Mapa da Escuta: musicoterapia para o autoconhecimento e autocuidado – Parte final

No artigo anterior desta série, propus a confecção de um “diário de experiências musicais” como forma de refletir sobre a presença, função e papéis da música no cotidiano. No presente texto, gostaria de reforçar o convite poético do Mapa da Escuta apresentado no segundo artigo: “envolver-se e desenvolver-se na escuta”.

Se no último artigo começamos a mapear a presença da música no cotidiano, agora a proposta é que nós mesmos sejamos o território a ser visitado, deixando que a experiência musical de escuta nos chegue e nos toque e que possamos perceber o que acontece conosco quando abrimos um espaço para experienciar uma escuta musical.

No artigo anterior, a experiência musical foi compreendida simplesmente como uma forma de perceber-se em contato com a música no cotidiano. Neste, porém, gostaria de propor um outro sentido possível para experiência, mostrado por Jorge Larrosa Bondía, que balizará a proposta experiencial que será aqui apresentada: a confecção de um “diário de experiências de escuta musical”.

Dessa forma, antes de chegarmos à proposta, gostaria de levantar algumas noções a respeito da experiência, a fim de compreendermos relações possíveis entre música, autoconhecimento e autocuidado.

No início do nosso percurso através dessa série, ainda no primeiro artigo, uma citação dos musicólogos Dahlhaus e Eggebretcht ilustrou a dificuldade de definirmos o que é a música de uma maneira única e universal: “a música é sem conceitos. Nisto se baseia o seu poder, aqui residem os seus limites. No seu poder, ela consegue estender-se a toda a existência humana, em todas as suas ocupações e situações. E nos seus limites, pode utilizar-se, é funcional em todas as direções e podem atribuir-se-lhe as mais diversas funções. A pergunta ‘que é a música?’, à luz da insistência com que é feita desde a antiguidade, é de natureza excepcional. Esta pergunta constitui, ainda hoje, a reação a um vazio que nos inquieta. Ninguém sabe o que é a música, ou ainda, cada qual o sabe de outro modo e, em última análise, só para si”.

Então, se quisermos tratar a questão da música de uma forma abrangente, é preciso percorrer caminhos que deem conta de investigá-la através de uma perspectiva que leve em consideração a própria experiência de quem a vivencia. E apesar disso parecer óbvio, que a compreensão do que acontece quando entramos em contato com a música só poderia ser estudada a partir da própria experiência com a música, esse é um caminho que apenas começou a ser trilhado, pois é comum que nos meios acadêmicos haja um predomínio de pesquisas que se pautam em uma perspectiva mais naturalista e positivista. Ou seja, numa forma de proceder a investigação que retira o ser humano do campo vivencial, para que ele possa ser observado sob um ponto de vista mais neutro, distanciado do mundo, como uma coisa ou objeto a ser estudado, que deve ser mensurado. E mais, para que haja validade científica, as respostas obtidas nessas pesquisas deveriam poder ser reproduzidas de igual forma em outras situações.

Para quem quiser compreender um pouco mais sobre a impossibilidade de se utilizar tais métodos para dar conta de uma experiência humana e musical, sugiro a fascinante leitura da série de ensaios sobre “O que é científico”, de Rubem Alves. A partir de uma linguagem metafórica e bastante acessível, ele vai nos mostrando como as “redes” da ciência deixam escapar aspectos sutis que são essenciais para a compreensão da experiência. Em relação à música, ele chega a nos mostrar como, ao utilizar as regras de mensuração e reprodutibilidade da ciência, poderíamos considerar o piano algo científico, mas não o pianista. Para nos aproximarmos de maneira mais experiencial dessa colocação, destaco a seguir algumas passagens do texto de Rubem Alves. A citação talvez seja demasiada longa se comparada aos padrões acadêmicos, mas aqui estamos em busca da experiência e a própria leitura do que traz esse autor, o colocar-se à escuta do que ele diz, no modo como diz, já se constitui numa experiência. Então, aproveitem e experienciem.

