Há tempos li um editorial de uma importante revista médica científica que comparava o trabalho e o descanso com a sístole e a diástole cardíacas(1). O texto dizia que, apesar de a contração do coração, que joga o sangue para o corpo, ser empolgante, é na diástole, no repouso, que a vida torna-se possível.
Se houver apenas tensão, não há espaço para as cavidades cardíacas encherem-se de sangue. Pego-me aqui refletindo quantos de nós, profissionais de saúde, vivemos apenas em sístole!
A preocupação constante com os pacientes que acompanhamos, os empregos que acumulamos para dar conta das obrigações financeiras, os momentos que perdemos com nossos amigos queridos para atender a mais uma urgência. Os Natais e feriados que deixamos de estar com nossas famílias para cuidar de outros.
Converso com muitos colegas que nem se dão conta do volume de estresse que carregamos. Aprendemos que a vida do profissional de saúde é uma vida de sacrifício e, assim, naturalizamos a sobrecarga física e mental.
Embora cada vez mais a gente fale para nossos pacientes sobre a importância do adequado gerenciamento do estresse, esquecemos de contar para nós mesmos sobre os malefícios de uma “vida sistólica”.
O estresse crônico torna-se tóxico ao organismo e aparece como pano de fundo para uma série de doenças crônicas não transmissíveis extremamente prevalentes nos dias atuais. Doenças cardiovasculares, distúrbios do metabolismo e condições neuropsíquicas, como a ansiedade e depressão, estão entre as principais causas de morbimortalidade em nossos tempos, inclusive nos médicos(2).
Como base fisiológica comum dessas condições está a inflamação crônica de baixo grau, que pode ser iniciada ou agravada pela resposta de estresse.
Em pesquisa realizada em 2022, com mais de 3.000 médicos brasileiros, dois em cada três deles relataram ter apresentado sintomas de burnout ao longo de sua carreira(3).
Esse número é assustador quando pensamos que um dos principais impactos do burnout, o extremo do estresse ocupacional, é a redução da empatia. Costumo dizer, nas minhas aulas para estudantes e profissionais de saúde, que autocuidado é uma questão de ética profissional.
Alguns dias me pego irritada com as queixas de algum paciente no consultório, querendo acabar logo com a consulta e sem me sensibilizar muito com o sofrimento alheio. Após anos estudando os efeitos do estresse, mas principalmente os benefícios das práticas contemplativas, tornou-se mais fácil me perceber nessa condição.
Para mim hoje é bem claro que quando me sinto dessa forma é porque estou com alguma necessidade não atendida. Pode ser privação de sono, algumas vezes é fome. Na maior parte do tempo é falta de descanso adequado. O recurso que me permitiu apurar esse “diagnóstico” ao longo dos anos foi a prática regular da meditação.
Apesar de toda a mística que anteriormente envolvia essa prática, nas últimas décadas a meditação tornou-se objeto de pesquisa acadêmica através das chamadas neurociências contemplativas.
A meditação encontra-se presente em praticamente todas as disciplinas de desenvolvimento pessoal de contexto laico, bem como em práticas filosóficas ou religiosas.
Na perspectiva da saúde, meditação envolve um conjunto de técnicas que se concentram na integração mente-corpo, usadas para regular o estado mental e melhorar o bem-estar geral.
Alguns tipos de meditação envolvem manter o foco mental em uma sensação específica, como respiração e som, ou em uma imagem. Outras formas de meditação incluem a prática da atenção plena, que envolve manter o foco no momento presente sem fazer julgamentos(4).
Temos relatos de praticantes de meditação pelo menos há mais de 3.000 anos na história da humanidade e, apesar de o intuito inicial dessa prática ser o desenvolvimento pessoal, a ciência contemporânea vem demonstrando que ela também promove controle de alguns sintomas, prevenção de doenças e promoção de saúde.
Benefícios da meditação
A meditação é muito boa para melhora da capacidade cognitiva. O treino regular modifica o funcionamento de algumas áreas cerebrais, como o córtex pré-frontal e o hipocampo, aprimorando a capacidade de foco e concentração, o que tem impacto direto na melhoria da memória e do aprendizado.
Alguns estudos também mostram que a meditação pode ajudar pessoas com transtorno do déficit de atenção e hiperatividade, não só porque melhora a atenção, mas principalmente por regular os impulsos emocionais, que podem ser um desafio para quem tem TDAH.
