A pesquisa em artes-manuais para terapias

Às vésperas de completar trinta anos de atividade investigativa junto às artes-manuais, especialmente ligada aos processos terapêuticos e sociais, constato a consolidação de um dos pontos mais desafiadores da pesquisa, seu aspecto terapêutico.

Desde que idealizei e passei a coordenar a Pós-graduação em Artes-Manuais para Terapias, tenho investido na definição de seu território de pesquisa, diferenciando-o das demais terapias artísticas. A marca dessa diferença pode ser vista até mesmo no uso do hífen que liga as palavras artes e manuais, na grafia adotada.

Neste artigo pretendo apresentar elementos que possam fazer ver mais claramente essa diferenciação. Alguns elementos mostram-se importantes para essa compreensão, como os fatores implicados na definição do território de pesquisa, os apontamentos sobre os processos de subjetivação envolvidos na artesania, o deslocamento do conceito de mercadoria e sua centralidade para os modos de pesquisar e as políticas de narratividade no dizer da experiência rente ao fazer artesanal.

Começo situando o território no qual habita a pesquisa, proposta ampla e diferenciada na adoção das artes-manuais como dispositivo nos processos terapêuticos.

O território da pesquisa

A pesquisa em artes-manuais para terapias tem seu foco na artesania historicamente constituída pelas necessidades cotidianas da casa. Acredita-se que a casa possui saberes e técnicas que se compõem positivamente com as práticas terapêuticas, a partir de sua concretude e do seu uso.

Dentre um vasto universo da cultura manual doméstica, a atual fase da pesquisa seleciona como território investigativo a costura, a fiação, a tecelagem, o bordado, o tricô, o crochê e as demais artes têxteis originárias das práticas ancestrais da casa. Esse recorte permite aproveitar a familiaridade do pesquisador com as técnicas para a ampliação do caráter vivencial da investigação, quesito importante na metodologia utilizada.

Uma das primeiras constatações feitas sobre o território da pesquisa é a percepção de que, por surgirem no âmbito da casa, as artes-manuais têxteis trazem em si a vocação de dispositivos de sensibilização e cuidado. Assim, ao serem deslocados para o campo da clínica, esses dispositivos ampliam as condições de visibilidade dos processos de subjetividade, envolvidos no fazer-dizer do exercício terapêutico.

A composição interdisciplinar da pesquisa em artes-manuais pensa a prática clínica de modo ampliado, considerando-a tanto dentro quanto fora do consultório. Além do consultório, também fazem parte do campo investigativo as rodas de conversa e de fazeção, as atividades ligadas aos recursos humanos, tanto nas empresas quanto nos espaços do serviço público e não-governamentais e as iniciativas de facilitação das relações sociais nos diversos âmbitos, além dos recursos especiais ligados à escola, em todos os níveis.

A partir desse território, em seus múltiplos agenciamentos, a pesquisa pousa seu olhar nos processos de subjetivação de clinicandos e terapeutas, revelados em sua relação com as manualidades tornadas dispositivos.

Atualmente, as investigações que trazem mais fortemente a questão do território são, entre outras: “A cartografia da casa e a experiência do vivido: o fio como suporte do peregrino”, da pesquisadora discente Flávia Lopes, que visa investigar a casa como território de cuidado e dispositivo para vivência terapêutica integral e “Cerzindo a vida: devires nas dobras das manualidades, espaços e materialidades”, da pesquisadora discente Márcia Gallo, onde ela discute como o fazer manual, num espaço institucional de cuidado, pode  ampliar a potência dos devires.

Os processos de subjetivação

Ao ancorar a investigação em uma metodologia que acompanha os processos de subjetivação, em sua qualidade e singularidade, interessada em perceber como alguém se torna em contato com as artes-manuais, o exercício de pesquisa transforma-se ele mesmo em proposta terapêutica.

Assim, ao colocar-se em experimentação, o pesquisador está aberto a compreender as forças envolvidas em cada uma das técnicas artesanais, suas práticas e usos. Isso implica a radicalidade de um vínculo investigativo que, ao possibilitar a sensibilização do pesquisador, quer garantir a legitimidade de percepção do terapeuta na avaliação da melhor técnica e prática para cada demanda clínica.

Essa dinâmica de experimentação coloca o próprio pesquisador em processo clínico investigativo, permitindo observar o território de pesquisa a partir do si mesmo e vivenciar ativamente como se dá a relação entre as artes-manuais e os processos de subjetivação, base para uma atuação terapêutica dessa natureza. Além disso, colabora com a instalação de simultaneidades, em equilíbrio ativo, proveniente do fato de enfatizar com igual medida o pensar, o sentir e o fazer, desde a pesquisa até a atuação clínica. Um modo de ser e viver da pesquisa que evita a intelectualização abusiva e unilateral, quase sempre fruto de um diletantismo que não associa o corpo e a experiência à dinâmica investigativa.

