O Transtorno do Espectro Autista (TEA) refere-se a um conjunto de sintomas caracterizados por um amplo espectro compartilhado de prejuízos qualitativos na interação social, associados a comportamentos repetitivos e interesses restritos. Há uma grande heterogeneidade na manifestação dos sintomas do TEA, tanto com relação à configuração, como à severidade dos sintomas comportamentais.
O autismo é uma doença insidiosa e complexa, que envolve muitos níveis de processos acontecendo ao mesmo tempo. Isso inclui cérebro, células e genes, entre outros.
Por anos o autismo foi apresentado como um problema congênito de causa genética. O que fez com que os esforços para o entendimento de suas causas ficassem subjugados e segmentados por áreas de especialidades que se empenhavam em oferecer alguma melhora a esse debilitante transtorno.
Tais esforços isolados não foram suficientes para se formar um consenso necessário para se propor ações de prevenção que possam interromper ou mesmo desacelerar as enormes taxas de incidência e de prevalência que atualmente já projetam números próximos de uma para cada dez crianças vítimas de distúrbios neurocomportamentais.
Hoje, a incidência de crianças com sintomas de transtornos do espectro autista (TEA) já alcança níveis preocupantes e alarmantes, seja por seu rápido crescimento – em 2016, uma para 36 crianças e com uma taxa estimada de 15% de aumento no número de casos para os próximos anos – ou mesmo pela falta de perspectiva para um entendimento mais abrangente que leve a uma ou mais etiologias, para que sejam implantadas mudanças nos parâmetros dos cuidados clínicos às gestantes e bebês.
A prevenção é possível
Como nutricionista, acredito ser plenamente possível a prevenção desses distúrbios, bem como, na maioria dos casos, a remissão dos seus sintomas, através de cuidados nutricionais importantes, principalmente no período gestacional, da amamentação e da alimentação dessas crianças nos primeiros dois anos de vida. Um período em que tanto a mãe quanto o bebê estão em uma fase de vulnerabilidade que pode ser revertida para um período de oportunidade.
Embora o TEA possua características individuais de sintomas, o triste roteiro que as mães e as crianças passaram possuem situações quase sempre comuns, que se iniciam com o já não tão simples e natural desejo de engravidar, as suplementações em formas e quantidades inadequadas, a manutenção de hábitos alimentares não seguros, a escolha ou tipo de parto adotado, a falta da amamentação de primeira hora, o tipo de aleitamento e a introdução de alimentos ao bebê.
Todos esses fatores são determinantes para a formação e desenvolvimento do bebê por toda a sua vida. Essas escolhas podem oferecer um aporte nutricional adequado para formação da sua microbiota intestinal, do seu sistema imunológico e do seu sistema neurológico, entre outros, que ainda não estão formados e dependem do correto fornecimento alimentar para um adequado funcionamento, livre de infecções de repetição que demandam uso excessivo e, muitas vezes, desnecessário de medicamentos, assim como para proporcionar maior resistência a insultos ambientais tóxicos e mesmo evitar a expressão genética de doenças através de fatores epigenéticos.
Novo recomeço para crianças já portadoras
Ao mesmo tempo, um conjunto de recursos nutricionais pode oferecer um novo recomeço para crianças que não receberam esses cuidados e como consequência desenvolveram distúrbios neurocomportamentais, entre eles o TEA. É importante lembrar que se trata de um organismo ainda em formação.
Os recentes estudos publicados, que se embasaram nos fundamentos fisiológicos e funcionais da nutrição e do sistema neuronal, permitem afirmar que é possível uma remissão dos sintomas neurocomportamentais quando esses não sejam determinados por genes específicos.
Já existe conhecimento formal suficiente para afirmar que alterações no neurodesenvolvimento são causadas por excessos e carências de nutrientes, bem como pelo consumo de substâncias estranhas ao nosso desenvolvimento celular.
Má formação inicial da microbiota, alergias alimentares e processos de disbiose intestinal, entre outros, vão desencadear inflamação neuronal, disfunção mitocondrial, estresse oxidativo, hipoglicemia e distúrbios de destoxificação, que levam a deficiências imunológicas para tolerância a substâncias agressoras, alimentares ou ambientais, e eliminação de toxinas.
