Como fazer da meditação algo divertido? Como acrescentar conteúdos essenciais para uma vida, sem a rígida conotação do ensino clássico das salas de aula? Como tratar a educação emocional das crianças de forma séria, porém lúdica e lúcida? Como ensinar as crianças a desenvolverem compassividade a ser levada para a vida? Como colaborar efetivamente com a mudança de mundo que queremos, ajudando no desenvolvimento de seres humanos melhores, colaborando na formação de indivíduos que podem realmente ser sujeitos transformadores de sociedades? Como levar a mente zen para a linguagem infantil na forma de brincadeiras? Como ajudar as crianças a crescerem e viverem com menos sofrimento? E como fazer tudo isso com fundamentos na ciência?
Esses foram alguns dos questionamentos iniciais que surgiram na idealização de um projeto que tem como objetivo difundir a prática de meditação para crianças, denominado Crescendo Zen.
A iniciativa concretizou-se após anos de estudos sobre a aplicação da meditação em países desenvolvidos, mais especificamente no contexto japonês, onde essa prática vem sendo utilizada de forma corriqueira e rotineira na vida das crianças desde muito cedo, surtindo uma série de efeitos extremamente benéficos em suas vidas e relações, assim como alterandp e mantendo padrões comportamentais mentalmente saudáveis que, quando estudados em profundidade, impactam toda uma sociedade.
O projeto-piloto do Crescendo Zen começou a ser desenvolvido e aplicado à realidade brasileira em 2016, de forma voluntária e experimental, na Escola Educare Montessori, em Goiânia/Goiás, para turmas de crianças entre três a sete anos de idade, obtendo resultados significativos tanto para as próprias crianças quanto para os pais e a direção da escola onde foi realizado.
Os resultados e respostas aos conteúdos apresentados foram rápidos e positivos, o que possibilitou a continuidade e aprofundamento das diretrizes do projeto.
As crianças participantes mostraram-se extremamente interessadas, curiosas e compenetradas em relação à proposta e sensíveis aos conteúdos da meditação. Isso revelou que esses conteúdos, em vários momentos, apresentaram-se como intrínsecos à personalidade e ao mundo interno dos alunos, como se eles precisassem apenas ser “lembrados” das habilidades emocionais e mentais que são inerentes a todos nós, possibilitando um retorno ao repouso na paz e no silêncio, de maneira divertida.
Ao longo dos anos, o projeto foi caminhando e embasando-se cada vez mais em resultados de pesquisas científicas já amplamente reconhecidas sobre a alteração benéfica da estrutura cerebral com a prática constante de meditação e os efeitos positivos que ela traz a longo prazo(1).
No curso de formação do projeto, lançado em julho de 2023, são apresentados aos participantes mais de 30 pesquisas científicas e artigos, que embasam diretamente não só as técnicas abordadas pelo programa, como os resultados mensuráveis e não mensuráveis advindos das práticas propostas pela metodologia.
As ferramentas aplicadas no Crescendo Zen estão em sintonia com os preceitos do que vem sendo chamado de “a nova educação”, que alia ao desenvolvimento das habilidades acadêmicas dos alunos, habilidades emocionais e sociais, com base no conceito e na prática da transdisciplinaridade(2), que entende a educação de forma plural, aberta e humana, trazendo uma nova proposta de entendimento sobre a natureza da realidade em todos os seus aspectos.
A ideia que norteia esse processo de uma nova educação é que, enquanto as escolas trabalham de forma ampla na formação das habilidades acadêmicas formais que as crianças precisarão para suas vidas e mercado de trabalho futuramente, projetos como esse de meditação venham acrescentar ao que já é abordado pelo ensino tradicional, outras formas de colaboração no crescimento humano, ajudando as crianças a desenvolverem estabilidade emocional para a vida, tolerância social e engajamento num contexto abrangente.
Meditação lúdica
A meditação lúdica proposta pelo projeto Crescendo Zen tem etapas básicas em suas atividades que não retiram das crianças suas prioridades enquanto seres humanos em formação, que são em primeiro lugar o brincar e se divertir, em segundo lugar o meditar e em terceiro lugar o compartilhamento dos ensinamentos não só com os coleguinhas durante as aulas, mas também com suas famílias, impactando de forma sutil nas relações e num movimento social de longo prazo.
