Espiritualidade e religiosidade e seus impactos na saúde

A palavra “espírito” é definida, segundo o dicionário de Oxford, como a “parte imaterial, intelectual ou moral do homem”. De tal modo, espiritualidade envolve crenças de natureza imaterial, com a suposição de que a vida vai além daquilo que pode ser percebido ou compreendido.(1) Para Puchalski, espiritualidade é o que permite a uma pessoa experimentar um significado transcendente na vida, através de um relacionamento com Deus e/ou também com a natureza, arte, família ou comunidade – quaisquer crenças e valores que dão a uma pessoa um senso de significado e propósito na vida.(2)

Já religião é um conjunto de valores, rituais, crenças e outras práticas que uma comunidade compartilha na busca pelo transcendente.(3)

Apesar da distinção entre os termos, eles se correlacionam e, em muitos trabalhos científicos, são abordados mutuamente.(1,4-12) Inclusive, esse é um dos desafios para a ciência: a aferição correta de espiritualidade e religiosidade (E/R) para aplicá-la em pesquisas ou na prática médica.(4,9,12-13) Aferir a intensidade da espiritualidade de uma pessoa é algo complexo e desafiador.(2)

Em 1999, a Organização Mundial da Saúde (OMS) descreveu “qualidade de vida” como um conceito multidimensional, que envolve saúde física, psíquica, social e espiritual.(14) Assim sendo, em todas as áreas da medicina, desde cuidados paliativos,(2,13,15-16) cardiologia(5) e psiquiatria(18,20) até doenças infectocontagiosas(8,21) , existem milhares de estudos com evidências de que a espiritualidade e a religiosidade apresentam benefícios na qualidade de vida dos pacientes, no que se refere ao alívio de sintomas, resiliência e, inclusive, cura de doenças.

Presume-se, então, que o tema é abordado em toda consulta médica. Porém, essa não é a realidade na área da saúde ocidental, que há tempos limita a maior parte do atendimento ao diagnóstico e tratamento de doenças e não prioriza o olhar ao paciente como um ser complexo e integral, que envolve um corpo-mente-espírito com raízes culturais e espirituais.(2-3,5,20)

A presente revisão expõe os impactos da espiritualidade/religiosidade na saúde e qualidade de vida, assim como apresenta algumas escalas de aferição de E/R para serem aplicadas na prática médica e em estudos científicos sobre o tema.

Objetivo e métodos

O objetivo do trabalho aqui apresentado foi promover uma revisão na literatura em relação aos impactos da espiritualidade/religiosidade sobre a saúde.

Para tanto, primeiramente foi realizada uma busca nos sites de bases de dados LILACS, PubMed e SciELO, com o uso dos descritores “espiritualidade AND cura”, spirituality AND health” e “religion AND health”. Dos mais de 30.000 artigos encontrados, 20 foram selecionados por ordem de melhor combinação.

Num segundo momento, algumas referências bibliográficas dos artigos selecionados na primeira parte da pesquisa também foram incluídas.

De 34 artigos selecionados para a revisão, 10 foram excluídos por não pertencerem aos critérios de inclusão. Critérios de inclusão: artigos datados de 1998 até 2021, tendo como assunto principal espiritualidade/religiosidade e saúde e artigos que abordam escalas de aferição de E/R, escritos na língua inglesa ou portuguesa. Critérios de exclusão: artigos cujo tema principal não seja espiritualidade/religiosidade relacionada à saúde e que não foram escritos em português ou inglês.

Resultados e discussão

Em toda a literatura estudada neste trabalho, é enfatizada a necessidade de uma abordagem espiritual no cuidado ao paciente, pois espiritualidade e religiosidade, quando encaradas positivamente, têm caráter benéfico na saúde e qualidade de vida.(5-8,11,17-18,22-24) Também é verdade que a dor espiritual, definida como dor profunda na alma, que não é física, pode aumentar a expressão de sintomas físicos e mentais.(8,13,16)

Puchalski(2) considera negligência médica não abordar esse tema com pacientes que estejam na fase final de suas vidas, pois tentar resolver o sofrimento espiritual é a oportunidade de encontrar algum tipo de paz. Ferrel(15) fala sobre os impactos psicossociais e espirituais que a Covid-19 desencadeou no mundo e sobre as consequências que uma dor reprimida pode trazer.

