Ecologia acústica: saúde para ouvir o mundo e criar nossas paisagens sonoras – Parte III

Um dos parceiros de Murray Schafer, o compositor, escritor e professor Barry Truax, foi o primeiro a compilar terminologias dos campos de estudos sonoros em seu livro Handbook of Acoustic Ecology, que se tornou referência para consultas sobre os termos empregados na disciplina de ecologia acústica.

Em 2014, esse livro foi referenciado pela International Organization for Standardization (Organização Internacional para Padronização), na definição de paisagem sonora e ambiente acústico para redação de normas técnicas – ISO 12.913. Truax define paisagem sonora como o ambiente sonoro com ênfase na maneira como é percebido pelo indivíduo ou pela sociedade. A definição de paisagem sonora pela Organização Internacional para Padronização é: o ambiente acústico como percebido ou experienciado e/ou compreendido pelas pessoas, em contexto. E assim essa organização define ambiente acústico: som de todas as fontes de som como modificado pelo ambiente.

As experiências de Truax resultaram em outra grande contribuição, seu livro Acoustic Communication, cujo título é um termo definido pelo autor como forma de descrever o fenômeno sonoro a partir da perspectiva humana, reafirmando a positividade na abordagem para melhorar a comunicação com o público, em lugar da campanha pela redução da poluição sonora, onde se vê uma ideologia do ruído apontando para um possível ambiente de isolamento futurista.

Nesse livro, Truax chama a atenção para a pouca importância que as sociedades dão aos fenômenos sonoros e auditivos, apesar do impacto insofismável que eles têm sobre a vida dos indivíduos e da coletividade.

Aponta ainda para o limite das disciplinas tradicionais de estudo do som e da acústica: “essas disciplinas podem nos dizer como o som se comporta em um contexto particular e idealizado, mas são incapazes de mostrar como o som nos conecta ao ambiente e aos outros, como afeta o comportamento humano ou que impacto a urbanização ou tecnologia terá nessas relações”. Em suma, pouco percebemos sobre o que mais nos afeta.

E reafirma a importância da ecologia acústica para ir além dos estudos em ambientes controlados e propiciar reflexões sobre o campo sonoro enquanto espaço de comunicação. Truax define o conceito de comunicação acústica como sendo a tentativa de compreender o entrelaçamento de comportamentos entre som, ouvinte e ambiente, enquanto um sistema de relações no qual não há isolamento das partes.

Entender a natureza sistêmica da comunicação acústica permite chegar à elaboração do design acústico, para evitar relações estressantes que possam desencadear distúrbios fisiológicos e psicológicos. Exemplos: um trabalhador exposto a ruídos em excesso no local de trabalho poderá ser afetado em sua capacidade de comunicação em outros ambientes que ele frequentar com a família ou amigos. Quem mora em ambientes ruidosos que impedem o sono terá uma causa extra de estresse físico e mental. Essa cadeia de eventos é inevitável, mas os resultados podem ser transformados positivamente com a requalificação do ambiente e da produção e recepção sonoras.

A contribuição de Barry Truax à ecologia acústica é basilar, por ter feito parte do primeiro grupo de pesquisadores comandados por Murray Schafer na Simon Fraser University, em 1973, e por tê-lo sucedido, em 1975, como chefe do departamento de estudos em comunicação dessa universidade, expandindo os estudos, pesquisas e publicações sobre questões pertinentes à disciplina.

Com sua vasta experiência em sala de aula, Truax também defende que a escola é o ambiente com potencial para despertar a consciência da sociedade para a importância das relações inescapáveis entre as pessoas e o ambiente acústico, com a ecologia acústica servindo à essa integração.

