Entrevista – Artes manuais e saúde

Nina Veiga, artista e terapeuta, fala sobre o potencial terapêutico das artes manuais domésticas, com base nos conceitos da medicina antroposófica.

RevMedIntegrativa As artes manuais são um tipo específico de arteterapia? Qual as semelhanças e diferenças em relação a outras técnicas de arteterapia?

Nina Veiga – A diferença fundamental está no locus, no lugar onde elas acontecem. As artes manuais para terapias, que são meu objeto de estudo, são aquelas que se dão em casa, a partir de uma tradição familiar e da ancestralidade. Tem a ver com a tia, a avó ou a mãe que fazia essas atividades… ou que não fazia. Com o pai, que executava pequenos consertos na casa. Nesse lugar e nesse tipo de gesto há uma potência terapêutica, que na verdade tem mais relação com a casa do que com a própria família.

A arteterapia, de um modo geral, envolve pintura, escultura e toda uma série de outras atividades artísticas. Já as artes manuais para terapias envolvem especificamente as artes ligadas às necessidades de organizar a casa, como por exemplo costurar ou remendar uma roupa, fazer uma cortina, etc.  Elas estão atreladas à representação e ao conceito do “cuidar da casa”.

RevMedIntegrativaComo as artes manuais domésticas ajudam na manutenção da saúde e prevenção de doenças? Podem ser aplicadas tanto de forma preventiva como curativa?

Nina Veiga – Em termos terapêuticos, pode-se dizer que as artes manuais domésticas têm um efeito preventivo e também curativo. Porque elas estão atreladas ao sentido da vida, que é muito mais amplo do que se ter uma meta existencial. Quando a pessoa cozinha ou produz com as mãos alguma coisa para o seu uso, ela resgata uma significância que a sociedade de consumo extrai de nós. Nossa vida atual é um gesto “de prateleira”. A gente pouco faz daquilo que precisa, apenas colhe. As casas são estéreis em termos de fazer e é exatamente esse fazer que é preventivo e curativo.

Todas as terapias artísticas demonstram que, quando uma pessoa faz uma atividade, ela se alinha, melhora da depressão, melhora seus estados de humor. No caso de crianças, há um desenvolvimento da cognição. Também é tradicional associar o tricô à matemática e o crochê ao processo de escrita.

Mas, no caso das artes domésticas, das artes manuais da necessidade, os efeitos são ainda mais amplos. Aquilo que a gente faz tem um “sentido” existencial e também o “sentido” do tato. O fazer manual doméstico está sempre vinculado a essa sensação tátil do próprio artífice que faz, mas também à sensação “tátil” que se tem em relação à casa, porque aquilo que se produz com as mãos não é “plastificado”.

RevMedIntegrativaAs artes manuais podem ser aplicadas de forma complementar no tratamento de doenças?

Nina Veiga – Quando as artes manuais são feitas com intenção produtiva, ou seja, quando o artífice se vê obrigado a fazer gestos repetidamente para concorrer com aquilo que as máquinas fazem, podem se tornar um agravante da saúde. No entanto, quando esse fazer é significativo, para o autocuidado ou para o cuidado da casa, ele pode se tornar terapêutico.

No sentido físico, fisiológico, orgânico, quando as artes manuais são feitas com intenção produtiva podem afetar a postura e o corpo e aumentar o sedentarismo. Mas se são feitas de modo a trazer sentido para a vida, há um benefício até para a própria corporalidade. Sabe-se que as mãos têm terminais nervosos muito importantes que ampliam as capacidades do cérebro. A fiação, por exemplo, ajuda na manutenção do pensamento. A atividade na roda de fiar é um processo meditativo, que atua sobre a respiração, trazendo, consequentemente, uma melhoria fisiológica geral para todo o corpo.

A questão é que não existem muitas pesquisas científicas específicas sobre artes domésticas. Temos disponíveis, por um lado, vários estudos por exemplo sobre artes visuais e processos de loucura. Mas não sobre essas artes manuais da necessidade, que estão próximas de cada um de nós e que se constituem de pequenos movimentos.