Numa entrevista realizada entre pacientes com câncer avançado internados em uma clínica de cuidados paliativos, 61% deles referiram dor espiritual no momento atual e 96%, em algum momento de suas vidas. Também foi possível notar que pacientes que tomavam mais morfina para a dor física foram os que mais relataram dor espiritual.(13) Já numa pesquisa quantitativa, a dor espiritual foi associada a piores sintomas físicos e emocionais múltiplos, como dor, ansiedade, sonolência e dispneia, em pacientes com câncer avançado. A intensidade dos sintomas angustiantes era ainda mais grave quando os pacientes apresentavam dor espiritual moderada a intensa.(16) Esses fatos alertam para a natureza multidimensional da dor e revelam que cuidar dela integralmente colabora para a saúde do paciente.

Um estudo norte-americano longitudinal e observacional, com 450 pacientes diagnosticados com HIV, realizado entre fevereiro de 2002 e 2003, ecoou descobertas que estudos anteriores já haviam mostrado: maiores níveis de espiritualidade estavam associados a menos problemas de saúde mental, como depressão e ansiedade, menos sintomas relatados em relação ao HIV e melhor qualidade de vida em geral. Os pacientes usavam estratégias positivas de enfrentamento religioso, como “buscar uma conexão mais forte com Deus” e “buscar o amor e o cuidado de Deus”, com muito mais frequência do que estratégias negativas, como ”discordo do que a igreja queria que eu fizesse ou acreditasse”, “decidi que o Diabo fez isso acontecer” ou “questiono se Deus havia me abandonado”. O enfrentamento religioso negativo, ainda que com menor frequência, foi associado a sintomas mais incômodos de HIV, sintomas depressivos mais significativos, menor otimismo e carga viral detectável.(8)

Discorrendo sobre pandemias, um estudo quantitativo realizado com profissionais de saúde, em Portugal, demonstrou que aqueles que são mais espiritualizados apresentam menos medo e ansiedade relacionados à Covid-19, em comparação com os profissionais menos espiritualizados.(23)

Em 1998, Koenig(18) publicou o primeiro estudo prospectivo que avaliou o efeito da religiosidade no desfecho da depressão em idosos, durante um ano. A conclusão foi de que os pacientes com escores de religiosidade intrínseca mais altos tiveram remissão mais rápida da depressão do que aqueles com escores mais baixos. Para cada aumento de 10 pontos no escore de religiosidade intrínseca, houve um crescimento de 70% na velocidade de remissão da doença. Outro trabalho abrangendo uma amostra de 3.356 meninas adolescentes na Carolina do Norte (EUA) associou inversamente devoção pessoal, participação frequente na comunidade religiosa e conservadorismo institucional com depressão.(17)

Idosos utilizam a ferramenta da espiritualidade, religião e fé para enfrentar a senilidade e a solidão que vivenciam comumente nessa faixa etária, o que afeta positivamente sua saúde física e mental.(6,7) Leitura bíblica, rezar o terço e oração são estratégias de resiliência que ajudam a lidar com desconfortos, na recuperação e/ou manutenção da saúde, para proteção pessoal e familiar e, sobretudo, para viver uma velhice satisfatória. “A fé em Deus, por meio da oração, proporciona tranquilidade, paz, superação das adversidades, manutenção da saúde e o alcance da longevidade”(6) – (Figura 1). “Ao deitar, eu leio a Bíblia e oro. Deus ajuda e dá saúde! A gente sara. Com uma oração, eu saro. É a fé, a fé renova (E4 – mulher, 87 anos)”. “Eu pedindo, Ele (Deus) ajuda, dá saúde, felicidade, me livra do que é ruim. Toda noite, eu converso com Ele. Quando acordo, só me lembro de Deus e eu converso com Ele. Assim, eu tenho saúde, felicidade (E7 – homem, 104 anos)”.(6)

De acordo com autores de uma pesquisa realizada em Chapecó/SC, que envolveu 2.160 indivíduos de diversas faixas etárias, 91,3% dos participantes utilizam a oração como mecanismo para abordar o estresse e para 87,3%, ela reduz o sentimento de solidão. Orar alivia o estresse ao desviar o foco de uma mente que está concentrada nos problemas e doenças. A prática religiosa reduz a ansiedade, aumenta a esperança e ajuda a esclarecer o significado da existência.(7)

Espiritualidade e saúde - palavras-chave
Figura 1 – Nuvem de palavras por frequência na codificação “religiosidade e espiritualidade nas estratégias de resiliência cotidiana de idosos longevos”, por meio do QSR NVivo®. Fonte: Reis L. A., Menezes T. M. O. Religiosity and spirituality as resilience strategies among long-living older adults in their daily lives. Revista Brasileira de Enfermagem – Vol. 70 – Nº 4 – Brasília – julho/agosto de 2017.