Isso faz com que as crianças, de maneira leve, coloquem-se na posição de protagonistas de mudanças de perspectivas mentais pessoais e para um mundo melhor.
As crianças são ensinadas e incentivadas a tratar de temas universais de cunho humanístico através de atividades simples, porém com impactos complexos, ampliando sua visão de mundo com compassividade e sabedoria e observando como podem aplicar objetivamente o que aprendem em suas vidas diárias e cotidiano, levando isso para suas famílias.
O modelo e a metodologia aplicados nesse projeto têm como objetivo proporcionar uma prática sustentada de regulação das emoções, em que são desenvolvidos aspectos primordiais como atenção plena, compreensão emocional, consciência corporal, capacidade de autorregulação, consciência coletiva, tolerância, amorosidade, coordenação motora e talvez o mais importante aspecto para uma vida feliz: consciência e habilidades nos relacionamentos interpessoais, de forma a se sofrer menos e causar menos sofrimento.
Nesse sentido, a meditação tem se mostrado uma ferramenta poderosa para desenvolver em crianças habilidades que promovam paz interior, felicidade genuína e mecanismos de como transferir essa paz para o mundo ao redor delas.
Aos poucos e lentamente poderão ser observados os sinais de que o momento meditativo está fazendo sentido e diferença para as crianças.
Meditação exige esforço, assiduidade e tempo. E durante os já muitos anos de aplicação do projeto Crescendo Zen dentro das salas de aula diariamente, o que se percebe é como as crianças sentem um bem-estar maior por estarem ali, querendo ficar naquele ambiente e aprendendo a silenciar e se acalmar. Esse é o principal termômetro do projeto.
O objetivo é contribuir para que os alunos participantes possam ser crianças mais lúcidas, pacíficas e relaxadas e menos ansiosas, reduzindo assim o estresse a que são diariamente expostas e melhorando a interação entre elas e o mundo com vistas a uma vida plena.
Esse processo permite, dessa forma, que elas possam aprender a manter a serenidade mediante situações de conflito, a partir da prevenção de atitudes mental e emocionalmente perigosas e do desenvolvimento de um comportamento mais equilibrado.
As “oito atenções”
A metodologia de trabalho do projeto Crescendo Zen foi sendo desenvolvida através de anos de observação e prática junto às crianças, estudos de funcionamento da consciência, cultivo e armazenamento de sementes(3) e, em paralelo, estudo e prática secular do zen.
Baseia-se na perspectiva de “oito atenções” específicas: plena atenção à respiração, plena atenção com foco, plena atenção auditiva, plena atenção corporal, plena atenção em movimento, plena atenção às emoções, plena atenção à alimentação e noções de interconexão.
Além disso, são abordadas diversas outras percepções, como coordenação motora, memória, criatividade, amorosidade, etc.
Todas essas atenções são consideradas primordiais e essenciais para o desenvolvimento do que a ciência interpreta como “integração cerebral”(4), que é o processo em que elementos diferentes são reunidos para produzir um todo que funcione bem, de maneira coordenada, equilibrada e harmoniosa, trabalhando assim diversos focos em ambos os hemisférios cerebrais (emocional e racional), através de técnicas específicas de meditação.
O trabalho desenvolvido no projeto tem como premissa que mentes bem orientadas em sua base podem efetivamente mudar outras mentes para que, dessa forma, possamos ajudar os nossos diversos mundos internos e externos, passo a passo, construindo sujeitos compassivos e transformadores de sociedades.
Aprendendo a respirar: a meditação do panda
Reproduzimos, a seguir, o exemplo de uma das práticas utilizadas no projeto Crescendo Zen para o desenvolvimento da plena atenção à respiração: a meditação do panda.
Sentar com as crianças em roda ou duplas, perguntar se elas sabem o que é meditação e deixar que se expressem sobre o que imaginam que seja. Depois, explicar brevemente o que é meditação, fazendo correlação com a calma e tranquilidade que o ato de respirar nos traz. Ensinar o modo correto de sentar com as perninhas cruzadas e o corpinho com coluna reta, para facilitar o trânsito dos ventos.