Concomitantemente, ele evidencia o quanto são importantes a sistematização e os meios de intervenção, sendo que um dos seus objetivos na análise de sistemas de comunicação acústica é chegar aos princípios do design acústico. A intervenção consciente na forma de estratégias de projeto é necessária para alterar um curso de deterioração. No entanto, ele pergunta se tal intervenção precisa sempre assumir a forma de “especialistas” impondo soluções ou se há meios pelos quais o indivíduo pode trazer mudanças e recuperar o controle.

Truax deixa clara a relação intrínseca entre a escala humana e social da produção sonora e os ciclos temporais, para a melhor observação e registro do comportamento sonoro e das dinâmicas ao longo desses ciclos, buscando na antropologia registros sobre a importância do som e da comunicação acústica em comunidades tradicionais que operam fora da lógica industrial. Nesse sentido, ele cita os povos indígenas da América do Norte, Navajo e Hopi, e indica como ambos valorizavam a habilidade auditiva como essencial para a sobrevivência, para poderem ouvir os perigos à integridade física e territorial, antecipando-se a um ataque ou uma invasão. E também na condução dos seus rituais profundamente conectados aos sons e à escuta atenta. Portanto, são exemplos de habilidades praticadas regularmente para o funcionamento satisfatório de suas comunidades.

A industrialização e a eletrificação das cidades são os fatores que mudaram o espectro da escuta por encobrirem os sons naturais, gerando a perda da funcionalidade ecológica desses sons. Truax evidencia que não há como reverter esse novo padrão com mecanismos naturais. Faz-se necessário, então, restringir o sistema artificial e trabalhar na eficiência da relação sinal-ruído como parte de algo maior, presente no conceito de comunicação acústica, pois no espectro sonoro das comunidades contemporâneas parece-lhe haver um incômodo muito maior com o barulho do que uma vontade de escutar, o que o faz atribuir essa relação à uma sonoridade pouco significativa e desmotivadora que impera nas conexões com o ambiente.

Em sua experiência como pesquisador, Truax revela que a abordagem com moradores entrevistados nas mais diferentes localidades lhe fez observar que há um comportamento de subestimação desse problema. Cita a comparação de duas creches em um estudo que registrou as diferenças de comportamento diretamente afetadas pela paisagem sonora de cada instituição. Em uma delas, a construção era robusta, com boa absorção sonora nos ambientes, o que significava melhor audibilidade para quem fala e para quem ouve e, portanto, melhor comunicação e pouco vazamento de som para outras áreas. Dessa forma, uma atividade não atrapalhava as outras. Isso permitia que houvesse, entre os setores, a comunicação de que essas atividades estavam transcorrendo normalmente, sendo que, quando necessário, ao se detectar algo fora dos padrões era possível interagir e verificar a ocorrência. O nível do ambiente sonoro dessa creche era de 40 dbA e durante as atividades chegava a 60 dbA. Era notável o bom relacionamento entre a equipe de funcionários e as crianças.

A outra creche funcionava em um porão de igreja, sem isolamento acústico e com muita reverberação, o que tornava os sons pouco nítidos, dificultando a compreensão. As duas áreas dessa creche tinham os mesmos problemas acústicos, o que causava uma interferência entre os cômodos, fazendo com que qualquer atividade mais ruidosa dominasse o espectro sonoro geral. O nível do ambiente sonoro era de 40 dbA e durante as atividades ficava acima de 60 dbA, podendo chegar a 78 dbA. Era palpável a existência de uma relação tensa pela dificuldade de comunicação entre todos e quando as crianças eram liberadas durante o intervalo, o nível sonoro chegava a 90 dbA, quando tudo saía de controle devido a um ambiente opressivo acusticamente. Apesar dessa estrutura insalubre, os funcionários não associavam a influência dos problemas acústicos das instalações ao próprio comportamento.

Caminhadas sonoras e o Fórum Mundial para a Ecologia Acústica

Truax credita à Schafer a invenção do conceito de soundwalk (caminhada sonora), enquanto forma de aumento da acuidade auditiva, ao explorar os mais diversos espaços caminhando com foco na audição.