Ademais, uma revisão com mais de 1.200 artigos, realizada por Koenig e colegas(24), relatou que mesmo após o avanço da ciência, educação e psicologia, a espiritualidade/religiosidade representa papel significativo na vida das pessoas. 80% demonstram uma relação positiva entre religiosidade e bem-estar e estudos sugerem que psicoterapias seculares apresentam a mesma efetividade da orientação religiosa no tratamento de doenças mentais.

Outra grande revisão, na área de cardiologia, mostrou que práticas religiosas estão associadas a menor prevalência de hipertensão, níveis pressóricos mais baixos e menor mortalidade no geral. Também foi referido que, no caso de doenças coronarianas, pacientes com bem-estar espiritual evoluem com menor progressão.(5)

Contudo, por que ainda há um distanciamento do tema espiritualidade e religiosidade na relação médico-paciente? Um dos pontos justificáveis(1) é que a mecanização da prática médica com enfoque na história natural da doença é mais fácil de ser protocolada no lugar da complexidade cultural e espiritual de um paciente.

No que se refere à postura do médico, Fabrega(20) diz: “suas reivindicações de expertise baseiam-se em uma filosofia sobre a realidade do mundo exterior denominada objetivismo e realismo científicos. Ele estipula um credo secular na medicina. Isso evoluiu durante um processo lento que levou ao descarte de outras abordagens culturais e religiosas ou espirituais da doença”.(2)

O medo, da parte médica, de expor pontos de vista espirituais e religiosos ou que esse tipo de atitude pareça proselitismo, pode justificar a não abordagem do assunto.(3,5) Outros aspectos a serem considerados são a falta de conhecimento sobre o tema, de treinamento por parte das instituições médicas e de tempo no momento das consultas.(5)

Com relação ao último ponto acima citado, cabe dizer que há programas de treinamento online específicos que objetivam qualificar profissionais da área de saúde e capelães a atender às necessidades espirituais dos pacientes, como por exemplo o ISPEC, citado nos trabalhos da Dra. Christina M. Puchalski,(15,19) líder internacional do movimento de integração espiritual aos cuidados da saúde.

Também foram desenvolvidos escores de aferição de E/R aplicáveis na prática clínica ou em trabalhos científicos, como o WHOQOL-SRBP(9), CSI-MEMO e FICA(4,5,12), simples e eficientes.

Conclusão

A espiritualidade/religiosidade apresenta impacto positivo na saúde geral e qualidade de vida das pessoas. A negligência no cuidado espiritual dos pacientes, principalmente aqueles em fase final de vida ou com doenças crônicas sintomáticas, é um tema que deve ser mais abordado entre a sociedade, visto o malefício que uma dor espiritual pode causar à vida de uma pessoa.

Os pacientes são seres complexos e completos, com raízes culturais e espirituais pessoais. A mecanização do sistema médico ocidental, com enfoque na doença, já não se encaixa mais na atualidade, uma vez que se sabe, com boas evidências, que há facetas multidimensionais nos sintomas que um paciente pode vir a apresentar.

É necessária maior implementação de treinamentos e escores sobre E/R na sociedade da saúde.


Dra. Luiza Marques Gallo – Clínica geral, formada em medicina pela Universidade de Mogi das Cruzes, com residência médica pela Beneficência Portuguesa de São Paulo. Pós-graduada em Bases da Saúde Integrativa e Bem-Estar pelo IIEP – Instituto Israelita de Ensino e Pesquisa Albert Einstein e membro da SBEC – Sociedade Brasileira de Estudos da Cannabis Sativa.

 

Fontes

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4. Forti, S., Serbena, C. A, Scaduto A. A. Mensuração da espiritualidade/religiosidade em saúde no Brasil: uma revisão sistemática. Ciência saúde colet. 2020;25(4):1463 – 74.
5. Lucchetti, G., Lucchetti, A. L, Avezum Júnior, A. Religiosidade, espiritualidade e doenças cardiovasculares. Rev. Bras. Cardiol. 2011;24(1):55-7.
6. Reis, L. A, Menezes, T. M. O. Religiosity and spirituality as resilience strategies among long-living older adults in their daily lives. Rev. Bras. Enferm. [Internet]. 2017;70(4):761-6. [Thematic Edition “Good Practices: Fundamentals of care in Gerontological Nursing”] DOI: http://dx.doi.org/10.1590/0034-7167-2016-0630.
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