Formação em PICS para agentes comunitários de saúde: educação popular, autonomia em saúde e autocuidado

O Sistema Único de Saúde (SUS) é um sistema inovador no Brasil, que foi possibilitado a partir de uma série de discussões entre sociedade civil e Estado, nos anos de 1980.

A partir da Constituição de 1988, foi apresentado como sistema de saúde universal, público e gratuito que priorizava a promoção da saúde e prevenção dos agravos, retirando o foco na doença e na atenção terciária (hospitalocêntrica e medicamentosa).

A saúde, sob essa nova perspectiva, deixava de ser considerada apenas como ausência de doenças, para tornar-se uma gama de práticas de vida e a garantia de direitos em relação a alimentação adequada – socialmente justa e de produção sustentável –, habitação de qualidade, saneamento ambiental, emprego digno e bem remunerado e acesso a espaços de lazer e cultura, entre outros.

Ao longo dos últimos 40 anos, tem sido difícil sua completa implementação, pois, apesar de ser um sistema bastante progressista na lei, são poucos os atores sociais dispostos a efetivar as mudanças e transformações necessárias para que os princípios do SUS sejam postos em prática na sua integralidade. Ainda assim, o sistema foi capaz de produzir muitos avanços.

A atenção primária, porta de entrada do sistema, é um espaço privilegiado de promoção de saúde e prevenção de doenças e deve ser eleita como prioridade entre os municípios, devido ao seu baixo custo de implementação e manutenção (em relação às atenções secundária e terciária), além de seus resultados eficazes em manter a população saudável e produtiva.

SUS, PICS  e autocuidado

Em 2006, o Ministério da Saúde aprovou a Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares (PNPIC), que estabelece como um de seus objetivos “contribuir ao aumento da resolubilidade do sistema e ampliação do acesso às PICS, garantindo qualidade, eficácia e segurança no uso” (BRASIL, 2006).

Atualmente, várias práticas são reconhecidas pelo SUS, incluindo acupuntura, shiatsu, yoga, exercícios energéticos da medicina chinesa, terapia floral e fitoterapia.

As PICS contemplam recursos terapêuticos e racionalidades médicas, que também são denominadas pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como medicina tradicional e complementar/alternativa (MT/MCA).

No texto do Ministério da Saúde que aprovou a utilização das PICS no SUS, consta: “tais racionalidades e recursos têm o objetivo de estimular os mecanismos naturais de prevenção de agravos e recuperação da saúde, por meio de tecnologias eficazes e seguras, utilizando instrumentos tais como a escuta acolhedora no desenvolvimento do vínculo terapêutico e na integração do ser humano com o ambiente e a sociedade. A visão ampliada do processo saúde-doença, a perspectiva do vitalismo e a promoção global do cuidado humano, especialmente do autocuidado (grifo nosso), são características que definem a proposta dessas práticas” (BRASIL, 2006).

A Organização Mundial de Saúde define a saúde como “um estado de completo bem-estar físico, mental e social e não somente ausência de doenças” (OMS/WHO, 1946). Ainda nesse documento da OMS, temos que “o autocuidado é um conceito estabelecido pela Organização Mundial de Saúde, tratando-se da forma como a população estabelece e mantém a própria saúde, e como previne e lida com as doenças”.

O Projeto de Lei nº 9714/2018, que institui o Dia Nacional do Autocuidado, tem como base para a sua instituição a seguinte citação: “os estudos  mostram que 80% das doenças do coração, acidente vascular cerebral e diabetes, além de um terço dos casos de cânceres, poderiam ser evitados se o autocuidado fosse uma prática adotada pelos países como parte de uma política pública de saúde” (BRASIL, 2018).

No dicionário Priberam, (Priberam, 2021), o verbete relativo a autocuidado aparece como “o conjunto de ações ou procedimentos de cada indivíduo destinado à manutenção da vida, da saúde e do bem-estar”. Já no dicionário da Infopédia (Infopédia, 2021), autocuidado é definido como “o conjunto de ações realizadas individualmente com vista à preservação da saúde e/ou prevenção de doenças”.

SUS e agentes comunitários de saúde: práticas de autonomia e autocuidado

Os agentes comunitários de saúde (ACSs) surgiram antes da existência do SUS, primeiramente de maneira informal, a partir da organização de lideranças comunitárias e pastorais de saúde na década de 1970, sendo depois oficializados em 1987, no estado do Ceará, no Nordeste do Brasil.