Também existem alguns estudos que mostram os resultados benéficos das artes manuais em processos de fobias, depressão, etc. Até o momento, o que se pode afirmar é que há de forma clara uma melhoria do quadro geral, principalmente no que se refere à diminuição do uso de medicamentos, como antidepressivos e ansiolíticos.

Ou seja, as pesquisas estão voltadas para a análise dos efeitos das artes manuais sobre a psique humana. Mas praticamente não há estudos específicos sobre os processos fisiológicos envolvidos, como por exemplo a respiração, e que são beneficiados por essas atividades. É necessário aprofundar a questão da fisiologia do fazer, da fisiologia das artes manuais, para que se possa saber como elas atuam no organismo.

Com base nessa constatação, eu idealizei e estou coordenando, a partir do mês de abril, uma pós-graduação lato sensu sobre artes manuais para terapias, que tem como uma de suas metas desenvolver pesquisas desse tipo. Serão 25 pesquisadores estudando os vários aspectos das artes manuais para terapias, incluindo os fisiológicos. A partir de 2020, já deveremos ter alguns artigos científicos abordando especificamente as artes manuais domésticas ligadas à existência necessária.

RevMedIntegrativaDe que forma o “fazer com as mãos” se conecta com o corpo como um todo, com a mente e com as dimensões emocionais e espirituais?

Nina Veiga – A capacidade de fazer com as mãos produz uma ética existencial, porque há uma coerência entre a ideia que a mente tem e aquilo que se faz. Quando a pessoa tem uma ideia e executa algo, isso traz uma satisfação emocional e um alinhamento ético, estético e até político-existencial. E se pensarmos no aspecto espiritual como aquilo que nos é ético, podemos dizer que esse alinhamento inclui também a dimensão espiritual.

E isso é válido tanto para o bem quanto para o mal. Porque quando se pensa em algo e não se consegue fazer, isso também aciona uma série de emoções. E é aí que se coloca a questão da vontade de elaborar. O sociólogo Richard Sennett fala sobre “a vontade de fazer bem feito”. Para mim, essa expressão é de grande clareza. O artífice tem vontade de fazer bem feito e o bem feito é justamente esse alinhamento ético, estético e existencial. Então, posso dizer que acredito, sim, que a mão conecta o ser mente-corpo.

RevMedIntegrativaCom que periodicidade e por quanto tempo as artes manuais devem ser praticadas para que deem resultados?

Nina Veiga – A prática de consultório é diferente da prática doméstica. As artes manuais domésticas são acionadas diante da necessidade. Ela é que vai determinar a demanda.

Vou usar como exemplo uma meia que furou, que é algo bem simbólico. O que a gente faz? Joga fora, vai a uma loja e compra outra. Ou seja, o sentido desse movimento é todo comercial. Agora, se você tem a necessidade de reparar o furo e vem com um ovo de cerzir e conserta, muitos outros aspectos estão implicados.

Então, a frequência é determinada pela necessidade e leva à transformação, digamos assim, do ser humano comercial, voltado ao consumo, para aquele que cuida, que repara. E esse cuidar, reparar e organizar tem a ver também com cuidar, reparar e organizar internamente. Essa pausa que a pessoa vai fazer, nesse cotidiano tão doido que temos atualmente, para costurar aquilo que arrebentou, para pregar o botão que caiu, é constituidora de sentido. A pessoa interrompe uma demanda externa frenética e faz uma pausa para o cuidado. E isso produz, sim, saúde.

RevMedIntegrativaPor que é importante que a pessoa conte com a orientação de um profissional especializado na aplicação da técnica?

Nina Veiga – Do ponto de vista das artes manuais domésticas, a potência terapêutica está no fato desse fazer manual, desses gestos serem transmitidos de modo orgânico dentro da própria casa, ou seja, sem orientação de um profissional.