Nos últimos anos, muitos estudos consistentes demonstraram a relevância da microbiota intestinal e sua interação com os sistemas imunológico, endócrino e neurológico.
Quando estudamos o TEA em suas várias facetas, como uma doença do corpo inteiro, precisamos também não negligenciar todos os fundamentos fisiológicos do processo gestacional, bem como o processo contínuo de formação e desenvolvimento do bebê nos seus primeiros dois anos de vida.
O bom desenvolvimento nesse crítico período é determinante para a saúde durante toda vida. Esse é o período em que a criança se encontra mais vulnerável. As condições e exigências nutricionais nessa fase são vitais para a correta formação e desenvolvimento da microbiota nativa, do sistema imunológico e do sistema nervoso central. Negligenciar esses fundamentos propicia uma maior suscetibilidade para inflamações crônicas com diversas repercussões, inclusive no neurodesenvolvimento. Tais processos acabam sendo controlados por medicamentos cujos efeitos terminam por comprometer a saúde física, mental e emocional, colocando a criança em um círculo vicioso.
Programas da OMS
Essa condição de vulnerabilidade não é nova e tão pouco desconhecida. A Organização Mundial da Saúde possui programas importantes para proteção da gestante e do bebê nesse período de vida. O programa de amamentação na primeira hora, o programa dos 1000 dias e os programas de aleitamento exclusivo nos primeiros seis meses, entre outros. Esses programas visam garantir que as necessidades do bebê sejam atendidas de modo a não haver comprometimento da saúde física, mental e emocional da criança. Todos esses programas são resultados de estudos independentes e muito bem fundamentados.
Infelizmente, em vários países, os protocolos de atendimento clínico se sobrepõem a tais importantes programas, sem o devido entendimento nutricional e imunológico. Muitos desses protocolos são bastante discutíveis e têm uma relação direta com gatilhos biológicos que podem influenciar nas causas do TEA, quando existe susceptibilidade genética.
Quebrar o círculo vicioso
O TEA é um processo patológico do corpo todo. Possui muito mais a característica de uma síndrome, onde vários sintomas se associam, com etiologia multifatorial e repercussão no sistema nervoso central.
Importante para o processo crônico de qualquer doença em curso é o círculo vicioso que é iniciado e mantido. Entender os caminhos bioquímicos e fisiológicos que podem estar relacionados às origens da fisiopatologia do TEA, assim como detectar e intervir nos fatores causais alimentares e ambientais que levaram a esse quadro, pode quebrar esse círculo vicioso e resgatar funções orgânicas.
Quanto mais podemos otimizar o número máximo de caminhos que resgatam o equilíbrio do organismo, maiores são as nossas oportunidades para recuperar e desfrutar de uma saúde plena.
Sabendo que a base de toda a formação do sistema endócrino, imunológico e neurológico é determinada durante a gestação e os dois primeiros anos de vida, não podemos continuar subjugando os aspectos nutricionais determinantes para que esses processos aconteçam de forma adequada.
Não existe na maior parte dos casos nenhum fator genético determinante no desenvolvimento do TEA. Entre todos os fatores que podem determinar a expressão dos genes, os que mais estão sob o nosso controle são os alimentares e nutricionais, assim como, em diversas situações, o ambiental.
Daí a urgência de se reconhecer a importância dos primeiros mil dias dessa formação de uma nova vida como um dos principais caminhos para interrompermos a incidência brutal dessa síndrome com sérios comprometimentos de qualidade de vida para a criança, seus familiares e a sociedade.
Ao reconhecermos a fundamental importância do processo nutricional, podemos utilizar todos os recursos seguros já conhecidos para, em um primeiro momento, prevenir o aparecimento do TEA. Nas crianças onde o TEA já se manifesta, é importante evitar a evolução do quadro e trabalhar para a remissão dos sintomas, investindo no resgate da formação e função orgânica.
Análise individualizada
Com certeza desde o processo gestacional a alimentação e o estado nutricional estão associados às causas do TEA, tanto pelo aspecto imunológico (alergias alimentares e deficiências nutricionais), levando a um aumento de citocinas inflamatórias circulantes que podem agir no SNC, como pela exposição a substâncias como aminas biogênicas, agrotóxicos, aditivos químicos, neurotóxicos e outras.