A compositora Hildegard Westerkamp possivelmente foi a maior incentivadora e divulgadora dessa prática, ao realizar inúmeras caminhadas sonoras desde seu ingresso no World Soundscape Project. Em seu texto inaugural sobre esse tema, de 1977, que foi revisado e republicado em 2007, ela nos faz inferir que toda excursão cujo propósito seja expor os ouvidos para escutar o ambiente é uma caminhada sonora, em qualquer ambiente, privado ou público, e em espaços abertos ou fechados.

É um estado de concentração dirigido à escuta, em que se busca processar completamente as informações que encontram caminho em nossos organismos apenas parcialmente, pois apesar de nossos cérebros quererem processá-las por completo, esse processamento acaba sendo feito somente pela parte autônoma e inconsciente, pois na maior parte do tempo a consciência está evitando as informações captadas do ambiente sonoro por serem muito debilitadoras devido à sua baixa qualidade. Como esse fato não é reconhecido pela consciência, não tem status de prioridade e acaba sendo ignorado, apesar de sua ação subliminar e dos seus efeitos cumulativos.

Daí, ao se conectar à realidade sonora de uma grande cidade, surge um quadro que revela uma composição barulhenta, exagerada e insignificante, devido ao excessivo ruído de fundo, à falta de contraste e à simultaneidade de informações sonoras em cacofonia. As sensações dolorosas, deprimentes e exaustivas dos contatos iniciais revelam exatamente o que está sendo ignorado o tempo todo. Essas são as características dessas informações sonoras captadas pelo organismo: incomodar, adoecer e exaurir, física e psiquicamente.

Nesse mesmo texto, Westerkamp questiona se sair para caminhar já seria uma necessidade urbana decorrente do isolamento dos habitantes das cidades em relação à falta de contato com a natureza. As caminhadas sonoras podem ser organizadas de inúmeras formas e, quando em grupo, podem funcionar como uma divertida descoberta sensorial, sendo que esse formato grupal pode acolher e suavizar questões advindas do discernimento individual. Ela também faz uma justaposição entre sair para caminhar e sair para dirigir e diz que a pele define o contato entre os sentidos e o ambiente.

Hildegard sinaliza para a positividade inerente ao ato de fazer caminhadas sonoras, por ser uma prática que inevitavelmente desenvolverá maior consciência ecológica. Trata-se do caminhante posicionado dentro da paisagem sonora, de forma intencional e sem o intermédio de microfones, gravadores e fones de ouvidos, ficando às claras com a própria condição de ouvinte e criador de sons e, portanto, dessa mesma paisagem sonora em que está e onde todos transitam. Assim é de se pensar que, potencialmente, esse caminhante possa desenvolver uma relação melhor com o meio ambiente a partir desse tipo de experiência, beneficiando a causa maior da ecologia.

Nesse movimento de revelar e revelar-se, surge um novo sentido e uma nova energia para a ação de conectar espaço e ouvinte em um ambiente familiar ou como visitante em terra estrangeira. E nas caminhadas em grupo faz-se presente o sentido de integração na partilha da escuta do silêncio, com a experiência de cada pessoa associada à inexplicável sensação de unidade que o grupo prova nessa prática.

“Inicialmente, uma caminhada sonora é uma oportunidade de deixar o mundo entrar sem qualquer compulsão de responder, ou dito de outra forma, para ser aberto sem a necessidade de definir, intelectualizar, categorizar ou interpretar, ouvir sem expectativas, suposições ou julgamento, ouvir sem a compulsão de mudar as coisas ou agir imediatamente”, afirma Hildegard Westerkamp. “Tal caminhada sonora simplesmente permite que os participantes ouçam o ambiente pelo que ele é e se conscientizem de sua própria relação com a paisagem sonora. Nesse sentido, uma caminhada sonora pode ser semelhante a uma meditação: o mundo acontece, os sons ocorrem e eles passam. A pessoa meditando está ciente de tudo o que acontece, mas não se envolve, na verdade, é desapegada até certo ponto. Eventualmente, quando a caminhada sonora se desenvolve em uma prática regular, torna-se uma rica fonte de conhecimento e inspiração da paisagem sonora e, idealmente, uma condição facilitadora para mudanças no ambiente acústico”.