Isso ainda ocorre com mais frequência, hoje em dia, em relação à culinária, com uma mãe, por exemplo, que ensina o filho a cozinhar. A cozinha ainda é um lugar em se mantém um pouco a tradição de uma geração ensinar a outra, de a pessoa aprender dentro de casa. Já as artes manuais da necessidade foram quase que completamente capturadas pelo comércio.

Então, nesse contexto, a participação do profissional, principalmente do terapeuta, pode ser a de ajudar para que essa lógica do reparo e da construção, de fazer uma roupa para si mesmo, de fazer uma cortina para a sala, volte a acontecer na vida daquela família ou daquele grupo de pessoas que moram juntas (porque casa não tem necessariamente a ver com família) e, assim, comece a contaminar positivamente outras pessoas.

RevMedIntegrativaAs sessões terapêuticas são feitas individualmente ou em grupo? Por quê?

Nina Veiga – Como terapia, as artes manuais podem ser usadas pelo profissional clínico de forma individual no consultório, mas como um fator motivador. Ou seja, a pessoa começa a fazer no consultório, mas vai continuar em sua vida doméstica. Temos depoimentos de pessoas com muita ansiedade que passaram a noite a tricotar, pondo as coisas em ordem. Com esse movimento, fizeram obras que colocaram na casa e, com isso, foram solucionando uma série de questões internas e externas.

As artes manuais podem também ser utilizadas de modo coletivo, por exemplo, em rodas de conversa, orientadas por coaches ou profissionais de recursos humanos. Isso inclusive resgata a tradição das pequenas rodas de bordados, em que a conversa flui enquanto o bordado é feito.

Essa dimensão horizontal, digamos assim, do fazer é muito importante para o universo das artes manuais aplicadas em terapias e também traduz vivências da própria casa. Numa tradição ancestral, antes do consumo dominar todos os aspectos da nossa vida material, quando ia ocorrer um casamento, por exemplo, as mulheres em especial se reuniam para fazer os preparativos, costurar as roupas, etc. O próprio enxoval era elaborado nas casas, por necessidade. Existem vários estudos sobre essa questão do enxoval.

Nessas rodas de mulheres da família e amigas, todas trocavam informações e depoimentos sobre a vida cotidiana. Vemos cenas assim sendo retratadas em filmes, mas muita gente tem essa experiência doméstica de sua própria vivência pessoal em família.

Minha tia Carlota, por exemplo, que era uma exímia costureira, quando um bebê ia nascer na família, transformava nossa casa num ateliê e, durante uma, duas ou às vezes mais semanas, ficava aquele movimento para fazer todo o enxoval: os babados e protetores do berço, as pequenas peças, as bainhas nas fraldas.

São esses fóruns que se constrói quando as artes manuais estão sendo feitas. Esses gestos, essas vivências, são afetivos e também contaminam positivamente os que deles participam. Então, mais do que dizer que se trata de uma sessão, pode-se afirmar que é uma relação.

RevMedIntegrativaA escolha das atividades a serem desenvolvidas é feita pela própria pessoa ou pelo terapeuta/facilitador? Por quê?

Nina Veiga – Esse é um dos focos de pesquisa na pós-graduação em artes manuais para terapias que estamos desenvolvendo. Reunimos um grupo grande de pesquisadores que muitas vezes já aplicam o conhecimento empírica e intuitivamente, mas que ainda não o nomearam ou sistematizaram. E é isso que queremos fazer.

Então, se uma pessoa tiver uma determinada queixa, poderemos saber qual a melhor técnica a ser aplicada para aquele caso. Em terapia artística, isso já existe e, dependendo do problema, a pessoa é orientada a trabalhar com argila, aquarela, acrílico ou carvão. Em artes manuais para terapias, na perspectiva que inclui a ancestralidade doméstica, essa sistematização do conhecimento ainda é tênue. Mas já temos algumas dicas. Por exemplo: para promover o alinhamento ético-estético-político-existencial, eu uso a fiação, porque nela a pessoa tem que produzir em relação com a roda e o fuso, que representam a força motriz do mundo. Isso a coloca num equilíbrio si-mundo muito importante.

