Yoga e ayurveda: duas filosofias que se entrelaçam em direção à espiritualidade

Neste artigo, a espiritualidade será vista dentro do contexto indiano. Traremos o yoga como o lado espiritual do ayurveda, ou seja, como duas ciências ou modos de existir que se complementam para proporcionar uma boa qualidade de vida, partindo do pressuposto de que, ao praticar essas duas filosofias, as pessoas podem ter uma existência longa e com saúde física, mental e espiritual.

Georg Feuerstein (2006, p. 99), ao apresentar o yoga e as outras tradições do hinduísmo, traz um resumo da história cultural da Índia, fazendo observações pertinentes sobre o histórico da espiritualidade nesse país: “o subcontinente indiano é a pátria de milhares de cultos locais, que já foram chamados de “animistas” e “politeístas” e cuja diversidade é tão grande quanto a das culturas xamânicas do continente africano”.

O autor fala sobre as quatro tradições espirituais da Índia, que são o hinduísmo, o budismo, o jainismo e o sikhismo. No seu entendimento, “nenhum outro lugar deu à espiritualidade mundial uma contribuição tão grande quanto a Índia”. E isso tem sido de grande valia para a sociedade. A diversidade espiritual dos indianos tem servido de inspiração para outros povos repensarem o que é ser um indivíduo espiritualizado.

Neste artigo, não iremos nos aprofundar nos conceitos do hinduísmo, que é atualmente não só a maior religião da Índia, mas também uma cultura que denota um estilo de vida muito particular e uma organização social diferenciada, com todos os problemas que envolvem o indivíduo no meio em que vive.

Como diz Feuerstein (2006, p. 101), “o hinduísmo deu mostras de uma incrível capacidade de assimilar dentro de si até as coisas mais radicalmente opostas”.

Na Índia, é possível encontrar extremos e radicalismo em diversas correntes e escolas filosóficas, que defendem suas posições rígidas com o não-dualismo radical, o rígido dualismo e o ateísmo.

Outro exemplo desse contraste extremo entre posições filosóficas diversas é a presença, por um lado, da atitude “fria” e contemplativa do jnâna-yoga dos upanishads, e, por outro, do emocionalismo fervoroso de algumas escolas monoteístas de bhakti-yoga, a via da devoção (bhakti-mârga) da época medieval (Feuerstein, 2006, p. 101).

Para que compreendamos o yoga como sendo a parte espiritual do ayurveda, é necessário que tenhamos um entendimento mais profundo do que é e de como surgiu essa prática.

Muito antes de a palavra yoga adquirir o seu sentido costumeiro de “espiritualidade” ou “disciplina espiritual”, os sábios da Índia já haviam desenvolvido todo um conjunto de conhecimentos e técnicas que tinham por objetivo a transformação e a transcendência da consciência ordinária.

De acordo com Feuerstein (2006, p. 106.), “na Índia, o termo mais antigo que designava as práticas semelhantes às do yoga era tapas, que em sânscrito significa calor. A palavra tapas deriva da raiz verbal tap, que tem o significado de abrasar ou brilhar e que era usada com frequência no Rigue-Veda, com o objetivo de relatar qualidade e obra do disco solar e do fogo sacrificial. Esses textos deixam implícito que o calor do sol e do fogo é doloroso e opressor em sua intensidade abrasadora”.

Assim, a palavra tapas passou a designar o esforço religioso ou espiritual, a disciplina que o ser humano impõe a si mesmo sob a forma de práticas ascéticas.

O Rigue-Veda registra a época em que tapas passou a ser um meio religioso para a criação de um calor interior. A tradição de tapas continuou existindo de modo independente e paralelamente ao yoga. O yoga espiritualizou a antiga tradição de tapas, dando mais ênfase à autotranscendência do que à aquisição de poderes mágicos (Feuerstein, 2006, p. 107).

Como podemos observar, de acordo com o que foi posto acima, a história do yoga começou no tempo mítico e foi sofrendo transformações até chegar ao que conhecemos nos dias atuais. “No contexto das seis escolas da filosofia hindu, o yoga significa especificamente a escola de Patanjali, autor do Yoga-Sûtra” (Feuerstein, 2006, p. 123).

Toda a literatura ayurvédica baseia-se na filosofia da criação da escola samkhya (as raízes do termo samkhya vêm de duas palavras em sânscrito: sat, que significa verdade e khya, cujo significado é saber).

De acordo com Vasant Lad, médico e professor de medicina clássica nascido na Índia, “o leitor é convidado a cultivar mente e coração abertos rumo à filosofia samkhya, devido à sua estreita ligação com o ayurveda” (Lad, 2012, p. 15).