Iniciando o exercício, orientá-las a colocar um ursinho panda embaixo da blusa, na altura do baixo ventre e ensiná-las a fazer tranquilamente três respirações profundas em silêncio, observando o ar que entra e sai pelo nariz e os movimentos da “barriga do panda”.
A cada sessão de três respirações silenciosas, fazer breves intervalos e conversar com as crianças sobre o panda e sua incrível “barrigona” quando respira e sobre como ele é silencioso, tranquilo e brincalhão. Perguntar ainda como elas se sentem conhecendo a meditação do panda.
Depois, passar para a fase de meditação em duplas, onde cada criança deve respirar junto com o coleguinha da frente. Orientar as crianças a fazerem contato visual umas com as outras, de forma a manterem a concentração. Aos poucos, “rodar” as duplas, até que todas tenham passado por todas.
Instruí-las, então, para que coloquem o panda do lado de fora da blusa, na região do baixo abdome. Devem segurar a barriga do panda com uma mão, enquanto dão a outra mão para a criança que estiver à sua frente e ambas respirem juntas, sentindo a barriga do panda crescer e diminuir.
Após essa etapa, orientar as crianças para que se levantem e façam uma pequena caminhada silenciosa, dando meio passinho de cada vez e ainda observando a barriga enchendo e esvaziando, com o panda embaixo da blusa ou apenas abraçando o pandinha.
Ao final, ao som de uma música tranquila de meditação, falar para que se deitem com os olhos fechados e façam o “equilíbrio dos pandas”, colocando-os sobre a barriga e tomando cuidado com o equilíbrio para eles não caiam!
Todas devem permanecer em silêncio, com as pernas e braços estendidos ao lado do corpo no chão. Caso seja necessário, manter uma meditação guiada, dando preferência para que esse momento seja o mais silencioso possível. Se houver vários pandas disponíveis, pode-se aumentar o desafio, colocando mais pandas para serem equilibrados nas barriguinhas.
Terminado o tempo, dar instruções para abrirem os olhos devagar, mexerem as mãozinhas e os pezinhos, espreguiçarem e levantarem-se bem devagarzinho.
O tempo para a realização dessa atividade varia de acordo com a idade das crianças.
Focos trabalhados: aprendizado e conceitos sobre o que é a meditação, prática de plena atenção sem movimento, prática de plena atenção em movimento, trânsito de ventos e respiração consciente, amorosidade, contato visual e imaginação
Rachel Melo – Criadora e desenvolvedora do Crescendo Zen – meditação para crianças, projeto reconhecido e premiado nacional e internacionalmente. Estudiosa e praticante de meditação há quase 20 anos, tendo inclusive morado no Japão, para aprofundamento nas práticas do Zen e observação da aplicação de meditação em escolas japonesas. Coordenadora de um grupo de meditação para adultos, na Unipaz – Universidade Internacional da Paz. Organizadora do Curso de Formação de Instrutores do Crescendo Zen e autora dos livros Crescendo Zen. Atividades de meditação para crianças – vols 1 e 2 e Caderno de colorir, meditar e sonhar – Crescendo Zen. Especialista em Neurociências, Educação e Desenvolvimento Infantil, pela PUC/RS (título a receber em 2024).
Referências bibliográficas
1 – A Arte de Meditar. Matthieau Richard, Editora Globo – notas das p. 22 e 23 e Davidson, R. J., Kabat-Zinn, J., Shumacher, J., Rosenkranz, M., Muller, D., Santorelli, S. F., Urbanowski, F., Harrington, A., Bonus, K., e Sheridan. J. F. Alterations in brain and imune function produced by mindfulness meditation, Psychosomatic medecine, 65, 2003, p. 564-570.
2 – La Charte de la Transdiciplinarité. Adopt au Premier Congress Mondial de la Transdisciplinarité. Convento de Arrábida, Portugal, novembre, 1994. Vide “Manifesto da Trasdisciplinaridade”, Basarab Nicolescu, Editora Triom, 2008.
3 – Transformações na Consciência, Tich Nhat Hanh, Editora Pensamento, 2006.
4 – O Cérebro da Criança. Daniel J. Siegel e Tina Payne Bryson. Editora nVersos, 2015.