando a segurança que sustenta a autoestima e a sensação de pertencimento que estimula o entusiasmo pela vida.
Embora haja uma constante mudança de posição no círculo durante a dança, girar em torno de um centro promove integração com o todo, através do alinhamento com os eixos vertical e horizontal.
Enquanto a linha do círculo é mantida pelo grupo, a ligação com o centro do círculo permanece ativa e isso garante a conexão com os planos da tridimensionalidade. A inteireza manifesta-se apenas pelo fato de estar nessa geometria considerada sagrada que é o círculo.
Essa forma arcaica de celebrar a vida, honrar a natureza e cultuar os momentos de passagem perdeu-se ao longo do tempo, foi engolida pela vida moderna, onde o ato de expressar-se atendendo à sua natureza foi reprimido, moldado e delimitado.
Motivos para praticar dança circular
Partindo desse princípio de totalidade e da necessidade de trazer novamente o hábito de se expressar com mais liberdade, respeitando a natureza de cada ser, a dança circular torna-se medicinal, contribuindo para a saúde em todos os níveis, pois convida o ser humano a vivenciar todas as dimensões que o compõem – corpo, emoção, mente e espírito, integrando-as através do movimento, da música, do tato, do lúdico, do ancestral, do recordar e da viagem pelas mais variadas culturas do mundo.
Acordar e acolher partes nossas que às vezes sequer sabemos que existem em nós é muito valioso na construção de uma sociedade mais colaborativa, pois os princípios sustentáveis fundamentais para a vida em comunidade são trazidos para a consciência do ser que se entrega ao sentir numa vivência ou aula.
Por ter esse poder terapêutico e integrativo, a dança circular vem se tornando cada vez mais uma prática de ampla utilização. Além do contexto recreativo, muitos profissionais de saúde integrativa utilizam-na como uma atividade complementar a outras terapêuticas.
Há uma forte característica pacificadora na dança circular, que consegue diluir o fluxo intenso de pensamentos. Uma mente calma ameniza o ritmo dos batimentos cardíacos, diminui a ansiedade e traz equilíbrio e centramento.
Nesse sentido, a dança circular é, intrinsecamente, uma ferramenta terapêutica, sendo considerada uma meditação em movimento, pois enquanto se está praticando a mente fica completamente concentrada nos passos, na articulação dos movimentos coordenados com o andamento da música.
Do ancestral até a atualidade
Como citado anteriormente, dançar em roda é uma prática ancestral, não é algo novo criado por alguém especificamente. Os povos antigos dançavam em círculo, geralmente em volta de uma fogueira.
Estar em roda é um movimento instintivo do ser humano. As crianças naturalmente se sentem atraídas em girar de mãos dadas, porque isso faz parte da essência humana. O modo de vida moderno e agitado promoveu o afastamento de tudo que acalma e tranquiliza, além de dispersar hábitos de vida em comunidade.
O que conhecemos hoje como dança circular foi resgatado por Bernhard Wosien, artista plástico e bailarino alemão, que quando se afastou dos palcos seguiu em busca de algo que o levasse ao mesmo estado de êxtase a que chegava ao se apresentar num espetáculo ou ao dar aulas de dança.
Ao longo dessa busca, ele experimentou yoga, meditação e formas conjugadas de arte com espiritualidade.
Realizando pesquisas juntamente com sua filha, a antropóloga Maria-Gabriele Wosien, visitou aldeias bem primitivas no leste Europeu, onde experimentou novamente o êxtase que procurava, ao dançar de mãos dadas com a simplicidade e a pureza de pessoas que preservavam uma cultura passada de geração a geração.
Assim, ele começou a reproduzir essas danças, a coreografar suas próprias danças circulares e a se apresentar com seus alunos nesse formato de dança nada convencional para sua época e localidade.
Naquele período, a dança estava muito restrita aos bailarinos profissionais e aos grupos de danças folclóricas. O desejo de Bernhard era que as pessoas comuns pudessem também experimentar essa forte conexão superior através da dança.
Em meados da década de 1970, Wosien foi convidado para apresentar suas danças circulares na Ecovila Findhorn, na Escócia. Esse local tornou-se então o celeiro das danças, pois pessoas do mundo inteiro que passavam por lá tinham a oportunidade de vivenciar e aprender as danças circulares de Wosien e de levar essa experiência para seus países de origem.
No Brasil, essa prática chegou na década de 1980, pela comunidade de Nazaré Paulista e aos poucos foi sendo também compartilhada por pessoas vindas de Findhorn, até que começaram a ser realizados os cursos de formação em o território nacional, o que fez aumentar a expansão do movimento.
