A medicina tradicional chinesa (MTC) traz na sua concepção que os constituintes básicos do organismo são o Qi (energia vital), o sangue (Xue) e os líquidos orgânicos (Jin Ye).
Esses últimos são produtos oriundos da essência dos alimentos e estão representados pelos líquidos normais presentes no corpo, tais como os encontrados no aparelho digestório e nas articulações, os que banham os órgãos, o suor e a saliva, entre outros.
As principais funções dos líquidos orgânicos são as seguintes: lubrificar os órgãos, os músculos, a pele e as articulações, ser um constituinte do sangue, nutrir a medula e o cérebro e manter o yin e o yang em equilíbrio.
Esses líquidos são produzidos, metabolizados e transformados no organismo sob a ação do Qi, que se encarrega de auxiliar a função de alguns órgãos como o pulmão (distribuição), o baço/pâncreas (transformação e transporte), os rins (aquecimento) e o triplo aquecedor (circulação).
Qualquer problema com o Qi desses órgãos pode levar a um comprometimento no metabolismo desses líquidos, que podem se tornar insuficientes, ocasionando sintomas relacionados à secura ou podem se acumular, gerando edemas.
Umidade externa e interna e o processo de adoecimento
O organismo humano, quando saudável, é capaz de resistir em certo grau aos agentes estressores, sejam eles internos ou externos. No entanto, algumas vezes, mudanças muito abruptas ou intensas irão repercutir na homeostase e dessa forma ultrapassar a capacidade de resistência do corpo, determinando o adoecimento. Esses agentes podem ser os excessos, como o calor, frio, vento, secura e umidade.
Especificamente em se tratando da umidade, essa pode atuar como fator patogênico externo que agride o organismo de pessoas, especialmente as que vivem em localidades onde o clima é muito úmido ou ainda que permanecem tempo demasiado com o corpo molhado.
Outra forma é a umidade produzida internamente, causada por deficiência do baço/pâncreas. Para a medicina tradicional chinesa, o órgão baço/pâncreas está ligado à víscera estômago e ambos são responsáveis pelo processo da digestão.
O baço/pâncreas tem como função principal promover a transformação e o transporte dos alimentos e líquidos e se essa função estiver prejudicada pode haver, entre outros sinais, o acúmulo de líquidos no organismo.
É sabido que o baço/pâncreas gosta de secura e não tolera a umidade. Ele é prejudicado pelo consumo excessivo de alimentos crus e frios, doces e bebidas geladas, além de ter suas funções perturbadas por fatores emocionais ligados ao excesso de meditação (o que é compreendido, no ocidente, como excesso de preocupação).
É importante perceber que o fator externo pode influenciar o interno e vice-versa, determinando o agravamento do quadro clínico, em especial se o yang do baço/pâncreas estiver deficiente.
A umidade tem como características próprias ser pesada, ocupar espaço, obstruir e com isso provocar estagnação. E, por fim, como é de natureza yin, acaba prejudicando o yang e perturbando a circulação nos meridianos e a função dos órgãos.
Com a presença de umidade, o indivíduo refere diminuição da sede e ingere líquidos aos goles, suas fezes tornam-se soltas e a urina, turva, podendo ainda ter coriza, edema depressível, que pode ser localizado ou mesmo generalizado e acompanhado de frio no local ou intolerância ao frio, e dispneia.
Durante o exame, a língua nessas situações em geral se mostra com tamanho aumentado, pálida e úmida, enquanto o pulso é deslizante ou deficiente.
Com a persistência da umidade, os líquidos orgânicos vão se estagnar, ocasionando o aparecimento das mucosidades, também conhecidas como fleuma, que é definida como uma condição que surge quando o líquido corporal torna-se mais denso e viscoso em decorrência da mudança em suas características fisiológicas.
Na medicina tradicional chinesa, vários processos podem fazer com que a umidade se transforme em fleuma, entre os quais podem ser destacados a deficiência do Qi do baço/pâncreas, pulmão e rim, a estagnação do Qi, dos alimentos e dos fluidos, o calor, a secura e o vento. Todos esses, como consequência, irão promover a estagnação dos fluidos orgânicos.
Mucosidades: sinais e sintomas
Os tópicos a seguir mostram as consequências da presença de mucosidades no organismo e os sinais e sintomas relacionados a cada uma delas.
Lentificação dos processos corporais: sonolência, cansaço no corpo, sensação de peso na cabeça e nas pernas, fadiga muscular, movimentos lentos notadamente nos membros superiores e inferiores, parestesias, dores articulares e pensamento confuso.
Ocupação de espaços: distensão abdominal, plenitude no estômago e sensação de bolo na garganta.
Exteriorização através do sistema respiratório: tosse com muco e catarro.
Perturbação da mente: confusão mental e delírios.
Prejuízo ao fluxo do Qi: náuseas, vômitos e regurgitação.
Geração de acúmulos: edemas, ascite, retenção de líquidos, leucorreia espessa, surgimento de massas, nódulos, adenomegalia e cálculos.
Tratamento da umidade e fleuma
Para tratar a umidade e a fleuma, a medicina tradicional chinesa utiliza ações terapêuticas que buscam eliminar a umidade e transformar a fleuma. Para tal, são indicadas não só plantas medicinais, mas também acupuntura, mudança de hábitos alimentares e pessoais e afastamento de localidades onde o clima é predominantemente úmido.
Merece atenção especial o uso da fitoterapia com esse objetivo. Nesses casos, seguindo a visão da MTC, as espécies medicinais são escolhidas após a realização do diagnóstico sindrômico.
Com o conhecimento atual, é possível correlacionar as plantas indicadas nas síndromes orgânicas da MTC com as atividades farmacológicas no pensamento biomédico. É isso que mostraremos abaixo.
Nos casos em que se pretende eliminar o calor e secar a umidade, as plantas medicinais escolhidas têm efeitos antipiréticos e anti-inflamatórios (Scutellaria baicalensis, Phellodendron amurense).
Se o objetivo é drenar a umidade, são indicadas as espécies essencialmente diuréticas (Zea mays, Equisetum arvense).
Na presença de vento e umidade, as ervas devem ter atividades analgésica e anti-inflamatória e que ajudem a melhorar a circulação dos líquidos orgânicos (Angelica pubescens, Morus alba).
Em presença de mucosidades ou fleuma, as ações esperadas das plantas medicinais são expectorante, sedativa, antiespasmódica, anticonvulsivante e antimicrobiana (Tussilago farfara, Hedera Helix, Crataegus oxyacantha, Poria cocos).
Por fim, não se pode deixar de frisar que, mesmo com a realização do tratamento de modo correto e com afinco, a transformação das mucosidades é sempre muito difícil e demorada.
Dr. Antonio Carlos Seixlack – Médico clínico geral, fitoterapeuta, especialista em Acupuntura, Vice-presidente da ABFIT – Associação Brasileira de Fitoterapia e coautor do livro Fitoterapia Contemporânea – Editora Guanabara Koogan – 3ª edição – 2021.