Musicoterapia e a saúde do trabalhador

Falar sobre a saúde do trabalhador é um grande desafio, uma vez que existem muitas contradições a respeito das práticas de saúde mental dentro das organizações. É esperada do indivíduo uma constante prontidão para adaptar-se a mudanças e demandas do mercado, enquanto trabalha em um ambiente extremamente competitivo, no qual é preciso lidar com exigências de produtividade cada vez maiores.

Para entender melhor a origem desses conflitos, bem como a percepção dos trabalhadores e o seu relacionamento com a organização trabalhista, faz-se necessário um breve olhar sobre o tema, a fim de compreender o panorama da questão do trabalho e sua relação com a promoção de saúde.

Definição de trabalho e as mudanças em sua configuração

No presente artigo, foi levada em consideração a definição de trabalho como sendo toda atividade que permite algum retorno e a satisfação de uma necessidade humana e social.

A configuração do mundo do trabalho transformou-se historicamente, passando por grandes mudanças ao longo das mais diferentes formas de administração do processo de trabalho. A distinção entre a produção manual e intelectual provocou modificações significativas nas maneiras de se trabalhar. A partir dela, a relação do indivíduo com a sua ocupação passou a caracterizar-se primordialmente pela alienação, que, por sua vez, provoca perda de autonomia dos trabalhadores e desumanização do processo de produção. Esses fatores desencadeiam um enorme sentimento de insatisfação, podendo provocar graves tensões sociais e problemas inter-relacionais no ambiente de trabalho.

Além disso, as novas formas de precarização do trabalho interferem na reformulação do quadro de carreira e na estruturação salarial. Isso gera um processo de qualificação e desqualificação dos trabalhadores, além de incentivar o aparecimento de novas doenças do trabalho, frustração, insatisfação e insegurança.

A partir das novas relações trabalhistas, houve uma enorme redução dos postos de trabalho. Como consequência desse processo, surgiram novas e precárias relações de contratação, como por exemplo o contrato temporário, o regime de tempo parcial, o banco de horas, o trabalho em domicílio, a terceirização e os contratos de prestação de serviço. Essas novas modalidades de trabalho exigem que o trabalhador seja obrigado a conviver com certas interrupções na demanda de serviços e, consequentemente, passe a receber salários apenas por poucos meses. Em decorrência disso, o sujeito fica impossibilitado de planejar a sua vida pessoal e profissional.

Ainda por cima, o regime de terceirização vem sendo cada vez mais implementado e, com isso, vão se ampliando as medidas que favorecem a precarização do trabalho. Isso porque esse modelo de contratação traz consigo a diminuição de custo para os empregadores mediante a redução do salário do trabalhador, bem como a diminuição dos direitos trabalhistas. Vale lembrar que a reforma trabalhista de 2017, consolidada na Lei Ordinária nº 13.429/2017, discorre sobre as relações de trabalho temporário e prestação de serviços a terceiros.

Todos esses fatores acima elencados demonstram a precarização por que vêm passando as relações trabalhistas atualmente e como os trabalhadores experienciam o sofrimento. Esse sofrimento, bem como as doenças do trabalho, aparece através do crescimento da carga psíquica, do cansaço e do trabalho fatigante. Além disso, as constantes pressões enfrentadas pelos trabalhadores são capazes de provocar ainda maiores agravos à saúde.

Faz-se necessária, portanto, a implementação de ações para modificar o quadro de sofrimento dos trabalhadores, como a criação de espaços de fala e de criatividade, além de, sobretudo, a transformação das condições de trabalho e a promoção de relações trabalhistas não exploratórias.

O sofrimento relacionado ao trabalho vem sendo analisado principalmente pela área da psicodinâmica do trabalho, campo da saúde mental que dedica os seus estudos às relações entre trabalho e processos de adoecimento. Os especialistas em psicodinâmica passaram a estudar a carga psíquica envolvida nas relações trabalhistas, mas observaram que a fadiga, tão recorrente entre os trabalhadores, era, na realidade, fruto de excesso de informações, falta de controle sobre o processo de produção, esgotamento, acúmulo de tarefas e fragmentação das funções, entre outras causas.