Essa escolha metodológica revela sua inspiração teórica na antroposofia, de Rudolf Steiner, ampliada pelas filosofias da imanência. A adoção desse procedimento quer elevar o pesquisador terapêutico à categoria de artífice de si, no entendimento das artes-manuais para terapias como uma composição de gestos integrais e afirmativos de vida e saúde, a serem promovidos desde sua investigação.

As pesquisas mais fortemente relacionadas aos processos de subjetivação são, entre outras: “De Penélope a Ariadne entre fios e tessituras: uma viagem pela subjetividade do feminino”, da pesquisadora discente Cláudia Dansa, que investiga o desenvolvimento de um dispositivo que tem como objetivo estabelecer um contato entre sujeitos, suas formas de produzir materialidade e sua produção de si, ao participarem de um processo terapêutico, tendo as artes do fio como eixo da proposta e “Cartografias do corpo: processos do fazer no cuidado de si”, da pesquisadora discente Elissangela Freitas, que investiga a questão da forma, a partir do macramé e suas afetações com a corporalidade.

 O deslocamento do conceito de mercadoria

Diferentemente de muitas pós-graduações lato sensu, que especializam o aluno em um repertório já constituído e consagrado, a Pós-graduação em Artes-Manuais para Terapias tem sua ênfase na experimentação e na pesquisa. Isso acontece por se tratar de um território em construção sempre aberto e singular, com base em premissas diferenciadas do que se convencionou chamar de terapias artísticas. Essas últimas são, quase sempre mais ligadas às artes visuais do que à artesania da casa, considerada como prática centrada no uso e na transmissão ancestral dos saberes.

O laboratório clínico da pesquisa processa-se junto ao corpo e à experiência, distribuído igualmente nas instâncias conceitual, procedimental e atitudinal. Essa opção metodológica e curricular quer evitar um efeito muito comum no universo das especializações oferecidas pelas instituições privadas: sua apropriação como um produto do mercado educacional. A consequência de considerar a pós-graduação lato sensu como produto, quase sempre, é assumi-la como um serviço educacional e, por extensão, como mercadoria. Assim, desde o processo seletivo, descolando-se da condição de cliente de serviços educacionais, o discente reconhece seu protagonismo e passa a ser autor da sua formação especialista.

Investir no deslocamento do lugar da mercadoria é ação querida e necessária não somente na estrutura do curso, mas também na própria concepção do objeto da pesquisa. A peça artesanal muitas vezes é tomada como mercadoria, como objeto de troca. A consequência disso é o enfraquecimento da percepção da artesania em sua função, em seu significado junto ao uso.

A proposta terapêutica em pesquisa requer deslocar a artesania tomada como mercadoria para evidenciar seus processos e usos e ampliar seus significados junto à subjetividade. Esse deslocamento é necessário até mesmo quando a artesania é tomada como objeto artístico, pois a dinâmica da arte como mercadoria, nas sociedades de consumo, parece apequenar o significado do fazer artístico artesanal e diminuir a visibilidade dos processos imbricados em seu fazer.  Na pesquisa em curso, o objeto é uma peça para o uso, quer responder a uma necessidade cotidiana. Isso não significa que ele seja desprovido de beleza ou arte, mas que seus atributos não são comercializáveis, seja no âmbito do produto artesanal ou da exposição artística.

Essa proposta de deslocamento do fazer artístico artesanal da sua dimensão produtiva junto ao mercado pode atuar, em uma sociedade que tem o consumo em centralidade, como exercício dessubjetivante e permitir ao terapeuta consolidar um dispositivo concreto para fazer ver e dizer muitas das queixas demandadas na clínica. Pois, o fazer algo para si, algo simples para o uso, sem estar submetido a uma lógica de mercado é um exercício que exige o investimento em recursos e dinâmicas corporais pouco usuais no contemporâneo.

Um bom exemplo disso está no processo de fiação. Ao entregar-se à investigação das fibras, à transformação de matéria bruta em fio, ao tingimento com corantes naturais caseiros, o pesquisador reúne uma série de práticas que permitem a promoção de um conjunto de intensidades e significados que colaboram para uma produção de sentido muitas vezes desconhecida das subjetividades plasmadas pelas estruturas capitalísticas.

As pesquisas mais fortemente relacionadas ao deslocamento da noção de mercadoria são, entre outras: “Artes-manuais em um projeto social: trilhas de mão dupla para a promoção de encontros, vínculos e bem-estar”, da pesquisadora discente Renata Fonseca, que concentra sua atenção na escuta dos participantes de oficinas oferecidas por um grupo de apoio social e “A morte como meio: ausência e presença nas memórias da casa”, da pesquisadora discente Lilian Soarez, que visa responder à questão: o que fazer diante da morte, diante dos objetos deixados pelos mortos?