Em 1993, Hildegard Westerkamp foi uma das fundadoras do World Forum for Acoustic Ecology (Fórum Mundial para a Ecologia Acústica), congregando indivíduos e organizações de várias partes do mundo para discutir e difundir os temas dessa área. Entre 2000 e 2012, ela foi a editora-chefe do Soundscape: The Journal of Acoustic Ecology, publicação do fórum.

As ações desenvolvidas por essa associação voltam-se para cinco meios: educação para ouvir a paisagem sonora, afiar a percepção aural e o aprofundamento da compreensão dos ouvintes sobre os sons ambientais e seus significados; pesquisa e estudo do ambiente sonoro e seus aspectos social, cultural, científico e ecológico; publicação e distribuição de informação e pesquisa sobre ecologia acústica; proteção e preservação de paisagens sonoras naturais existentes e de tempos e locais de silêncio e desenvolvimento de projetos e criações de ambientes sonoros saudáveis e acusticamente balanceados.

Na definição de Westerkamp, “a ecologia acústica consiste no estudo sobre as interrelações entre som, natureza e sociedade”.

Arquitetura aural

 Em parceria com Gary Barrett, Barry Truax propôs uma síntese das ecologias acústica e paisagística, com o artigo Soundscape in a Context of Acoustic and Landscape Ecology, de 2011. Cada autor veio de uma dessas áreas e todos caminharam em paralelo em suas trajetórias até essa convergência que integra o som que se faz com o espaço que se ocupa ao existir no mundo.

A análise rigorosa do ambiente sonoro, principalmente o urbano, caberia aos arquitetos, o que de certa forma estava previsto por Schafer ao pretender uma melhor classificação e compreensão do espaço acústico urbano que serviria como ponto de partida para desenhar uma experiência sonora futura.

Para a efetiva transformação dos espaços urbanos, Michael Fowler, da Universidade de Cambridge, na Austrália, aponta para a arquitetura aural, apresentada por Barry Blesser, inventor e engenheiro do M.I.T. (Massachusetts Institute of Technology) e Linda-Ruth Salter, professora de Humanidades e Ciências Sociais da N.E.I.T. (New England Institute of Technology), como um caminho necessário para a realização dessa empreitada, manejando os dados do espaço físico, dos materiais e do comportamento acústico das fontes sonoras, para combinar todos os elementos envolvidos e criar espaços que permitam experiências harmoniosas de escuta.

Fowler mostra que as questões postas filosoficamente pela ecologia acústica e politicamente pelo documento da ONU intitulado State of World Population (UNFPA, 2007), que registrou pela primeira vez na história a predominância de habitantes em áreas urbanas em vez de áreas rurais, encontrariam soluções nas proposições teórico-práticas da arquitetura aural.

No livro Spaces Speak, Are You Listening?, Blesser e Salter apresentam essa visão complementar, a outra metade da paisagem sonora, a consciência espacial necessária para a transformação via arquitetura, corroborando com a visão multidisciplinar e vanguardista.

Os autores dividem o trabalho dessa nova proposição sonora em duas funções: a dos arquitetos aurais, que projetariam o ambiente sonoro considerando as relações entre o processamento auditivo de captação das informações sonoras e a escuta atenta ou de reação e seus simbolismos, significados e emoções e a função dos arquitetos acústicos, que implementariam os atributos selecionados para cada projeto em determinado espaço.