Hoje, nosso país está entre os que mais utilizam a dança circular no mundo. Existem focalizadores em quase todos os estados, conduzindo rodas em parques, praias, praças, escolas, hospitais, centros de saúde, empresas e ONGs.
A dança circular está presente no cotidiano de um número muito grande de pessoas de todas as raças, idades, posição social ou profissão. Está integrada na vida, no dia a dia e nas práticas semanais de comunidades e instituições.
Como dizia Bernhard Wosien, “o homem vivencia na dança a transformação de sua existência, uma metamorfose transcendente de seu interior, relativa ao ser e também à elevação do seu eu divino” (Dança um Caminho para a Totalidade – cap. Entre Deus e o Mundo – A Dança).
Homens na dança
No Ocidente, desde o século passado, tinha-se a consciência de que a dança como atividade formava o cidadão por completo, pois sua prática ofertaria proporções corretas ao corpo, tornando-se fonte de boa saúde, equilíbrio e conhecimento ao indivíduo que a praticasse.
Atualmente, esses benefícios são reconhecidos e até mesmo indicados por profissionais de saúde. Entretanto, em torno dessa atividade instaurou-se o paradigma de que dançar não era para pessoas do sexo masculino.
Existem danças tradicionais de povos do mundo das quais somente os homens participam. Na cultura indígena, por exemplo, os homens dançam antes de sair para caçar e as mulheres cantam enquanto cuidam da tribo e aguardam o retorno deles.
Na Grécia e na cultura Árabe, ainda se mantém o costume das danças tradicionais masculinas, seja na vida comunitária ou em apresentações folclóricas.
No contexto geral da dança, o homem dançou antes mesmo de falar, para estabelecer códigos de comunicação e assim a dança passou a ser considerada um importante pilar artístico e cultural na antiguidade.
No período das cruzadas, essa expressão artística, que em sua estrutura envolvia gestos delicados e sensíveis, passou a ser encarada como uma técnica exclusivamente feminina, sendo ridicularizados ou inferiorizados os homens que se atrevessem a praticá-la. A dança foi também considerada, pela igreja cristã, como um ato profano e promíscuo, sendo muitas vezes punido sob as leis religiosas o indivíduo que ousasse desafiar esses preceitos.
No renascimento, a dança ressurge de maneira forte e avassaladora, conquistando novamente seu devido reconhecimento e espaço em todas as classes sociais e estabelecendo-se a partir daquele momento como profissão.
Passado o tempo, essa atividade/profissão desmembrou-se, evoluiu e desencadeou-se nas mais diferentes expressões artísticas imagináveis e conhecidas, passando a coroar a cultura de inúmeras sociedades e tornando-se objeto de protesto, rito de passagem e sobretudo de demonstração de arte viva.
Mas durante muito tempo, ainda na sociedade moderna, o ato de dançar permaneceu como uma prática essencialmente feminina.
Quando o movimento de dançar em círculo foi resgatado por Bernhard Wosien e expandido através de Findhorn, todos os gêneros compunham as atividades de danças circulares.
Conforme o conceito da dança circular foi sendo levado para países do mundo todo, cada localidade, mesmo mantendo a essência do movimento, aos poucos incorporou às danças suas visões de mundo, suas preferências musicais e sua cultura.
No Brasil e especificamente no Rio de Janeiro, essa memória de que dança não é para homens interferiu fortemente na adesão dos participantes desse gênero. Desde que as rodas começaram a ser realizadas pelo estado, no final dos anos de 1980, salvo em alguns pequenos grupos espiritualistas, a maioria esmagadora das pessoas que frequentavam os grupos era de mulheres.
O cunho terapêutico dessa atividade acessa níveis internos profundos, mesmo quando praticada de forma recreativa. Isso mexe em sentimentos e emoções com os quais muitos homens ainda não sabem lidar, sendo que para as mulheres é mais familiar percebê-los e expressá-los.
Homens na roda
A geometria do círculo remete à criação do Universo e está ligada aos ciclos da natureza, tendo uma característica um tanto mais feminina do que masculina. Esse é um fator pelo qual os homens sentem-se menos atraídos para as rodas do que as mulheres.
Acontece que a dança circular, dentre outras características, promove empatia, conexão superior, espírito de comunidade e autoconhecimento, trabalha coordenação motora, noção espacial e lateralidade, ativa a memória e a concentração e desenvolve autoamor e compaixão.
É uma dinâmica completa, pois movimenta a energia de dentro para fora e de fora para dentro. Esse tipo de atividade todas as pessoas, independentemente do gênero, necessitam inserir em sua vida cotidiana (Figura 1).