“Há os pianos. Há música. Ambos são absolutamente reais. Ambos são absolutamente diferentes. Os pianos moram no mundo das quantidades. Deles se diz: “Como são bem-feitos!”. A música mora no mundo das qualidades. Dela se diz: “Como é bela!” (…) Um dos objetivos da ciência exata da fabricação de pianos é a produção de pianos absolutamente iguais. Se não forem iguais, o pianista não conseguirá tocar num piano que nunca tocou. Digo que a fabricação de pianos é uma ciência porque tudo, no piano, está submetido ao critério da medida: tamanhos, pesos, tensões. Mesmo as afinações, que normalmente requerem ouvidos delicados e precisos, podem prescindir dos ouvidos dos afinadores – o afinador pode ser surdo! – desde que haja um aparelho que meça o número de vibrações das cordas. A realidade do piano se encontra em suas qualidades físicas, que podem ser ditas ou descritas na precisa linguagem científica dos números. É essa linguagem que torna possível fazer pianos iguais uns aos outros. Na ciência, a possibilidade de repetir, de fazer objetos iguais uns aos outros, é um critério de verdade. (…) Na ciência e na construção de pianos, só é real o que pode ser medido. Pianos não são fim em si mesmos. Pianos são meios. Existem para serem tocados. A música é tão real quanto os pianos. Mas a realidade da música não é da mesma ordem que a realidade dos pianos. Essa é a razão de os fabricantes de piano não se contentarem em fabricar pianos: eles vão a concertos ouvir a música que os pianistas tocam. É certo que a música tem uma realidade física, em si mesma, independente dos sentimentos de quem a ouve. A música existe mesmo se o CD está sendo tocado numa sala vazia, sem ninguém que a ouça. A realidade da música se encontra no prazer de quem a ouve. (…) O prazer é uma experiência qualitativa. Não pode ser medido. Não há receitas para sua repetição. Cada vez é única, irrepetível. Um pianista não interpreta a mesma música duas vezes de forma igual. O ‘Concerto italiano’, de Bach, põe em ordem meu corpo e minha alma. Outra pessoa, ao ouvi-lo, vai dizer: ‘Que música chata!’ (…) A experiência do gosto, da beleza, da estética pertence ao mundo humano das ‘qualidades’. Não pertence ao mundo das realidades quantitativas. A linguagem matemática da ciência não dá conta da experiência. Não é capaz de dizê-la. Faltam-lhe palavras. Faltam-lhe sutilezas. Faltam-lhe, sobretudo, interstícios. (…) O científico é fabricar pianos. O gostar de música não é científico”.

O filósofo Theodor W. Adorno também evidenciou a dificuldade de se compreender cientificamente a experiência musical: “a dificuldade de apreender cientificamente o conteúdo subjetivo da experiência musical, para além dos índices mais extrínsecos, é quase proibitiva. O experimento pode atingir os graus de intensidade da reação, mas dificilmente os de qualidade. Os efeitos literais, fisiológicos e mensuráveis que uma música exerce – abriu-se mão, inclusive, das acelerações da pulsação – não são, em absoluto, idênticos à experiência estética de uma obra de arte considerada como tal”.

Para Adorno, a experiência vivida no contato com a música não pode ser considerada igual ou traduzida pelas reações corporais que alguém manifesta durante uma escuta. Aqui o filósofo está realizando uma crítica aos estudos empíricos que buscavam mensurar as reações fisiológicas de uma pessoa no ato da escuta, tentando explicar as reações causadas pela música. Esses estudos demonstram que a música é capaz de gerar reações fisiológicas, como por exemplo a aceleração de pulso e a alteração de temperatura, mas isso não diz nada sobre a experiência musical no seu âmbito estético e subjetivo.

A questão da experiência se faz central nesse ponto. E apesar de poder ser considerada de diversos modos, sendo nesse sentido sua definição tão difícil quanto a de como a música é, há aspectos essenciais do modo de ser da experiência que seria importante sabermos, se nosso intuito é pensar o conhecimento e o cuidado a partir não simplesmente da música, mas sim da experiência musical.

Para isso, abriremos por um momento o diálogo com o educador Jorge Larrosa Bondía, em algumas de suas considerações no inspiradíssimo ensaio intitulado “Notas Sobre a Experiência e o Saber de Experiência”. Os apontamentos de Bondía servirão como base para a proposta de se fazer um “diário da experiência de escuta musical”, que será apresentada na parte final deste artigo. Então, peço licença para fazer minhas as palavras dele e deixar que sua forma de escrita nos mostre os sentidos da experiência. Mais uma vez, assumo o risco de transitarmos em citações demasiadamente longas, mas peço que façamos isso nos abrindo para a experiência, nos colocando à escuta. Para um diálogo acontecer, é preciso saber ouvir atentamente, sem querer nos posicionarmos depressa demais. Deixemos os dizeres de Bondía chegarem e nos tocarem, como uma canção que toca e nos diz algo que está para além do conteúdo de sua letra e que, na síntese de cada palavra e som ali presente articulados com a nossa existência, nos revelam o sentido.