Dentre os autores da psicodinâmica do trabalho, identifico-me bastante com os estudos de Christophe Dejours. O autor defende que a doença provocada pelo sofrimento relacionado ao trabalho apenas aparece quando o trabalhador nada pode fazer para mudar a sua situação. Em outras palavras, quando as condições não permitem que os trabalhadores criem estratégias de defesa, individuais e coletivas, para que esse sofrimento seja convertido em prazer.

Dessa forma, o enfraquecimento das relações com o trabalho se dá pela insatisfação perante as tarefas que são oferecidas aos trabalhadores, que precisam se sentir úteis e capazes de enxergar a sua própria produção e encontrar prazer naquilo que fazem.

Os estudos referentes à saúde do trabalhador, mais especificamente aos transtornos mentais relacionados ao trabalho, são feitos pela área da psicologia social, que visa a realizar intervenções para minimizar os problemas e a criar programas para a promoção de saúde dos trabalhadores. Através de uma escuta qualificada, a psicologia social enfrenta a exploração sobre o trabalhador e amplia a discussão sobre o processo de adoecimento.

Música e trabalho

Cantos de trabalho são definidos por A. R. Motta como sendo aqueles “cantados por comunidades tradicionais somente em formas tradicionais de trabalhar e cantar”.

Já os autores L. A. Millecco Filho, M. R. E. Brandão e R. P. Millecco destacam que, a partir de processos sociais de trabalho, aparecem canções em conjunto para aumentar a força coletiva e a produtividade do indivíduo em sua atividade laboral. Desse modo, a utilização da música, principalmente do ritmo em forma coletiva, seria a ferramenta intensificadora da produção do trabalho, tornando essa atividade mais leve e ativa e sustentando também a regularidade dessas práticas.

Esses mesmos autores apontam a existência de outros tipos de cantos de trabalho: intelecção e aboio. O primeiro refere-se a sonoridades encontradas em determinadas atividades de trabalho fora de comunidades tradicionais. A intelecção possui uma destinação definida: constitui cantos de ambulantes e vendedores livres e utilizados em bolsa de valores, que anunciam a venda de algum produto. Já, o aboio é um canto melancólico com diversas vocalizações e por muitas vezes agudo, que é geralmente usado por vaqueiros para ordenar a marcha de boiadas, fazendo parte do canto dos pastoreiros.

As canções com perguntas e respostas são muito comuns nas atividades de comunidades tradicionais. Nelas, uma pessoa do grupo canta e a outra parte responde repetindo por várias vezes os versos cantados. A divisão dentro do canto de trabalho muitas vezes é determinada pela habilidade do indivíduo de criar uma improvisação, atribuindo, assim, quais serão a voz condutora, a segunda voz e o coro.

É comum localizar nos cantos de trabalho tradicionais, temáticas políticas que tratem principalmente de uma consciência trabalhista, destacando a indispensabilidade de união e organização dos trabalhadores e resistência da classe. Motta apresenta a música no trabalho como uma prática discursiva, ou seja, a música e a linguagem musical como posicionamento histórico e social. Essa autora pontua que existe uma relação entre a música e o trabalho, mas que não deve ser chamada de “canto de trabalho”. Por muitas vezes, o que se observa são trabalhadores cantando, tocando instrumentos, localizando melodias, assobiando, ouvindo música no fone de ouvido ou mesmo dançando no ambiente de trabalho.

Motta ainda menciona que a música de trabalho não é apenas realizada para distração, ritmo ou mesmo para aliviar o peso do ofício. A música no trabalho hoje traz um caráter discursivo, apresentando as características de um novo grupo social e de um novo discurso por meio de diferentes paisagens sonoras. A música pode ser utilizada como grande potencializadora do “poder social”, pois ela faz parte da identidade humana. Ao ser inserida no contexto social, serve para transmitir alguma mensagem e auxiliar o indivíduo a reescrever algo que necessite ser lembrado e revivido.

O trabalhador, atualmente, a depender da posição e do contexto em que está inserido, consegue com o uso dos fones de ouvido levar para o ambiente de trabalho a paisagem sonora que deseja, o ritmo, a melodia e a harmonia que mais se adequam à sua personalidade e/ou à sua atividade de trabalho. Pode também escolher ficar em silêncio, se este deixar o ambiente mais apropriado para a execução de suas tarefas, mantendo o local mais saudável.