Já o crochê é usado em processos de construção, porque com ele é possível produzir uma estrutura e criar volumes. Assim, se a pessoa estiver muito “solta”, fazer crochê pode ajudá-la a se estruturar. Por outro lado, se ela já estiver fazendo crochê em excesso ou bordado demais, o que eu aconselho para equilibrar sua saúde é trabalhar com feltragem molhada, por exemplo, para diluir a forma tão dura que o crochê traz.

Então, usando as diferentes técnicas é possível “tirar” o cliente-paciente do “lugar” em que ele está ou “contrastar”. Se ele está com forma demais, pode-se orientá-lo a sair do crochê e diluir. Se ele está com forma de menos, aconselhá-lo a sair da forma não estruturada, como a feltragem molhada, para algo que o ajude a se alinhar.

O processo de tecelagem também equilibra o corpo todo, inclusive em relação aos processos cardiorrespiratórios. No tear de mesa, por exemplo, o próprio gesto já alinha a respiração ao movimento e à produção. E, por meio da cultura material, a pessoa vê o produto daquilo que ela está fazendo. Os erros e os acertos ficam evidentes. Isso cria uma possibilidade muito clara para a visualização dos seus processos.

RevMedIntegrativaDentre os estudos científicos já existentes, embora sejam poucos, quais podem contribuir para o entendimento da relação entre artes manuais e melhoria da saúde?

Nina Veiga – Entre os poucos autores que se dedicam com maior profundidade ao estudo das mãos e seus fazeres está o neurologista Frank Wilson, que elaborou um compêndio sobre esse tema ainda não traduzido para o português. Trata-se de um estudo científico muito poderoso, talvez o mais completo de todos e que vai muito além desse modo de analisar a mão pelo seu uso ou valor de troca, como foi citado acima, ou seja, de que se faz tricô para matemática, fiação para a mente, etc. Ele estudou as mãos com enfoque em suas potências fisiológicas.

Há também alguns outros estudos consistentes, como o de Gilbert Simondon, que fala sobre uma filosofia biológica da técnica e de Francisco J. Varela, no livro A Mente Incorporada, com base nos quais podem ser feitas algumas inferências.

E, atualmente, alguns autores vêm levantando também a questão do empobrecimento das mãos, em razão do tato muito superficial e repetitivo que se tem com as telas de equipamentos, e dos distúrbios que isso tem produzido.

RevMedIntegrativaEm que situações e para quais casos um médico pode e deve indicar a prática de artes manuais para seus pacientes, como forma complementar de tratamento?

Nina Veiga – Esse conhecimento e percepção de saúde atrelados às artes manuais domésticas têm como fundamento a antroposofia, doutrina filosófica criada por Rudolf Steiner. Então, posso dizer que os médicos adeptos da medicina antroposófica costumam, sim, indicar terapias em artes manuais.

Da mesma forma, nos currículos das escolas Waldorf, cuja abordagem pedagógica também é baseada na antroposofia, as artes manuais executadas pelas crianças têm sempre esse sentido de objeto necessário para a casa, com o propósito de promover aquele alinhamento ético, estético e político-existencial que abordamos anteriormente.

Já recebi várias pessoas, em meu ateliê terapêutico e de educação, que vieram participar de alguns encontros de fiação por indicação de médicos, que perceberam que essa atividade poderia beneficiar esses pacientes em seus processos de alinhamento e saúde.

Mas, no momento, pode-se dizer que essa percepção está limitada aos médicos que aplicam os conceitos da medicina antroposófica e constatam os efeitos dessas práticas em seus consultórios. Por isso, precisamos ampliar as pesquisas científicas, para que mais médicos possam conhecer e perceber as potências preventivas e curativas das artes manuais domésticas.


Ana Lygia Vieira Schil da (Nina) Veiga – Artista, terapeuta, doutora em educação, escritora, conferencista e educadora Waldorf, com oficinas e workshops ministrados no Brasil e em diversos outros países. É idealizadora e coordenadora da Pós-graduação em Artes-Manuais para a Educação, Artes-Manuais para Terapias e Artes-Manuais para o Brincar.