“Poderíamos dizer, de início, que a experiência é, em espanhol, ‘o que nos passa’. Em português, dir-se-ia que a experiência é ‘o que nos acontece’; em francês, a experiência seria “ce que nous  arrive”;  em  italiano,“quello che nos succede” ou “quello che nos accade”; em inglês, “that what is happening to us”; em alemão,“was mir passiert”. A experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca.  Não o que se passa, não o que acontece ou o que toca. A cada dia se passam muitas coisas, porém, ao mesmo tempo, quase nada nos acontece. Dir-se-ia que tudo o que se passa está organizado para que nada nos aconteça. Walter Benjamin, em um texto célebre, já observava a pobreza de experiências que caracteriza o nosso mundo. Nunca se passaram tantas coisas, mas a experiência é cada vez mais rara”.

E por que a experiência seria cada vez mais rara? Bondía segue nos apontando quatro fatores que são os principais responsáveis pela destruição da experiência na nossa época: o excesso de informação, o excesso de opinião, a falta de tempo e o excesso de trabalho.

“Em primeiro lugar pelo excesso de informação. A informação não é experiência. E mais, a informação não deixa lugar para a experiência, ela é quase o contrário da experiência, quase uma antiexperiência. (…) O sujeito da informação sabe muitas coisas, passa seu tempo buscando informação, o que mais o preocupa é não ter bastante informação; cada vez sabe mais, cada vez está melhor informado, porém, com essa obsessão pela informação e pelo saber (mas saber não no sentido de ‘sabedoria’, mas no sentido de ‘estar informado’), o que consegue é que nada lhe aconteça.  A primeira coisa que gostaria de dizer sobre a experiência é que é necessário separá-la da informação. E o que gostaria de dizer sobre o saber de experiência é que é necessário separá-lo de saber coisas, tal como se sabe quando se tem informação sobre as coisas, quando se está informado.

Em segundo lugar, a experiência é cada vez mais rara por excesso de opinião. O sujeito moderno é um sujeito informado que, além disso, opina. (…) Depois da informação, vem a opinião. No entanto, a obsessão pela opinião também anula nossas possibilidades de experiência, também faz com que nada nos aconteça. (…) Esse “opinar” se reduz, na maioria das ocasiões, em estar a favor ou contra.

Em terceiro lugar, a experiência é cada vez mais rara, por falta de tempo. Tudo o que se passa, passa demasiadamente depressa, cada vez mais depressa. E com isso se reduz o estímulo fugaz e instantâneo, imediatamente substituído por outro estímulo ou por outra excitação igualmente fugaz e efêmera. (…) O sujeito moderno não só está informado e opina, mas também é um consumidor voraz e insaciável de notícias, de novidades, um curioso impenitente, eternamente insatisfeito. Quer estar permanentemente excitado e já se tornou incapaz de silêncio. Ao sujeito do estímulo, da vivência pontual, tudo o atravessa, tudo o excita, tudo o agita, tudo o choca, mas nada lhe acontece. Por isso, a velocidade e o que ela provoca, a falta de silêncio e de memória, são também inimigas mortais da experiência.

Em quarto lugar, a experiência é cada vez mais rara por excesso de trabalho. Esse ponto me parece importante porque às vezes se confunde experiência com trabalho. Existe um clichê segundo o qual nos livros e nos centros de ensino se aprende a teoria, o saber que vem dos livros e das palavras, e no trabalho se adquire a experiência, o saber que vem do fazer ou da prática, como se diz atualmente. (…) Minha tese não é somente porque a experiência não tem nada a ver com o trabalho, mas, ainda mais fortemente, que o trabalho, essa modalidade de relação com as pessoas, com as palavras e com as coisas que chamamos trabalho, é também inimiga mortal da experiência”.

Após apontar o que seria a experiência e a destruição da experiência, Bondía indica como seria o sujeito da experiência.