Esse desenvolvimento das ideias de transformação da paisagem sonora não perde o contato com o tema da interdisciplinaridade. Nesse estudo, Blesser e Salter se veem como escribas de uma contribuição de milhares de cientistas, engenheiros, pesquisadores e arquitetos, que criaram uma fonte material para a elaboração acadêmica dessa proposta, mesmo que indiretamente.

O início do trabalho de Barry Blesser foi o de criar reproduções artificiais de espaços sonoros para a indústria das gravações musicais. Ele foi um precursor ao desenvolver, na década de 1970, os primeiros efeitos digitais, Lexicon e EMT, que tentavam reproduzir a sensação de ambiência de espaços reais e permitir a manipulação digital de parâmetros que simulam o efeito da espacialidade de uma sala de concertos, por exemplo.

Ao refletir sobre os desdobramentos que o levaram do áudio digital à arquitetura aural, assim escreveu Blesser: “sem saber, eu era membro de uma geração de arquitetos aurais em expansão: projetistas eletroacústicos que estavam liberando o espaço auditivo de suas raízes físicas. Minha própria história profissional ilustra o quanto eu reagi às mudanças dentro da minha disciplina sem me dar conta dos eventos que marcaram essas mudanças fundamentais”.

Blesser e Salter veem a arquitetura aural como o casamento contemporâneo dos campos visual e auditivo, cujo primeiro enlace aconteceu na pré-história, quando nossos ancestrais expuseram suas pinturas em muros de cavernas ressonantes. Na linha do tempo da história, os autores destacam a importância dos escritos sobre acústica, inaugurados por Aristóteles (350 a.C.) e suas especulações sobre a natureza física do som, outrora exclusivamente mística, o texto de Vitrúvio (30 a.C.), que pode ser considerado como o primeiro manual para projetar teatros, os avanços científicos ocorridos durante o século XVII, com Marin Marsenne, Robert Boyle e Isaac Newton, permitindo uma melhor compreensão da transmissão sonora, a fundação da ciência acústica no século XIX, com John Rayleigh, George Green e Hermann von Helmholtz, até chegar ao século XX e ao pai da acústica moderna, Wallace Clement Sabine.

A arquitetura aural sempre ocorre. Seja em uma antiga igreja europeia ou em uma esquina mal planejada de uma cidade qualquer, lá estará, mesmo sem ter tido um arquiteto aural, como uma consequência acidental de forças ambientais e socioculturais, na topologia e geografia das cidades que determinarão características sonoras, às quais serão somadas às tradições arquitetônicas, traçados de ruas e ocupação do solo e aos materiais de construção e orçamentos disponíveis.

Em nível rudimentar, todas as pessoas têm habilidades para perceber a espacialidade dos locais, que permite diferenciar ambientes fechados ou abertos, e as qualidades sonoras específicas da interação com ambientes diversos, desde o ranger das escadas de madeira ao farfalhar das folhas secas em uma caminhada pelo parque. E todas as pessoas, sem exceção, ocupam ambientes acústicos e neles produzem e interagem.

O arquiteto aural, no entanto, precisa decodificar as complexas relações existentes entre objetos, geometrias e superfícies, enquanto elementos espaciais que irão interagir com múltiplas fontes sonoras e assim afinar as relações entre o evento sonoro e o lugar de sua ocorrência. A arquitetura aural terá impacto sobre o ambiente e assim atingirá as pessoas em suas experiências, seja em uma sala que, independentemente da temperatura, parecerá quente ou fria por sua ambiência ou em um ambiente aberto que, por sua acústica, poderá estimular insegurança ou liberdade. Em um espaço onde as pessoas devam ser recebidas com discrição, o chão deverá ter tapetes grossos ou material equivalente. Já, em outro onde a presença deva ser anunciada, o piso e as paredes deverão ser encarregados desse anúncio ao projetarem e reverberarem os passos dos visitantes. Importante salientar que os recursos acústicos influenciam o comportamento e o estado de espírito das pessoas. As propriedades físicas das ondas sonoras modificadas pelo ambiente estão no foco do arquiteto acústico e a experiência do ambiente pelo ouvinte é o foco do arquiteto aural, em um encontro entre acústica espacial e acústica cultural.