T. DeNora aponta que, através da música, constroem-se diversas formas de prazer e modos de ser. Utilizando o recurso musical, é possível modular vários níveis de humor, tanto em terapia como fora dela. Isso ocorre quando o indivíduo é beneficiado pelos efeitos terapêuticos da música, uma vez que ela está presente acima de tudo em nosso dia a dia.

Musicoterapia e trabalho

N. F. Baleroni e L. R. Silva identificaram um alto número de pesquisas acadêmicas relacionadas à utilização da musicoterapia voltada à diminuição de estresse, ao aumento da produtividade e a trabalhos em parceria com a área de recursos humanos. Sua aplicação pode ser profundamente benéfica, objetivando-se promover atividades e rotinas para prevenir riscos, adaptar atividades diárias, relaxar e desenvolver a criatividade. A liberdade de expressão, a espontaneidade e a capacidade lúdica também são estimuladas. Os efeitos positivos estendem-se ainda a condições como alcançar os problemas e necessidades do indivíduo, estimular habilidades de interpretação e a comunicação de ideias e sentimentos, desenvolver a relação intra e interpessoal, colaborar na resolução de conflitos, favorecer a saúde integral e desenvolver a capacidade de auto-observação e autorreflexão.

Os serviços de musicoterapia relacionados ao trabalho encontram-se nas práticas ecológicas, que, segundo K. E. Bruscia, focam a atuação em comunidades, sociedades, trabalhos e famílias que precisem. Isso significa transformar o sistema ecológico como um todo. Nesse tipo de prática, encontram-se as atividades desenvolvidas em duas grandes vertentes: a musicoterapia organizacional e a musicoterapia comunitária e social.

Contradições e desafios na aplicação da musicoterapia voltada para a saúde do trabalhador

A musicoterapia organizacional, assim como outras áreas, como, por exemplo, a psicologia organizacional, visa a oferecer suporte para que o trabalhador possa enfrentar o seu dia a dia, atuando especificamente no desenvolvimento dos grupos e aprimoramento das relações dentro do ambiente de trabalho. Nessa perspectiva, a visão de melhoria do indivíduo e de sua saúde tende a beneficiar somente a própria empresa empregadora, uma vez que os profissionais de musicoterapia organizacional são contratados para realizar uma manutenção da saúde a fim de que os trabalhadores possam suportar o seu dia a dia, sendo esse muitas vezes carregado de sofrimento.

Já a musicoterapia comunitária e social ancora o seu conceito de saúde no contexto da saúde coletiva, entendendo que saúde não é apenas ausência de doenças e abarcando as interações socioeconômicas, entre a sociedade e o ambiente, que permitam a busca por saúde.

Segundo Bruscia, o objetivo principal da musicoterapia comunitária é “ajudar o cliente a adaptar-se e a assimilar-se na comunidade, enquanto também auxilia a comunidade na adaptação e acomodação do cliente”. Seu papel é trazer o processo de transformação coletiva de saúde, que dentro da musicoterapia acontece através das experiências sonoro-musicais. Essas experiências visam à melhora das condições emocionais e mentais dos sujeitos, além da criação de uma fonte de prazer que possa ajudar esses indivíduos a alcançarem saúde. Essa prática, em virtude de sua capacidade de unir pessoas, permite a criação de redes, a promoção de autonomia e a ampliação da resistência, além de ser grande potencializadora de mudanças.

Dessa forma, a musicoterapia comunitária permite entender a saúde como uma construção coletiva, sendo que seus benefícios podem ser percebidos por meio da vida social, que também será alterada mediante as experiências. Nessa prática, acredita-se que apenas com a participação social é possível criar saúde e que através do fortalecimento da comunidade, ou seja, do empoderamento, é que essa participação desenvolve a consciência crítica e facilita a criação de novos fluxos de comunicação. Em outras palavras: por meio da criação de espaços de fala, o indivíduo consegue sentir-se incluído no grupo e isso o empodera.

Esses espaços de fala – e de escuta – criam nuances de emoção que facilitam a convivência social e permitem uma forma sensível de perceber e reconhecer a realidade do mundo através dos afetos e de nossos sentidos, o que é mais conhecido como estética.

Esse braço da musicoterapia torna-se, acima de tudo, um gerador de coletividade e, portanto, os encontros devem ser percebidos como relevantes para os participantes, dentro e fora do ambiente de trabalho.