“Esse sujeito que não é o sujeito da informação, da opinião, do trabalho, que não é o sujeito do saber, do julgar, do fazer, do poder, do querer. Se escutamos em espanhol, nessa língua em que a experiência é ‘o que nos passa’, o sujeito da experiência seria algo como um território de passagem, algo como uma superfície sensível que aquilo que acontece afeta de algum modo, produz alguns afetos, inscreve algumas marcas, deixa alguns vestígios, alguns efeitos. Se escutamos em francês, em que a experiência é ‘ce que nous arrive’, o sujeito da experiência é um ponto de chegada, um lugar a que chegam as coisas, como um lugar que recebe o que chega e que, ao receber, lhe dá lugar. E em português, em italiano e em inglês, em que a experiência soa como ‘aquilo que nos acontece, nos sucede’, ou ‘happen to us’, o sujeito da experiência é sobretudo um espaço onde têm lugar os acontecimentos. Em qualquer caso, seja como território de passagem, seja como lugar de chegada ou como espaço do acontecer, o sujeito da experiência se define não por sua atividade, mas por sua passividade, por sua receptividade, por sua disponibilidade, por sua abertura. Trata-se, porém, de uma passividade anterior à oposição entre ativo e passivo, de uma passividade feita de paixão, de padecimento, de paciência, de atenção, como uma receptividade primeira, como uma disponibilidade fundamental, como uma abertura essencial”.

Bondía discorre, então, sobre a etimologia da palavra experiência.

“A palavra experiência vem do latim experiri, provar (experimentar). A experiência é em primeiro lugar um encontro ou uma relação com algo que se experimenta, que se prova. O radical é periri, que se encontra também em periculum, perigo. A raiz indoeuropeia é per, com a qual se relaciona antes de tudo a ideia de travessia e, secundariamente, a ideia de prova. (…) A palavra experiência tem o ex de exterior, de estrangeiro, de exílio, de estranho e também o ex de existência. A experiência é a passagem da existência, a passagem de um ser que não tem essência ou razão ou fundamento, mas que simplesmente ‘ex-iste’ de uma forma sempre singular, finita, imanente, contingente”.

Bondía segue nos fazendo compreender aspectos essenciais sobre a experiência e o saber da experiência, que é um conhecimento de uma qualidade existencial, que se dá na relação entre conhecimento e a vida humana, ou seja, com a vida singular e concreta de um existente singular e concreto, distinguindo-se assim do saber da informação e científico que acontece fora de nós.

“Trata-se de um saber distinto do saber científico e do saber da informação, e de uma práxis distinta daquela da técnica e do trabalho. O saber de experiência se dá na relação entre o conhecimento e a vida humana. De fato, a experiência é uma espécie de mediação entre ambos (…) o que se adquire no modo como alguém vai respondendo ao que vai lhe acontecendo ao longo da vida e no modo como vamos dando sentido ao acontecer do que nos acontece. No saber da experiência não se trata da verdade do que são as coisas, mas do sentido ou do sem-sentido do que nos acontece. (…) o saber da experiência é um saber particular, subjetivo, relativo, contingente, pessoal”.

Outra questão muito importante levantada por ele é que devemos evitar confundir experiência com experimento.

“Evitar a confusão de experiência com experimento ou, se se quiser, limpar a palavra experiência de suas contaminações empíricas e experimentais, de suas conotações metodológicas e metodologizantes. Se o experimento é genérico, a experiência é singular. Se a lógica do experimento produz acordo, consenso ou homogeneidade entre os sujeitos, a lógica da experiência produz diferença, heterogeneidade e pluralidade. (…) Se o experimento é repetível, a experiência é irrepetível, sempre há algo como a primeira vez. (…) Além disso, posto que não se pode antecipar o resultado, a experiência não é o caminho até um objetivo previsto, até uma meta que se conhece de antemão, mas é uma abertura para o desconhecido, para o que não se pode antecipar nem ‘pré-ver’ nem ‘pré-dizer'”.

