Os possíveis efeitos do THC em hormônios

Enquanto a cannabis medicinal está sendo legalizada em mais e mais países, com várias publicações sérias sobre os efeitos adversos e benéficos de seu uso clínico, estamos aprendendo cada vez mais sobre o manejo e os cuidados clínicos dessa nova classe terapêutica.

Apesar de ser bem conhecido por sua ação psicoativa e analgésica, o THC (Δ9-tetrahidrocanabinol) tem possíveis efeitos colaterais em vários sistemas de nosso organismo, que são pouco difundidos.

A cannabis pode afetar nossos hormônios, principalmente por ação nas glândulas pituitária, tireoide e suprarrenal e também no sistema reprodutor.

Nosso organismo é dotado de um sistema que busca a “harmonização” ou homeostasia de todos os outros sistemas. Foi descrito há pouco tempo e é chamado de sistema endocanabinoide (SEC). Esse nome tem origem na descoberta de moléculas produzidas naturalmente pelo corpo, que estão presentes principalmente apenas sob demanda nas fendas sinápticas. As mais conhecidas são a anandamida e a 2-AG. O papel dessas moléculas é muito importante em vários sistemas do organismo. Elas reagem com diversos tipos de receptores, como o CB1 e o CB2, os quais estão envolvidos na regulação da gravidez, fertilidade, sensação e percepção de dor, apetite, memória, equilíbrio, humor, balanço energético, sistema imunológico e homeostase.

É no receptor CB1 que o THC se liga e ativa o controle da sinapse. De forma fisiológica, está comprovado que a anandamida (ou molécula da felicidade, em sânscrito) é a responsável pela sensação de “prazer” quando fazemos exercícios físicos, por meio de picos de produção e liberação de endocanabinoides, principalmente no cérebro, onde ela se envolve na atividade motora por meio de interações em redes neuronais e afeta o centro de recompensa por meio de transdução da liberação de dopamina.

 Ação no cortisol: eixo hipotálamo-pituitária-adrenal (HPA)

A resposta ao estresse externo é controlada pelo eixo HPA em última análise, por meio da liberação de cortisol. Ao detectar um estressor químico, físico, patogênico ou emocional, as regiões afetadas do cérebro enviam sinais neurais ao hipotálamo, desencadeando a secreção de FLC ou fator de liberação de corticotropina e vasopressina (VP), que se acoplam para estimular a pituitária a fabricar e liberar o hormônio adrenocorticotrófico (ACTH) na corrente sanguínea.

Ao atingir as glândulas adrenais, o ACTH liga-se a receptores em regiões específicas dessas glândulas, estimulando a liberação de cortisol na corrente sanguínea. Quando o estressor é removido (por exemplo: o nível baixo de glicose no sangue volta ao normal ou o estresse emocional é resolvido), o cortisol retroalimenta-se negativamente para o hipotálamo e pituitária para interromper a estimulação posterior de FLC e ACTH.Efeitos da cannabis sobre o sistema endócrino

Os picos de cortisol alto são essenciais para manter a homeostase e a saúde, pois esse hormônio também atua no controle dos níveis de glicemia, regula o metabolismo, reduz a inflamação, controla o equilíbrio hídrico e sódico, influenciando na pressão arterial e auxilia na formação da memória.

Porém, se o cortisol permanecer em níveis altos por muito tempo, devido a estressores em excesso, provocará um impacto negativo na saúde. A liberação excessiva e prolongada reduz a sensibilidade do ciclo de feedback negativo que controla os níveis de cortisol, diminuindo sua eficácia(1).

Já foi demonstrado que o uso em doses altas de THC aumenta os níveis de cortisol circulante(2) (3). Para usuários infrequentes de cannabis, esse aumento no cortisol pode causar elevações esporádicas na pressão arterial e ansiedade(4). Em usuárias de longo prazo, o aumento sustentado do cortisol pode alterar as reações naturais do corpo às mudanças nesse hormônio, afetando a libido e o ciclo menstrual da mulher(3) (4).

Outra consequência possível para usuários recreativos de THC é o potencial de atenuar o pico matinal de cortisol, conhecido como resposta do cortisol ao despertar.

Assim que acordamos, nossos níveis de cortisol aumentam significativamente e vão depois decaindo ao longo do dia. Ao final do dia, os níveis de melatonina sobem expressivamente e tomam o lugar do cortisol, ativando nossa vontade de dormir. Essa é a curva fisiológica que todos buscamos para ter um dia produtivo e uma boa noite de sono. O despertar é uma causa direta do pico de cortisol. Portanto, se esse comportamento fisiológico estiver comprometido, torna-se difícil acordar corretamente e manter uma atividade diária produtiva.

Ação na tireoide: eixo hipotálamo-pituitária-tireoide (HPT)

O eixo HPT é responsável por manter a taxa metabólica, as funções cardíacas e digestivas, o controle muscular, o desenvolvimento do cérebro e a saúde óssea. Explicando resumidamente: o hipotálamo secreta o hormônio liberador de tireotropina (TRH), que se liga à glândula pituitária, desencadeando a liberação do hormônio estimulador da tireoide (TSH). O TSH estimula então a liberação de tiroxina (T4) e tri-iodotironina (T3) da tireoide. O T4 exerce um feedback negativo com o hipotálamo para regular a quantidade que está circulando na corrente sanguínea e o T3 é o elemento ativo.Efeitos da cannabis sobre o sistema endócrino

O THC inibe a secreção de TSH pela hipófise principalmente por meio da regulação da liberação de TRH no hipotálamo(5) (6). Esse efeito é dose-dependente, ou seja, quanto maior a dose de THC, maior a diminuição dos níveis de TSH(5) (6). Essa redução nos níveis de TSH causa uma diminuição na síntese de T4 e T3 na glândula tireoide e, consequentemente, menores níveis circulantes desses hormônios(5) (6). Os níveis circulantes baixos de T4 e TSH podem levar a sintomas de hipotireoidismo hipofisário, incluindo fadiga, ganho de peso, intolerância ao frio, depressão, diminuição da libido e ciclos menstruais anormais.