Blesser ainda afirma que apesar das arquiteturas visual e aural existirem juntas desde sempre, a arquitetura aural não foi desenvolvida enquanto linguagem e segue em estágio embrionário no que se refere à literatura e ao discernimento profissional e social. A mudança de paradigma será possível se o tema ocupar grande espaço cultural e intelectual na sociedade.

Bioacústica

O campo da ecologia acústica foi ampliado, ao longo do tempo, com alguns trabalhos muito importantes para aprofundar a base de dados dessa área. A utilização das gravações em campo para documentação dos habitats e prova do desequilíbrio ecológico é estabelecida pelas pesquisas em bioacústica de Bernie Krause, músico e ecologista da paisagem sonora.

Krause revela que as primeiras gravações bioacústicas datam do final do século XIX, mas só aquelas feitas a partir da década de 1960 tiveram a qualidade técnica necessária para documentar adequadamente o ambiente natural. A partir do final da década de 70, a comunidade científica começou a reconhecer a importância do registro dos sons naturais para estudar os impactos da ação humana.

Krause gerou um arquivo global de sons de valor incomensurável e pôde registrar as mudanças em muitos deles ao gravar por diversas vezes um mesmo local no decorrer do tempo. Percebeu que a sociedade humana deixou de ouvir os sinais da natureza e mascarou os sons naturais para as outras espécies e isso é um dado que dificulta a sobrevivência de todos. O fenômeno do mascaramento se dá com ruídos de origem tecnológica que encobrem parte da  informação sonora, baixando a qualidade da comunicação. A dinâmica do ecossistema tem uma banda sonora que engloba todos os seres e fenômenos biológicos e geológicos de um determinado lugar. Com isso, cada local tem uma sonoridade característica e única, sendo que toda voz da natureza tem um lugar de distinção das demais no espectro sonoro. Nenhuma ocupa exatamente o mesmo lugar de outra.

Para incentivar os registros da ecologia das paisagens sonoras, Krause disponibilizou um passo a passo para os interessados, com orientações sobre o equipamento necessário e as condições gerais em campo. Essa passagem descreve a impressão de Krause sobre sua pesquisa: “os sons do ambiente puramente biológico do nosso habitat são extremamente difíceis de encontrar nesses dias. Apesar de obscurecidas pela indução humana através do mascaramento de ruídos, as vozes dessas criaturas estão tentando nos dizer, do jeito delas, algo que ainda não aprendemos. A mensagem é sutil. O tema é a própria vida”.

Os recursos formadores da paisagem sonora investigada por Krause são divididos por ele em três elementos ativos: biofonia, que compreende toda a gama biológica da fauna desde a camada microscópica dos sons em todas as faixas de frequência ocupando o espaço sonoro e apresentando padrões de ocorrência até o reflexo nos organismos em níveis metabólicos; a geofonia, que se refere aos efeitos sonoros provocados pelos fenômenos naturais, água, vento, clima e forças geofísicas e a antropofonia, que engloba os sons fisiológicos humanos e os ruídos industriais e tecnológicos.

Em cada ambiente há os chamados elementos ativos, formados pela sonoridade resultante das interações entre biofonia, geofonia e antropofonia, e os elementos passivos, configurados pelas formas de vocalização dos seres no ambiente e pela adaptação das vocalizações quando o ambiente é alterado.

Krause acredita que quanto mais estudarmos esses fundamentos ontológicos e compreendermos essas interrelações ecológicas das paisagens sonoras, mais próximos estaremos de desvelar suas camadas de discernimento e assim tomarmos decisões que promovam a vida em um meio ambiente saudável através de novas abordagens educacionais.