Considerando o saber da experiência como aquele que “nos” acontece, é preciso então considerar que duas pessoas não fazem uma mesma experiência, ainda que estejam vivendo um mesmo acontecimento, assim como acontece conosco diante de uma mesma música, como apontado por Rubem Alves na citação feita anteriormente. Nas palavras de Bondía, “se a experiência não é o que acontece, mas o que nos acontece, duas pessoas, ainda que enfrentem o mesmo acontecimento, não fazem a mesma experiência. O acontecimento é comum, mas a experiência é para cada qual sua, singular e de alguma maneira impossível de ser repetida. O saber da experiência é um saber que não pode separar-se do indivíduo concreto em quem encarna. Não está, como o conhecimento científico, fora de nós, mas somente tem sentido no modo como configura uma personalidade, um caráter, uma sensibilidade ou, em definitivo, uma forma humana singular de estar no mundo, que é por sua vez uma ética (um modo de conduzir-se) e uma estética (um estilo). Por isso, também o saber da experiência não pode beneficiar-se de qualquer alforria, quer dizer, ninguém pode aprender da experiência de outro, a menos que essa experiência seja de algum modo revivida e tornada própria (…) A experiência e o saber que dela deriva são o que nos permite apropriar-nos de nossa própria vida”.

Autoconhecimento e autocuidado e suas relações com as experiências musicais

Uma vez que tenham sido expostos as noções de experiência e o percurso reflexivo e investigativo realizado nesta série de artigos, acredito que se torna claro que a intenção não foi de indicar uma modalidade sistematizada de autoconhecimento e autocuidado musical. Como se pode observar, autocuidado e autoconhecimento não foram aqui definidos de uma forma específica e delimitada. Foram apenas abordados de maneira entrelaçada e aberta, colocados como algo sobre o qual se possa refletir e experienciar a partir da dimensão musical. Ou seja, a intenção foi mostrar o quanto estarmos abertos, atentos e disponíveis para a dimensão musical de nossa existência pode nos indicar formas de nos conhecermos e de nos cuidarmos.

De maneira geral, talvez se possa dizer que a experiência musical apresenta possibilidades diversas de produzir cuidados, conhecimentos e saberes existenciais, pois a dimensão musical aparece constantemente relacionada e envolvida espontaneamente com outras dimensões da nossa vida.

Cuidado é aqui compreendido como uma escuta atenciosa de si, como um espaço de abertura para afinações de modos de ser no mundo, como uma experiência. E nesse sentido, indicar práticas específicas a serem realizadas a fim de gerar formas de autoconhecimento e autocuidado específicos seria produzir uma “antiexperiência”. Então, o que procurei fazer foi ilustrar algumas possibilidades, pensar sobre as noções de cuidado e conhecimento de si juntamente com a dimensão musical de nossa existência, numa esperança de talvez despertar o interesse das pessoas de se envolverem com a música, tornando cada vez mais íntima essa relação e podendo fazer do momento de escuta musical um espaço de conhecimento e cuidado de si.

Foi assim, como uma ação, como um processo, como uma experiência, que a música foi aqui tratada. Em todo o percurso que fizemos até este momento, consideramos a música a partir de uma perspectiva experiencial e isso é radicalmente diferente de consideramos a música como um objeto que possui propriedades específicas que podem agir sobre nós com fins específicos. Não se trata aqui de usar a música como se fosse um remédio que ingerimos para curar males e determinados sintomas.

Abrir espaço para envolver-se e desenvolver-se na escuta é fazer um movimento de amplificação para além da simples percepção da presença da música espontânea na vida cotidiana. É cultivar momentos de experiências musicais. Não apenas praticar uma forma funcional de utilização da música no dia a dia, como por exemplo para acompanhar atividades específicas, fazer faxina ou ter companhia, mas também como criação de um momento de cuidado, sem funcionalidade ou obrigações, apenas deixando que os sentidos da escuta se mostrem. Um modo poético de proceder. Criar o espaço para deixar que a experiência aconteça, entregar-se à experiência.

O que está em questão nessa abordagem é como nos envolvemos com a música e atribuímos sentido a esse tipo de experiência. Como desenvolvemos uma constante ampliação de percepções e reflexões sobre os modos pelos quais estamos em contato com a música e o que isso nos revela sobre a nossa relação com ela mesma, com nós mesmos, com as pessoas ao redor e com o mundo em geral.

Essas possibilidades de aprofundamento da escuta, no entanto, só ocorrem se houver a abertura e a criação de um espaço para que isso aconteça, para cultivarmos a relação que nas escutas se mostram. Cada pessoa poderá ir desenhando seu próprio mapa, descobrindo o seu modo de cultivar e expandir sua dimensão musical. E é nesse cultivo que as experiências vão acontecendo. No próprio ato de criar esse espaço de escuta é possível perceber o movimento gerado como um cuidado de si. Um momento de pausa, percepção e fluidez, de escutar-se, de abrir-se para o contato com a música, isso é viver uma experiência.