Quando iniciei minha jornada nas danças circulares, em 2012, ainda no curso de formação, estava clara para mim a falta de interesse dos homens por essa prática. Havia pouquíssimos homens participando das rodas e menos ainda das turmas de formação no Rio de Janeiro.
Mesmo antes de me formar, realizei alguns trabalhos de danças circulares em eventos. Logo que me formei, comecei a atuar com um grupo regular e em rodas ao ar livre nos finais de semana. E conforme fui trabalhando percebi que a realidade continuava a mesma em relação à proporção de homens e mulheres nas aulas, que era 20/80 mais ou menos.
Participando de encontros e cursos em outros estados do Brasil, constatei que a situação, em São Paulo por exemplo, era bem diferente: muitos homens frequentavam as rodas e uma boa parte dos focalizadores era composta por homens.
Através das redes sociais, tive acesso a grupos de outros países, como Argentina e Chile, e também pude perceber uma quantidade bem maior de homens nas danças nesses lugares.
Motivada pelo questionamento de por que nas rodas da minha cidade a frequência masculina era tão baixa e apoiada por uma entusiasta das danças circulares, em 2015 decidi criar um projeto de aulas somente para homens, chamado Círculo Masculino de Danças Circulares, com o intuito de cativar mais homens a pelo menos se permitirem experimentar, tendo como maior incentivo a presença de outros homens também participando.
As rodas aconteceram durante um período curto, com um grupo muito pequeno de participantes. Entretanto, a repercussão do projeto através das mídias sociais atingiu um número bem maior de pessoas, que fizeram contato para obter mais informações, mas que lamentavelmente não chegaram a tempo para participar (Figuras 2 e 3).
Embora não tenha atingido uma adesão muito grande, esse trabalho cumpriu seu propósito de divulgar a dança circular para o público masculino, mostrando que dançar é uma porta de entrada para o caminho do autoconhecimento e o quanto essa busca pelo autoaprimoramento é importante também para os homens.
A ideia era inicialmente sensibilizar esses homens para movimentarem o corpo e perceberem a importância de frequentarem uma atividade em que existe espaço para expressão e para o compartilhamento de questões ligadas ao universo masculino. Em consequência disso, acreditava-se que aos poucos eles se sentiriam mais à vontade em dançar em rodas junto com mulheres.
Bastante tempo antes desse projeto acontecer no Rio de Janeiro, um movimento muito interessante, que também serviu de base para a formação do círculo masculino voltado para os homens, acontecia no Rio Grande do Sul, num grupo chamado Guerreiros do Coração, que já promovia encontros terapêuticos para os homens, tendo a dança circular como parte dessas atividades. Esse movimento, hoje, está presente em vários estados brasileiros, promovendo a integração de muitos homens e servindo de exemplo para que surjam outros movimentos com propostas similares.
Nos dias atuais, é possível verificar com clareza que houve um aumento na proporção de homens nas rodas no Rio de Janeiro. A constatação desse fato se dá pela minha própria experiência, ora como focalizadora, ora como aluna em workshops e cursos de aprofundamento, ora como participante dos trabalhos de professores e amigos.
Os depoimentos de alunos e integrantes de cursos e vivências, ao longo desses doze anos em que venho trabalhando com as dança circulares, também relatam o crescimento da frequência masculina nas rodas a cada ano.
Confio que a dança circular é uma ferramenta poderosa na prevenção em saúde, na educação e na autotransformação. Por isso, dedico-me com amor a esse trabalho, pois vejo a necessidade urgente de mudanças significativas no mundo externo, que nada mais é que um espelho do mundo interno. Meu desejo é ver a humanidade dançando de mãos dadas em infinitos círculos pelo mundo.
Stela Pianura – Terapeuta corporal integrativa, com formação como focalizadora de Dança Circular pelo Grupo Nós na Roda e em Postura para o Movimento do Método GDS de Cadeias Musculares e Articulares pela Kiné Fisioterapia. Facilitadora de Magnified Healing, mestre em Reiki, terapeuta de Medicina Tradicional Chinesa pelo Instituto Sino-Brasileiro de Acupuntura, Moxabustão e Terapias Orientais e massoterapeuta especializada no método de Drenagem Linfática Energética de Bruno Chikly.
Referências bibliográficas
Dança – Um Caminho para a Totalidade – Bernhard Wosien – ed. Triom/2019.
Dançando o Caminho Sagrado – Anna Barton – ed. Triom/2012.
O Poder Terapêutico e Integrativo da Dança Circular – Deborah Dubner – ed. Ottoni/2015.
Dança Sagrada – Deuses, Mitos e Ciclos – Maria-Gabriele Wosien – ed.Triom/2002.