As pessoas de comunidades pobres tinham pouco ou nenhum acesso a médicos e profissionais de saúde. Naquela época, apenas quem possuía carteira de trabalho assinada conseguia acessar os serviços públicos – desempregados ou pessoas fora do mercado formal de trabalho tinham acesso aos serviços privados, que nem sempre eram acessíveis devido ao alto custo, principalmente porque o País vivia um período de ditadura militar, em que imperava a carestia.

As pessoas empobrecidas perceberam que deveriam produzir seus próprios cuidados em saúde a partir de saberes ancestrais e coletivos e iniciaram a busca por formação, sobretudo de mulheres dos territórios, para atender às demandas de tratamentos de adoecimentos e prevenção de doenças e principalmente reduzir as mazelas produzidas pela fome e desnutrição, além de habitações precárias e ausência de saneamento ambiental.

Em Petrópolis, no ano de 1990, a ASBAMTHO e a Escola de Enfermagem Santa Catarina produziram o primeiro curso no Brasil de formação de agentes comunitários de saúde em terapias alternativas, que era uma inovação por incorporar shiatsu, moxabustão e chi kung, além obviamente de outras práticas como fitoterapia, alimentação natural e saudável, noções de primeiros socorros, etc.

Apenas em 1991, o Ministério da Saúde, em parceria com as secretarias estaduais e municipais, institucionalizou o Programa Nacional de Agentes Comunitários de Saúde (PNACS), com o objetivo de unir as várias ações que existiam espalhadas pelo País sob uma única orientação, o qual transformou-se, em 1992, no Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS).

A cidade de Petrópolis, no Rio de Janeiro, também inovou e, em convênio com a Secretaria Municipal de Saúde, ofereceu cursos de formação de agentes comunitários de saúde em terapias alternativas, durante os anos de 1991, 1992 e 1993.

Os agentes comunitários de saúde são pessoas nascidas em suas comunidades, majoritariamente mulheres, que cuidam da saúde dos indivíduos que habitam esses espaços e, por seu pertencimento e conhecimento das realidades locais, são capazes de identificar os riscos e de produzir práticas de promoção de saúde, prevenção de adoecimentos e tratamento de alguns agravos em saúde.

Desde a criação dessa função, os agentes comunitários de saúde do SUS já tiveram o caráter de sua profissão amplamente modificado. Suas atribuições foram gradativamente, ao longo dos anos, enriquecidas de práticas burocráticas e reduzidas em suas práticas de cuidados em saúde com a comunidade, ficando muitas vezes restritas ao agendamento de consultas com médicos e outros profissionais de saúde, coleta de dados e preenchimento de relatórios. Apenas em 2023, com a publicação da Lei nº 14.536, que fortalece a atenção básica à saúde, os agentes foram considerados profissionais de saúde.

É necessário resgatar e valorizar a importância dos ACSs não só como agentes de educação popular, mas também e principalmente como pessoas das comunidades que produzem práticas de cuidados em saúde e autocuidado, compartilhando conhecimentos e saberes e técnicas sobre promoção de saúde, prevenção de doenças e tratamento de alguns agravos.

Nesse sentido, instrumentalizar os agentes comunitárias de saúde com as PICS é de grande relevância para fortalecer a atenção básica, aumentar o acolhimento, priorizando as práticas de autocuidado e incentivar a autonomia em saúde das pessoas da comunidade, reduzindo a medicalização excessiva e seus consequentes custos financeiros e iatrogênicos.

SUS, ACSs e PICS: experiência do município de Petrópolis

No âmbito das PICS, a realidade em Petrópolis vem se modificando ao longo dos anos. O município ainda não contempla as práticas do SUS como uma política pública. Desde a implantação da PNPIC e mesmo antes, a inclusão das PICS na atenção básica no município tem acontecido de forma gradual, em virtude do pouco conhecimento sobre as mesmas, da falta de pesquisas na área e da pequena quantidade de servidores qualificados para realizá-las.

Percebendo essa realidade, profissionais de saúde, formadores no campo das PICS e parlamentares do município começaram a se reunir e apresentaram suas demandas ao Conselho Municipal de Saúde (ComSaúde). Foi criado, então, um grupo de trabalho nesse conselho, em 2016, que buscou elaborar coletivamente um projeto que viabilizasse e atendesse aos anseios da população, expressos inclusive nas últimas Conferências Municipais de Saúde, e da própria Secretaria de Saúde, no sentido de implantação da Política Municipal das PICS.

Nesse sentido, foi constituída uma entidade jurídica, com personalidade própria, de caráter filantrópico (APPPICS), para elaborar um projeto de implantação de atendimento e de cursos de formação relacionados às PICS, no munícipio de  Petrópolis.