Por fim, para fazermos uma síntese sobre a experiência e seguirmos para a proposta experiencial, gostaria de trazer ainda uma última colocação de Bondía para nossa contemplação.

“A experiência, a possibilidade de que algo nos aconteça ou nos toque, requer um gesto de interrupção, um gesto que é quase impossível nos tempos que correm: requer parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar; pensar mais devagar, olhar mais devagar e escutar mais devagar; parar para sentir, sentir mais devagar, demorar-se nos detalhes; suspender a opinião, suspender o juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo da ação; cultivar a atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos acontece, aprender a lentidão, escutar os outros, cultivar a arte do encontro, calar muito, ter paciência e dar-se tempo e espaço”.

Dando-se tempo e espaço para viver a experiência…

Gostaria de convidar você que me lê para uma experiência de contato profundo com a música, buscando perceber como tal contato se dá, quais qualidades se abrem e se revelam, como você as percebe e como se percebe. Tendo a experiência da música como um ponto de partida, permita-se mover-se na direção que ela lhe conduz e então observe-se, surpreenda-se e entregue-se a uma forma de perceber que é, a um só tempo, singular e relacional. Proponho, então, que a partir do saber da experiência, você possa observar o que acontece durante uma escuta musical, que você conheça um pouco mais da sua relação com a música.

Crie um momento e um ambiente para o deleite de escutar. Apenas reserve um tempo do seu dia, um lugar confortável e um equipamento de som e permita-se escutar, entrar em contato com a música, estar disponível para a experiência.

Comece com um momento de “afinar os silêncios”, parar, contemplar, sentir o instante presente. Deixe que as preocupações do dia a dia repousem em algum lugar distante e procure silenciar “a rádio-cabeça que toca sem parar”. Uma forma de fazer isso, pode ser levar seu foco de atenção para o próprio corpo. Procure sentir sua respiração, como ela se movimenta e depois sua pele em contato com o ambiente. Apenas deixe que os excessos sejam diminuídos, extinguidos, reduza o volume dos estímulos. Não pense em eliminá-los, deixe apenas que eles passem, não interaja com eles, simplesmente não os siga, não os alimente.

Esse espaço de esvaziamento também pode ser feito com uma breve anotação no diário de como você está sentindo naquele instante. Você pode, por exemplo, anotar em seu diário em qual ambiente você está, qual a temperatura do dia, qual o seu estado de humor, se há alguma espécie de dor ou incômodo corporal, etc. São apenas maneiras de perceber-se no momento presente, de trazer o foco de atenção para si. Quando se sentir em contato consigo mesmo, então dê um play na música e deixe que ela soe.

Não há indicação de músicas específicas. O que está em jogo é a experiência de escuta. Não se preocupe em selecionar as músicas sistematicamente com algum motivo ou intenção, apenas reserve algumas delas para ouvir e as escute, entregue-se à experiência, perceba. Ao final de cada escuta, você pode anotar no seu diário como se sentiu e o que percebeu. É interessante registrar ainda qual música foi escutada e a data.

Essa prática de escuta, de deixar vir o que se apresenta, também pode ser feita de maneira compartilhada, com alguém de que você gosta e em que confia. As músicas ouvidas podem ser escolhidas por você ou pela outra pessoa. Cada um seleciona algumas músicas para que vocês possam ouvir conjuntamente. Após a escuta, troquem as suas impressões, digam um ao outro como se sentiram. Vocês poderão perceber similaridades e diferenças. E arrisco dizer que você se surpreenderá com os relatos de cada um e com o fato de que poderá vislumbrar novos aspectos até de pessoas que conhece há muito tempo e com as quais convive com muita frequência e regularidade, pois o que elas lhe contam é algo que não pode ser percebido diretamente por você, é um saber de experiência.

Nesses momentos que você reservou para tomar contato com a música, você pode também, de vez em quando, ler as suas anotações, repetir algumas escutas e selecionar novas músicas para serem ouvidas. É um processo que se desenvolve a cada dia, por isso o termo “diário” é importante, não por precisar ser repetido necessariamente todos os dias, mas por nos lembrar dessa regularidade, de algo que é sempre retomado, sem obrigação, mas como um espaço de cuidado.