 Ação nas gônadas: eixo hipotálamo-pituitária-gonadal (HPG)

O eixo HPG controla as funções do organismo relacionadas à saúde reprodutiva e regula nossos hormônios para manter a função ideal e a saúde de todos os tecidos do corpo (cérebro, tecido conjuntivo, tecido cardiovascular, órgãos reprodutivos, sistema imunológico, etc.). Resumidamente: o hipotálamo secreta o hormônio liberador de gonadotrofina (GnRH), que estimula a hipófise a secretar o hormônio folículo-estimulante (FSH) e o hormônio luteinizante (LH).Efeitos da cannabis sobre o sistema endócrino

FSH e LH são importantes na regulação da função gonadal em ambos os sexos. Nas mulheres, eles atuam no desenvolvimento puberal e na função ovariana e desempenham um papel relevante durante o ciclo menstrual. Nos homens, o FSH é essencial para o funcionamento dos testículos e a produção de esperma (espermatogênese) e o LH estimula a produção de testosterona. O uso de THC impacta diretamente muitas partes do eixo HPG.

O THC diminui indiretamente a secreção de GnRH pelo hipotálamo por meio da regulação dos neurotransmissores glutamato e ácido gama-aminobutírico (GABA)(7) (8) e através da transdução de dopamina, que reduz a sinalização do GnRH(9).

Nas mulheres, o THC inibe a foliculogênese, a maturação do folículo ovariano e a ovulação, por meio da regulação da energia celular produzida na mitocôndria, o AMPc(7). Durante a ovulação, o corpo libera uma onda de endocanabinoides no ovário. O excesso de canabinoides, devido ao consumo de cannabis, pode interromper o pico ovulatório e levar a um ciclo irregular(7) (8). O THC também inibe a esteroidogênese, evitando a conversão de pregnenolona em progesterona(7).

Nos homens, foi demonstrado que o THC pode diminuir a contagem de espermatozoides, reduzir os níveis séricos de testosterona e LH, reduzir a motilidade espermática e inibir os processos necessários para facilitar a capacidade dos espermatozoides de atingir a concepção(7) (10) (11).

Esses efeitos podem levar a uma diminuição da fertilidade em homens e mulheres, mas a fertilidade pode retornar com a interrupção do uso crônico e excessivo de THC.

Em resumo, é possível afirmar que o consumo crônico de cannabis pode ter efeitos sobre os sistemas adrenal, tireoide e reprodutivo, afetando potencialmente a energia, o comportamento e a saúde reprodutiva. Felizmente, após a interrupção do uso crônico de longo prazo, o corpo pode restaurar a função normal, mitigando esses efeitos.

O THC também tem impacto no desenvolvimento do feto. Portanto, o uso de cannabis deve ser interrompido durante a tentativa de engravidar(12).

Os pacientes que fazem uso crônico de THC em altas doses com intuito recreativo e têm seus níveis de energia e desejo sexual diminuídos são aconselhados a descontinuar essa prática e a testar periodicamente seus níveis de hormônios adrenais (cortisol, DHEA-S), hormônios sexuais (estradiol, progesterona e testosterona) e hormônios da tireoide (T4, T3, TSH, TPOab), para verificar se o THC não está limitando sua capacidade fisiológica.

Testes simples e convenientes de saliva e de sangue podem ajudar a determinar se o uso de THC está afetando a saúde geral dos pacientes.


Dr. Wellington Briques – Médico e Director Global Medical Affairs da Canopy Growth Corporation.

 

Fontes

(1) Hill, M. N., et al. Endogenous cannabinoid signaling is essential for stress adaptation. Proc Natl Acad Sci USA. 2010;107:9406-11.

(2) Hilliard, C. J., et al. Endocannabinoid signaling and the hypothalamic-pituitary-adrenal axis. Compr Physiol. 2018;7: 1-15.

(3) Ranganathan, M., et al. The effects of cannabinoids on serum cortisol and prolactin in humans. Psychopharmacology. 2009;203:737-44.

(4) Cservenka, A., et al. Cannabis use and hypothalamic-pituitary-adrenal axis functioning in humans. Front. Psychiatry 2018;9:472.

(5) Malhotra, S., et al. Effect of cannabis use on thyroid function and autoimmunity. Thyroid. 2017;27:167-73.

(6) Hillard, C. J., et al. The effects of Δ9-Tetrahydrocannabinol on serum thyrotropin levels in the rat. 1984;20:547-50.

(7) Walker, O. S., et al. The role of the endocannabinoid system in female reproductive tissue. J Ovarian Res. 2019;12:3.

(8) Brown, T. T., Dobs, A. S. Endocrine effects of marijuana. J Clin Pharmacol. 2002;42:90S-96S.

(9) Liu, X., Herbison, A. E. Dopamine regulation of gonadotropin-releasing hormone excitability in male and female mice. 20113;154O:340-50.

(10) Kolodny, R. C., et al. Depression of plasma testosterone levels after chronic intensive marihuana use. N Engl J Med. 1974;290:872-4.

(11) Gundersen, T. D., et al. Association between use of cannabis and male reproductive hormones and semen quality: a study among 1215 healthy young men. Am J Epidemiol. 2015;182:473-81.

(12) Velez, M. L., et al. Cannabis use disorders during perinatal period. In: cannabis use disorders. 2018:177-188.