Outro fator que pode ser associado é a disbiose intestinal com alteração da permeabilidade, aumento de LPS e fungos, má absorção de nutrientes e perda de tolerância imunológica. Distúrbios de destoxificação, com o consequente aumento na circulação de substâncias tóxicas ao SNC, associam-se aos demais fatores.
Portanto, é necessária uma análise individualizada e detalhada para detectar quais são os possíveis fatores desencadeantes, assim como dotar o organismo de melhores condições para tolerar agressores (alimentares, ambientais e antígenos da microbiota), evitar absorção de substâncias não naturais ao organismo, adequar as funções de destoxificação, recuperar a microbiota saudável, evitar hipoglicemia, modular o canal de cálcio e promover funções adequadas através do equilíbrio nutricional.
Uma vez que esses fatores sejam detectados e corrigidos, concomitantemente se estará atuando nas origens dos processos fisiopatológicos diretamente relacionados com as causas do TEA, como processos inflamatórios que excitam células nervosas, disfunção mitocondrial e estresse oxidativo, alterando a formação e a ação dos neurotransmissores, dos neurônios, da sinaptogênese e da bainha de mielina.
Atuar nos fatores que aumentam processos inflamatórios, controlar as alergias alimentares tardias (principalmente mediação de IgG), recuperar a microbiota saudável para, entre outros fatores, modular a formação de LPS e fungos e combater parasitas, manter a integridade da parede intestinal para aumentar a absorção de micronutrientes e evitar a passagem de agressores ao organismo, manter o controle de absorção e da destoxificação de aminas biogênicas, adequar os nutrientes com ações anti-inflamatórias e que também bloqueiam os canais de cálcio, como por exemplo magnésio, zinco, vitamina D3, ômega 3, vitamina B6 (que também é necessária para a formação do neurotransmissor inibitório GABA, entre outros), dar suporte para uma destoxificação adequada, através do equilíbrio dos micronutrientes, compostos bioativos e aminoácidos sulfurados, evitar aumento de homocisteína que também atua no receptor NMDA elevando a excitação de célula nervosa, promover uma melhora na função mitocondrial com o consumo de alimentos fontes e quando necessário a suplementação de nutrientes que determinam a mesma, pesquisar causas de hipoglicemia e corrigi-las e, ainda, promover um hábito alimentar adequado e possível de ser mantido, para evitar que esses fatores voltem a se desequilibrar.
O processo inflamatório é precursor da excitação neuronal. Portanto, detectar as causas e reduzir a inflamação em geral e a “inflamação cerebral” especificamente é um objetivo terapêutico determinante. A redução da inflamação deve sempre focar nos gatilhos da mesma, como foi citado anteriormente. A adequação da vitamina B6, por exemplo, promove a conversão do glutamato em GABA, que tem efeitos inibitórios, ou seja, opostos aos do glutamato. O receptor GABA propicia benefícios ao melhorar dores, euforia e relaxamento e promover o contato, além de ser anticonvulsivo. Os receptores GABA também são ativados pela vitamina B3 (niacinamida) e pela L-taurina.
TEA vs. MBE
O Transtorno do Espectro Autista (TEA), por ser consequência de causas multifatoriais, embora tenha características comuns, manifesta-se de forma individualizada e com isso desafia os padrões da Medicina Baseada em Evidência (MBE).
Manifestações e causas tão heterogêneas não se adaptam aos conceitos da MBE, uma vez que a mesma tem uma ação voltada para grupos e não individual, trabalha sobre efeitos, mas não sobre mecanismos fisiológicos subjacentes e propõe intervenções isoladas, sem considerar estratégias de aplicação conjunta e interdisciplinar.
Dra. Denise Madi Carreiro – Nutricionista clínica e professora de Pós-graduação de Nutrição Clínica Funcional. Autora de diversos livros sobre nutrição e comportamento alimentar.
Artigo extraído do livro “Abordagem nutricional na prevenção e tratamento do autismo”.