Na 15ª Conferência Municipal de Saúde de Petrópolis – Democracia e saúde, foram estabelecidas como diretrizes para o âmbito municipal, a “capacitação dos ACS e ACE, tais como os cursos das PICS”. Em reunião com a APPPICS, mais de sessenta agentes comunitários de saúde de Petrópolis confirmaram seu interesse em participar de um curso de PICS.

O Conselho Municipal de Saúde é a entidade responsável pela aprovação das verbas destinadas ao SUS e é também fundamental para a elaboração das metas para a saúde no município. Considerando a importância dessa entidade para o controle social do SUS, a APPPICS apresentou um esboço de proposta do curso de PICS, para que fossem apreciadas e analisadas a necessidade e a viabilidade de sua execução. Em novembro de 2019, o ComSaúde, aprovou então a realização do Curso de Práticas Integrativas e Complementares em Saúde (PICS) para Agentes Comunitários de Saúde (ACSs) do município de Petrópolis.

O resultado desse processo foi a apresentação, junto à Secretaria Municipal de Saúde, de um projeto de curso que, tendo sido aprovado, teve início em setembro de 2022.

Curso de PICS para ACSs de Petrópolis: conquistas e desafios

O Curso de Práticas Integrativas e Complementares em Saúde para Agentes Comunitários de Saúde do município de Petrópolis tem duração de 12 meses, com aulas semanais e presenciais, em que cada ACS aprende e é estimulado a exercer e ensinar as técnicas de shiatsu, moxabustão, auriculoterapia, fitoterapia (plantas e ervas medicinais, aromáticas e nutritivas, chás, emplastros, compressas, farmácias vivas, etc.), yoga e práticas de autocuidado (automassagem, exercícios articulares, alongamentos, chi kung, meditação e noções sobre alimentação e comida de verdade).

Os objetivos principais do curso são os descritos a seguir.

Valorizar os agentes comunitários de saúde e estimular que eles sejam ativos nos processos de promoção de saúde e prevenção de doenças na comunidade.

Fortalecer a atenção primária como porta de entrada do SUS, reduzindo custos com atenção secundária e atenção terciária.

Auxiliar na diminuição da medicalização de pessoas das comunidades e territórios, aumentando a qualidade de vida e reduzindo custos farmacêuticos.

Estimular a autonomia e o cuidado de si, de forma que as pessoas assumam o protagonismo sobre a sua própria saúde.

Criar condições para que as pessoas e a comunidade desenvolvam práticas e recursos que promovam a saúde e previnam as doenças.

Estimular o sentido educativo do autocuidado, convidando as pessoas a assumirem o protagonismo sobre a sua própria saúde.

Promover a racionalização das ações de saúde, estimulando alternativas inovadoras e socialmente contributivas ao desenvolvimento sustentável de comunidades.

Estimular que os ACSs produzam planilhas para registro de dados de redução da medicalização e diminuição dos adoecimentos a partir da utilização das PICS nas comunidades.

Considerações finais

A primeira turma do curso de PICS para ACSs de Petrópolis concluiu a sua formação, com sucesso, em setembro de 2023.

Os agentes têm gradativamente implantado na rotina de trabalho de suas unidades de saúde e territórios as práticas compartilhadas no curso, além de serem convidados para participar de eventos realizados pela Secretaria de Saúde, com o objetivo de divulgarem as ferramentas de PICS para a população em geral e apresentarem como elas funcionam e quais são seus efeitos práticos no aumento da qualidade de vida e redução de sintomas de doenças.

Cada estudante do curso tem experimentado os benefícios das técnicas em seus próprios corpos, com relatos de redução no uso de medicamentos, aumento de disposição de vida e diminuição de dores crônicas e de questões emocionais.

Eles têm incorporado, aos poucos, as práticas de autocuidado, cada um a sua maneira singular, atentando mais às suas necessidades reais e produzindo modificações gradativas, porém eficazes, em seus hábitos, que os auxiliam a experienciar mais qualidade de vida.

Além disso, são estimulados a valorizarem e resgatarem os saberes e conhecimentos ancestrais e comunitários sobre saúde das pessoas de suas comunidades, reconhecendo seu valor e riqueza e também fortalecendo a importância dos saberes científicos atuais, de forma a produzir um intercâmbio dessas linguagens, sem hierarquizações.


Patricia Stumpf – Diretora da APPPICS, nutricionista, acupunturista e homeopata.

Donati Caleri – Diretor da ASBAMTHO, psicólogo e acupunturista.

Ana Maria Stutzel – Diretora da APACS, SMS-Petrópolis e agente comunitária de saúde.

 

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