A afirmação desse autor chama a atenção para o compromisso com a verdade. “A palavra filosofia refere-se ao amor pela verdade e, em ayurveda, a verdade é Ser, Existência Pura, A Fonte de toda a vida. Ayurveda é uma ciência da verdade, na forma como ela se expressa na vida”. As práticas religiosas, a disciplina e a meditação foram os meios que levaram os rishis a alcançarem o entendimento da verdade em suas vidas diárias.

Lad esclarece que “ayurveda abrange não só a ciência como também a religião e a filosofia”. Isso nos leva a refletir sobre um conjunto de conhecimentos que andam lado a lado, com o objetivo de proporcionar para o indivíduo uma vida harmônica no sentido da saúde física, mental e espiritual.

Já o pensamento de David Frawley é de que “a psique (mente) tem raízes no espírito (eu superior). A espiritualidade é a essência da psicologia, que, de outra forma, terá de continuar a ser superficial e limitada”.

Portanto, na perspectiva desses autores faz-se necessário pensar a espiritualidade como uma prática vinculada à necessidade humana para alcançar saúde na sua completude.

Para tanto, o indivíduo precisa estar consciente de como a conexão com o divino é uma necessidade para se atingir uma vida gloriosa. O conhecimento de si e a oração são o caminho para a união com Deus.

A espiritualidade, no sentido do yoga e do ayurveda, é o empenho de unir-se a Deus ou ao Eu Superior. Ela inclui a atividade religiosa comum, baseada na fé, nos rituais e na oração, mas apenas como a parte inicial de uma busca interior para a compreensão de si mesmo por meio da meditação. A vida espiritual tem prosseguimento através de dois fatores principais: a devoção a Deus e ao conhecimento de si mesmo (Frawley, 2018, p. 187).

Podemos perceber que para alcançar bem-estar é preciso seguir uma vida disciplinada na observação das práticas essenciais que nos levam ao conhecimento de nós mesmos, assim como ao encontro do divino. Para isso, tanto o yoga como o ayurveda indicam-nos os caminhos que devemos seguir.

Como as pessoas vivem a espiritualidade na Índia?

O ayurveda e o yoga, que tiveram seu berço na Índia, são dois conhecimentos complementares para se atingir uma boa saúde e com isso longevidade. Segundo David Frawley, “o ayurveda é o ramo curativo da ciência yogue. O yoga, por sua vez, é o aspecto espiritual do ayurveda. O ayurveda é o ramo terapêutico do yoga”.

Ambos veem o corpo no seu aspecto sagrado e também a interação que existe entre o corpo e a mente. Se o corpo adoece, causa desordem na mente e isso é caminho para diversas doenças. A íntima relação que existe entre a conduta ética e a felicidade também é posta pelos textos ligados ao yoga.

Feuerstein afirma que “o yoga não é uma religião no sentido convencional, mas uma espiritualidade, um esoterismo, um misticismo. Não obstante, quando examinamos com atenção o hinduísmo, o budismo, o janaísmo e o sikhismo, vemos que o yoga, via de regra, não se vincula apenas às cosmologias, mas também às crenças e práticas religiosas dessas tradições” (Feuerstein, 2006, p. 125).

A Índia tem um panteão de divindades muito extenso, com deuses para várias questões da vida. Essas divindades são adoradas nos diversos templos que lá existem, sendo que há, inclusive, templos dedicados a cada uma delas especificamente.

A antropóloga Fabíola Silva Gomes analisa a questão da espiritualidade na Índia em sua tese de mestrado em antropologia social. Durante sua pesquisa e trabalho de campo etnográfico, realizados em 2009, ela pode vivenciar experiências em diferentes cidades indianas.

Fabíola dedicou-se, mais especificamente, ao estudo da comida e da alimentação como sistema simbólico e às interdições alimentares que estão presentes no dia a dia do povo indiano.

A estadia em cada uma das cidades que conheceu, bem como as viagens de trem de um lugar para outro, proporcionaram-lhe vivências que, analisadas como eventos etnográficos, ensinaram-lhe como a comida, em diferentes situações do contexto social indiano, tem significados e implicações específicas e complexas.

Em sua dissertação, ela esclarece que “o exercício realizado aqui é o de apresentar o que vi, ouvi e provei, bem como o modo como isso se deu. Partilhando e observando os rituais de alimentação, pude aprender sobre a capacidade que a comida tem, no contexto indiano, de aproximar, unir e demonstrar intimidade entre pessoas, fazendo emergir ao mesmo tempo, segmentação e diferenciação destas em relação a outras pessoas e grupos” (Gomes, 2010, p. 4).

A Índia apresenta uma diversidade social específica, marcada por um sistema hierárquico de cunho hereditário, o que faz desse país um lugar com muitas separações entre os indivíduos. O sistema de castas e também o gênero impõem às pessoas comportamentos diferenciados em muitas situações de convivência social.

Sendo assim, como se pode observar nas afirmações da autora, a comida, como representação das relações entre pessoas e grupos, é algo que ao mesmo tempo une e separa esses indivíduos.