As intervenções em musicoterapia comunitária social visam a propiciar transformações pessoais, interpessoais e ecológicas, que podem promover fortalecimento de grupos, consciência crítica, resolução de problemas, espaço para a criação de novos projetos, encontros grupais que favoreçam a criação estética e promoção de subjetividade através da música. Por meio desse campo da musicoterapia, é possível prevenir os transtornos mentais relacionados ao trabalho e trazer novos modos de ser e novas formas de prazer. Através das vivências musicais, o trabalhador poderá sentir prazer ao tocar, ouvir e encontrar uma outra forma de expressar o que sente, de uma maneira que não seja constrangedora e que permita, assim, a liberação de todas as tensões sentidas.

O processo de comunicação com os trabalhadores é considerado um dos fatores mais importantes para a saúde mental. Dessa forma, torna-se muito importante levar em consideração os vínculos estabelecidos, as condições e as relações de trabalho desses indivíduos. Ao levar em conta esses dados, é possível identificar qual é o fator central que promove o sofrimento desses trabalhadores, que estão constantemente ameaçados pela insegurança do desemprego e sucateamento dos serviços em geral e que precisam criar novas alternativas para se manterem no mercado de trabalho e dar continuidade aos seus serviços. A prática grupal e o fortalecimento coletivo acontecerão através desses encontros, ampliando a capacidade de trocas e promovendo uma melhora da comunicação e da interação no dia a dia. Os trabalhadores, ao fim, estarão fortalecidos para enfrentar essas condições de trabalho.

Saúde do trabalhador na pandemia: uma situação urgente

O retorno ao trabalho presencial, que se iniciou de forma gradual ainda no final de 2020, deixa-nos em alerta, pois trabalhadores podem desativar certas defesas e tornar mais intensas as emoções de medo, angústia, ansiedade, depressão e estresse. Dessa forma, é preciso que estejamos atentos às emoções e à saúde mental dos trabalhadores.

Portanto, é de extrema importância que sejam exercitadas com esses trabalhadores novas estratégias de defesa. Os empregadores devem investir em cuidados que garantam um retorno seguro física e psiquicamente e facilitem a readaptação aos postos de trabalho.

Além disso, é importante que haja um acolhimento para as necessidades decorrentes de fatores como medo de contágio e demais sequelas do isolamento ou mesmo para alguma demanda particular de cada indivíduo.

É evidente que se deve cuidar também da saúde mental daqueles trabalhadores que ainda estão no sistema de home office e que possuem suas próprias demandas.

Neste momento, as empresas precisam ser sensíveis, pois estamos todos passando por situações de incerteza e ter um espaço de escuta auxilia a enfrentarmos a solidão e as nossas necessidades particulares.

Vale ressaltar também que a síndrome de burnout afeta mais trabalhadores que têm um emprego relacionado ao cuidado de pessoas, devido ao grande comprometimento exigido por esse tipo de atividade.

Os fatores psicossociais relacionados ao trabalho, como ambiente, condições para a realização das tarefas, funções, esforços e interações, são todos elementos fundamentais para o trabalhador dentro da empresa, por isso devemos atuar de forma preventiva nas organizações. A prevenção deve ocorrer através de grupos e promover, sobretudo, espaços de escuta, partilha, identificação e autoconhecimento. No momento atual, essa prática torna-se essencial para os trabalhadores terem a percepção de não estarem sozinhos.

Por meio dos grupos, eles entram em contato com pessoas que passam por situações parecidas, trocam experiências pessoais sem julgamentos e buscam alternativas e estratégias para lidar com a rotina, fortalecendo assim o próprio grupo. Ao entrar em contato com novas pessoas, compreendem melhor seus pares e podem apoiá-los, buscando qualidade de vida por meio de discussões de novas possibilidades e alternativas para resolução de conflitos, o que aumenta o sentimento de pertencimento, diminuindo então a sensação de exclusão social.


Flavia de Oliveira Pinho – Bacharela em Musicoterapia (FMU), com MBA em Gestão Estratégica do Capital Humano (FMU) e Mestra em Psicologia Social (PUC-SP). Foi docente e supervisora de estágios do curso de Bacharelado em Musicoterapia, na FMU. Atua como musicoterapeuta nas áreas social e clínica, realizando intervenções para docentes, cuidadores, trabalhadores da saúde e dos demais setores e grupos de mulheres.

 

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