Se bem que o tempo urge, conforme o próprio pesquisador deixa claro, em entrevista a Jeremy Young, ao abordar o impacto de uma extração seletiva de madeira em uma área florestal chamada Lincoln Meadow, no estado de Nevada, nos EUA. Ele gravou a paisagem sonora antes da intervenção da madeireira, produzindo além do áudio, um documento visual que registra a intensidade dinâmica dos volumes e o espectro das frequências sonoras, chamado espectrograma, que mostra, de baixo para cima, do grave ao agudo, enquanto a luminosidade refere-se à intensidade dos sons captados – Figura 1.

Ecologia acústica e degradação das florestas
Figura 1 – Espectrograma da área florestal Lincoln Meadow, nos EUA, antes da extração seletiva de madeira. Fonte: Bernie Krause.

Um ano depois da extração seletiva, que consistia em extrair árvores selecionadas evitando a derrubada geral da área, o espectrograma gravado no mesmo período e condições anteriores apresentava uma nova configuração – Figura 2.

Ecologia acústica e degradação das florestas
Figura 2 – Espectrograma da área florestal Lincoln Meadow depois da extração seletiva de madeira. Fonte: Bernie Krause.

Krause vivia na região da Califórnia, nos EUA, atingida pela seca e fez o registro da paisagem sonora do Sugarloaf Ridge State Park, entre 2004 e 2015. A seca começou em 2011. Através dos espectrogramas, é possível visualizar a mudança da paisagem sonora – Figura 3.

Ecologia acústica e desaparecimento da fauna
Figura 3 – Espectrogramas da paisagem sonora do Sugarloaf Ridge State Park antes e depois da seca que começou em 2011. O escurecimento progressivo das imagens deve-se ao desaparecimento da fauna e da água. Fonte: Bernie Krause.

Krause é detentor de um dos mais extensos trabalhos de pesquisa de campo em bioacústica. Foram mais de cinco mil horas de gravações presenciais ao redor do mundo, captando as vozes de mais de quinze mil espécies. Em outubro de 2017, aos 78 anos, ele teve sua casa atingida por um incêndio florestal que destruiu tudo, incluindo o acervo físico de suas pesquisas, restando apenas o que fora digitalizado.

Um trabalho contemporâneo que pode exemplificar a materialização de todo esse esforço acadêmico, literário e de pesquisa de campo está em curso no projeto Man and the Biosphere Program – MAB, da Unesco, evidenciando a importância da ecologia acústica nesse projeto que visa a garantir espaços e práticas de conservação ambiental e desenvolvimento sustentável nas mais diferentes partes do globo. São seiscentas e sessenta e nove reservas terrestres, marinhas e costeiras em cento e vinte países.

O ambiente sonoro, seja coletivo ou particular, afeta diretamente nossa saúde. Preservá-lo ou transformá-lo para manter e melhorar as condições de vida é parte indissociável do que chamamos qualidade de vida em um mundo sustentável. A porção acústica da ecologia têm como objetivo a promoção da saúde ambiental, para que possamos ouvir e criar nossas paisagens sonoras.


Paulo Henrique Carvalho dos Passos – Graduado em Musicoterapia pelo Centro Universitário das Faculdades Metropolitanas Unidas (FMU-2015), pós-graduado em Musicoterapia Preventiva e Social (FMU-2019) e Mestre em Saúde Ambiental, com a dissertação “Ecologia Acústica e a Requalificação da Paisagem Sonora” (FMU-2020). Tem experiência profissional como músico desde 1987. Na área da saúde, trabalha como musicoterapeuta desde 2015, em consultórios, clínicas, escolas e domicílios, tanto no campo da saúde individual quanto da coletiva. Foi preceptor da Clínica de Musicoterapia da FMU, em 2019. Apresentou o evento internacional de saúde ambiental XXXVII Encontro Anual de Etologia, em novembro de 2019. Atualmente é docente da Graduação em Musicoterapia da FMU.

 

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