Fabíola manteve seu foco nas cerimônias hindus, na comida e no modo de viver dos indianos, ou seja, de pessoas comuns que trabalham, cuidam de seus afazeres e dedicam-se ao lado espiritual/religioso.

“Meu interesse de longa data por essa forma de espiritualidade, bem como pela antropologia da religião, levou-me a observar mais de perto cerimônias e rituais religiosos em templos e ao ar livre. Os primeiros foram as procissões em honra da deusa Durga e outra a Shiva” (Gomes, 2010, p. 54).

Ela relata que, durante o tempo em que esteve na Índia, participou e assistiu a diversos eventos religiosos e o que aprendeu foi que a comida estava presente em todos. “A comida é parte imprescindível dos rituais religiosos hindus. Nenhum daqueles aos quais estive atenta se passou sem a presença de alimentos”.

Fabíola manteve-se atenta também ao comportamento das pessoas nos templos. “No templo dedicado a Ganesha (Kumarapuram Ganapathi Temple), as pessoas se organizavam em uma fila para passar pela imagem principal da divindade. Ao passarem por ela, as pessoas tocavam-na, num gesto de profunda devoção. Ao mesmo tempo, um homem percorria o templo com uma tocha acessa, aspergindo fumaça na direção das pessoas”.

Durante a cerimônia eram ofertadas frutas à divindade, sendo que as mesmas eram depois distribuídas entre os participantes do evento. Estes consideravam aquelas frutas abençoadas, porque Ganesha havia comido delas. Isso demonstra que a presença da divindade no templo é uma certeza.

Como se vê, a oferta de comida aos deuses é uma realidade consolidada na cultura do povo indiano. Para o deus Ganesha, são ofertadas frutas diversas, porém a predileta é o coco. “Em dias festivos, como o Ganesha Chaturthi, festival anual que reverencia esse deus, o prato de grande importância na celebração é o modaka, doce feito com coco ralado, açúcar, manteiga de leite (ghee) e farinha de arroz”.

É importante agradar aos deuses e para isso a oferta de comida é essencial nos eventos religiosos. Outros alimentos também são distribuídos entre os participantes de outras cerimônias, como a Ganga Aarti, na cidade de Varanasi e o Pongal: bolinhas brancas de açúcar, prasad e bhang. Vale destacar que tudo isso transforma essas cerimônias em eventos muito movimentados e barulhentos.

Fabíola afirma que os momentos por ela vividos entre pessoas daquele país, residentes em diferentes regiões e com idades, ocupações profissionais, pertencimentos religiosos e posições de castas diversas, foram tratados como eventos etnográficos, cujas análises permitiram-lhe entender que o alimento e seu compartilhamento funcionam como um símbolo que transmite três tipos de mensagens bastante convencionalizadas pelos sujeitos que participam das transações sobre a comida na Índia.

Nesse sentido, ela esclarece que “’aproximar pessoas, criar meios de expressar intimidades e igualdade é uma função que a comida exerce quando compartilhada por pessoas de mesma posição hierárquica. Segmentar ou classificar como diferente (em relação à idade, casta, gênero, afiliação religiosa) e demonstrar desigualdade ou subordinação hierárquica é uma função que a comida cumpre quando não há compartilhamento das refeições, dos alimentos em si ou dos ingredientes permitidos e interditos a cada grupo. Por fim, a comida exerce um papel inverso nos momentos de celebração religiosa, suspendendo as relações hierárquicas entre devotos – pertencentes a diferentes grupos, castas e idades – e criando uma subordinação aos deuses”.

Na medida em que refletimos sobre o que essa autora descreve acima, compreendemos que os caminhos que nos levam à espiritualidade têm diversos seguimentos, que nos fazem deixar para trás muitos conceitos que por vezes são predeterminados pela sociedade.

O contexto social tem suas regras de convivência entre as pessoas, que muitas vezes as colocam em lugares em que não gostariam de estar. Porém, em outras situações, os lugares onde estamos nos fazem deixar as diferenças de lado para podermos viver momentos sublimes de interação com outras pessoas.

Como diz o líder espiritual Sai Baba, “existe apenas uma religião, a religião do amor. Existe apenas uma casta, a casta da humanidade. Existe apenas uma língua, a língua do coração. Existe apenas um Deus. Ele está dentro de cada um de nós e todos somos um”.


Maria Natividade Gomes de Siqueira – Graduada em Ciências das Religiões, pela Universidade Federal da Paraíba – UFPB.

 

Nota: artigo extraído e adaptado do trabalho de conclusão de curso intitulado Ayurveda: um estudo das relações entre os doshas e os pressupostos alimentares e espirituais, apresentado no programa de graduação em Ciências das Religiões, da Universidade Federal da Paraíba – UFPB, em 2020, sob orientação da Profa. Dra. Maria Lucia Aburre Gnerre.

 

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