É possível que ao realizar essa prática de escuta por diversas vezes, você talvez comece a perceber modos que se repetem e, assim, poderá estabelecer algumas relações sobre o seu saber da experiência musical naquele momento ou ao longo de sua trajetória de vida. Há um modo de percepção preferencial que se repete quase todas as vezes independentemente do tipo de música? Ou há algumas formas de perceber que só emergem em determinados tipos de músicas?

A experiência de reservar um tempo para escutar já é por si só um momento de autocuidado e autoconhecimento, mas não se preocupe com isso, faça simplesmente o movimento de se disponibilizar para escuta e deixe que a música lhe mova para onde puder ir naquele instante, entregue-se à experiência e nada mais.

Caso a escuta lhe conduza para uma vivência desconfortável em que você não queira estar, basta interromper a audição e voltar para um lugar que considere de conforto. Uma maneira de fazer isso é escutar algo que você já sabe que lhe faz muito bem, algo que lhe traga sensação de bem-estar. A experiência musical é espontânea como a vida, podemos controlar as trilhas, mas não os caminhos, estes são do mundo. Conhecer-se e cuidar-se nem sempre é um processo só prazeroso e agradável. Pode envolver também dor, angústia e todos os tipos de sentimentos possíveis de se vivenciar. Então, talvez seja importante reforçar aqui que esses “mapeamentos da escuta” propostos são apenas uma sensibilização em relação ao papel da dimensão musical em nossa existência. A experiência de escutar música pode ser terapêutica por si só, mas não é um processo de musicoterapia, pois esse é desenvolvido com o acompanhamento de um profissional qualificado, com formação para tal.

A música às vezes aparece de forma tão espontânea nas nossas vidas que nem nos damos conta da sua importância e profundidade. Isso não diz respeito só ao modo como a música se mostra, mas também à uma desvalorização das artes, culturas e afetos como algo menor, menos urgente e menos importante nos dias de hoje. Porém, ao nos dedicarmos à investigação da experiência musical nas nossas vidas, poderemos perceber que algo que parece ser tão simples e corriqueiro tem uma relevância enorme na existência, relacionando-se com as mais variadas situações, dimensões e modos de ser.

Talvez esteja na hora de escutarmos mais atentamente as relações que desenvolvemos com a música em nossa trajetória de vida. Cultivar a dimensão musical é abrir espaço para o novo e para o antigo em nós. A experiência musical une de uma só vez passado, presente e futuro, fazendo com que possamos constantemente afinar os movimentos da nossa existência. Em contato com a música que para cada um de nós faz sentido, talvez possamos sentir a experiência cantada por Caetano Veloso, de que ao “ter alma para ouvir e coração para escutar” a gente “nunca se canse do uníssono com a vida”.


Priscila Bernardo Mulin – Bacharel em Musicoterapia, especialista em Dependência Química (UNIFESP), mestra em Educação, Arte e História da Cultura (MACKENZIE) e pós-graduanda em Psicologia Clínica Fenomenológica-Existencial (NUCAFE). Foi docente e supervisora de estágios da Graduação em Musicoterapia da FMU, onde atuou também como docente responsável pela Clínica-Escola de Musicoterapia e coordenadora do Curso de Pós-Graduação em Musicoterapia Preventiva e Social. Atualmente dedica-se ao Mapa da Escuta, uma proposta terapêutica autoral que promove o envolvimento e o desenvolvimento da dimensão sonora musical como forma de (auto)conhecimento e (auto)cuidado.

 

Fontes

Adorno, Theodor W. Introdução à Sociologia da Música: doze preleções teóricas. São Paulo: Editora UNESP, 2011.

Alves, Rubem. O que é científico? (VIII). In: Entre a Ciência e a Sapiência: O Dilema da Educação. São Paulo: Edições Lyola, 1999.

Dahlhaus, Carl, Eggebrecht, Hans Heinrich. Que é a música? Trad. Artur Morão. Lisboa: Texto & Grafia, 2009.

Bondía, Jorge Larrosa. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Rev. Bras. Educ. [online]. 2002, n.19, pp.20-28. ISSN 1413-2478. https://doi.org/10.1590/S1413-24782002000100003.

Veloso, Caetano. Sou seu sabiá. In: Veloso, Caetano. Noites do Norte. Brasil: Universal Music, 2000. 1 CD. Faixa 11.