As políticas de narratividade no dizer da experiência do fazer manual

A começar pela adoção inusual do hífen entre as palavras artes e manuais, as políticas de narratividade da pesquisa esforçam-se para acolher e expressar as intensidades do campo investigativo. O hífen, uma notação léxica aparentemente insignificante, tem o poder de criar uma palavra composta, com significado próprio. Por intermédio dessa hifenização quer-se, junto às filosofias da imanência, evidenciar a relação de intensidade entre os dois elementos. A junção das palavras artes e manuais compõe um encadeamento vocabular que sugere uma relação potencializadora. O hífen é, ao mesmo tempo, aquilo que separa, que une, que opõe e concorda, ou seja, o hífen é aquilo que mantém um tensionamento.  Ao agenciar as palavras artes e manuais, o hífen marca a possibilidade de produção de devires, pois as intensidades não são estados fixos, acomodados, e, sim, movimentos sempre abertos à produção de outros movimentos.

A pesquisa em artes-manuais e sua decorrente política de narratividade é um exercício que vocaliza as intensidades e se abre aos devires. Imbrica a escrita ao corpo no fazer artístico, promove a implicação do pesquisador naquilo que faz, pensa e sente, desde a investigação até a atuação terapêutica. Ação decorrente de um processo formativo que investe na experimentação, enfatizando a singularidade de cada pesquisador e de cada ação pesquisada.

A narrativa da pesquisa é campo expressivo para o dizer dos processos vivenciados na investigação, que não se conformam aos modos convencionais e higiênicos da escrita acadêmica usual. A poética adotada é elemento importante para associar os modos de subjetivação ao território de pesquisa. É o que apresenta a investigadora egressa Sofia Amorim, especialista em artes-manuais, em “O hífen e a pesquisa em artes-manuais”, texto integrante da coleção “Artes-Manuais para Educação: a produção de conhecimento entre os fios da casa e de si” (ainda no prelo), editada a partir das pesquisas das discentes pesquisadoras: “Pesquisar hífen é entrar nas forças que nos compõem, um modo de enfrentamento a um mundo que tende a apequenar as rotas invisíveis traçadas pela firmeza de quem compõe vida com os fios. Ser pesquisadora das artes-manuais com hífen é sustentar um corpo que pesa, produtor de ‘entres’, numa escrita que não escapa das contradições e ambiguidades de uma existência afirmativa”.

Durante a pesquisa, dedicamos muita energia para desenvolver uma arte-manual do escrever que dê expressão às dinâmicas investigativas. Compomos exercícios e experimentações, em laboratórios de escrita intensiva, para que o pesquisador consiga ultrapassar as amarras da escrita acadêmica convencional. Assim, desenvolvemos um modo de escrever que, ao acompanhar os processos vividos pelo pesquisador, no campo da pesquisa, quer também afetar posteriormente o leitor do trabalho, fazendo da recepção um ato igualmente intensivo e aberto aos devires. As técnicas artífices agenciadas a esses exercícios abrem a possibilidade de conexão entre o corpo do artífice e a voz do pesquisador, ampliando seu poder dizer da experiência, processo de aprendizagem que se reflete diretamente nas dinâmicas da clínica.

As pesquisas mais fortemente relacionadas às políticas de narratividade são, entre outras: “ABC material-afetivo: pistas para um vocabulário das artes-manuais”, da discente pesquisadora Cristina Yamazaki, que pretende organizar um vocabulário que exponha as pistas dos conceitos de artes-manuais com hífen e “Fiando úteros: atuação das artes-manuais nos desequilíbrios do aparelho reprodutor feminino”, da discente pesquisadora Aline Gonet, que reflete sobre o conceito de chora, como matriz de realização e fonte de devires.

Uma pesquisa sempre em transformação

A proposta de uma especialização focada em pesquisa é um desafio sempre aberto a transformações. A partir da consolidação do território e dos modos de pesquisar, outros componentes passam a aparecer e ampliar a investigação.

Neste momento, tenho me dedicado a amadurecer a compreensão da relação das artes-manuais para terapias com cada uma das escolas ligadas à área da psicologia. Assim como, à eleição de autores que apresentam o mundo e as práticas manuais de modo diferenciado dos cânones ocidentais, compondo epistemologias outras. Além disso, a publicação de livros provenientes das pesquisas e a adoção desses por novas pesquisadoras trazem concretude ao campo e permitem que novas transformações aconteçam, fazendo das artes-manuais para terapias um território intensivo, sempre aberto aos devires.


Ana Lygia Vieira Schil da (Nina) Veiga – Artista, terapeuta, doutora em educação, escritora, conferencista e educadora Waldorf, com oficinas e workshops ministrados no Brasil e em diversos outros países. É idealizadora e coordenadora da Pós-graduação em Artes-Manuais para a Educação, Artes-Manuais para Terapias e Artes-Manuais para o Brincar.