Ainda falando sobre o funcionamento da mente, a meditação contribui para diminuir sintomas de depressão e ansiedade e pode ser uma aliada no tratamento dessas condições. No caso da depressão, ela ajuda a evitar que os sintomas retornem ao longo do tempo, o que chamamos de recaída. Já para a ansiedade a meditação é eficaz em treinar o reconhecimento de que estamos nos envolvendo em pensamentos de antecipação e nos trazer de volta para o que está de fato acontecendo no momento.
A prática frequente contribui para a regulação das funções corporais, ou seja, para um funcionamento equilibrado do organismo. Por isso, pode ser utilizada como parte do tratamento de pressão alta e outras doenças do metabolismo.
O sistema imune também se beneficia, pois passa a funcionar de maneira mais eficaz no combate de infecções e na resposta a vacinas. Pode ainda haver maior controle dos sintomas de doenças autoimunes, já que essas doenças estão muito relacionadas ao estresse.
Falando em estresse, a meditação, por reduzir os efeitos prejudiciais do estresse crônico, pode ser utilizada de forma integrada ao tratamento de doenças que são agravadas por ele. Grandes sociedades médicas, como a American Heart Association(5) e a American Society for Clinical Oncology(6), recomendam essa prática como parte do cuidado para reduzir o risco de doenças cardiovasculares, apoiar pessoas que querem parar de fumar e também para minimizar sintomas relacionados ao tratamento de câncer.
Pesquisas mais recentes mostram também um impacto epigenético da meditação, principalmente em praticantes de longa data. Há a redução da expressão de oncogenes e genes inflamatórios, como fator de transcrição NF-kB e aumento de genes relacionados com a produção energética do organismo, o que melhora a produção e utilização de energia pelas mitocôndrias, promovendo assim a resiliência mitocondrial através da regulação positiva da ATPase e da função da insulina.
As técnicas meditativas contribuem ainda para o controle da dor crônica, como enxaquecas, dor lombar e fibromialgia, já que há redução da liberação de substâncias que causam inflamação e aumento do relaxamento muscular. O principal benefício, entretanto, é a mudança da percepção que a pessoa tem sobre sua dor, reduzindo o desconforto emocional causado por ela e melhorando a qualidade de vida.
Meditação e desenvolvimento profissional e pessoal
O propósito principal da meditação sempre foi o desenvolvimento pessoal. A partir da prática regular, fortalecemos a qualidade da atenção e não nos deixamos levar pelas aflições e distrações da vida cotidiana.
Criamos intimidade com o funcionamento da nossa mente, o que nos torna mais aptos a observar nossos pensamentos recorrentes e as reações automáticas. Essas observações, por sua vez, ajudam-nos a identificar quais os pontos em que podemos nos desenvolver e quais qualidades queremos cultivar.
Além de aperfeiçoarmos a atenção para o que acontece no mundo interno, também nos tornamos mais atentos e percebemos de forma mais abrangente o que acontece no mundo externo. Passamos a observar melhor e a ser mais empáticos com as pessoas ao nosso redor e cuidadosos com o ambiente em que vivemos. Com isso nos tornamos melhores profissionais de saúde.
Ao longo dos meus quase dez anos como aprendiz de meditação, percebo essa prática como uma diástole fundamental no meu dia. É nessa pausa que me permito estar em contato mais íntimo com o funcionamento da minha mente, que encontro repouso e o espaço necessário para me esvaziar e então poder me preencher com o ânimo essencial para jorrar vida, não só na profissão mas também junto àqueles com quem compartilho o viver.
Dra. Regina Chamon – Médica hematologista formada pela Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP, responsável pelo Núcleo de Medicina Integrativa do COE – Oncologia – Doenças Autoimunes, certificada em Manejo do Estresse e Treino da Resiliência pela Harvard Medical School, docente do Curso de Formação de Facilitadores de Meditação para a Saúde da Universidade Federal de São Paulo – UNIFESP, pós-graduada em Bases da Medicina Integrativa pela Instituição Israelita de Ensino Albert Einstein, apresentadora do podcast Desestresse e colunista da Revista Boa Forma.
Referências bibliográficas
1 – https://jamanetwork.com/journals/jama/article-abstract/2733976.
2 – https://medicinasa.com.br/pesquisa-morte-medicos-brasileiros/#:~:text=Doen%C3%A7as%20do%20aparelho%20circulat%C3%B3rio%20(como,Brasil%20entre%202000%20e%202017.
3 – https://static.poder360.com.br/2023/09/pesquisa-saude-mental-medicos-brasileiros-2022.pdf.
4 – https://www.nccih.nih.gov/health/meditation-and-mindfulness-what-you-need-to-know.
5 – https://www.ahajournals.org/doi/10.1161/jaha.117.002218.
6 – https://ascopubs.org/doi/10.1200/JCO.2018.79.2721.