Medicina tradicional chinesa e cannabis: estímulo duplo para o sistema endocanabinoide

Durante milhares de anos, a medicina chinesa incorporou o uso de cannabis e acupuntura. De fato, hoje conseguimos vislumbrar, pela ótica da ciência ocidental, que existe uma sinergia importante entre as técnicas de acupuntura e moxabustão usadas na medicina tradicional chinesa (MTC), traduzindo-se de uma maneira bastante promissora para manutenção da homeostase humana e também animal.

Existem registros milenares de utilização das duas técnicas terapêuticas juntas para busca de alívio de sintomas e mesmo cura. Esses registros de uso pelos médicos chineses, baseados apenas em observações práticas e teorias pouco aceitas pela medicina ocidental, começam a ter sua possível sinergia compreendida pelos padrões “científicos” atuais. A estimulação, ou melhor, a participação na modulação de nosso sistema endocanabinoide (SEC) parece não ser exclusividade dos canabinoides, sendo possível também observar conexões com a acupuntura médica.

Em nosso SEC, temos uma variedade de receptores, dos quais os principais são o CB1 e o CB2, que estão presentes na maioria de nossos órgãos e sistemas. O CB1 é mais frequente no cérebro dos mamíferos e o CB2 menos abundante no cérebro e mais disponível no sistema nervoso periférico, tecidos e órgãos.

Sistema endocabaninoide: a descoberta

A descoberta do sistema endocanabinoide foi feita relativamente há pouco tempo. Na década de 90, o cientista israelense Dr. Raphael Mechoulam e nosso querido professor Elisaldo Carlini, falecido em 16 de setembro de 2020, que prestou ao Dr. Mechoulam importantes colaborações subsequentes, descreveram a presença dos receptores CB1 e CB2 e teorizaram sobre a existência e mecanismos de ação de substâncias produzidas pelo próprio corpo, as quais chamaram de endocanabinoides.

Existem dois bons exemplos dessas moléculas liberadas sob demanda nas nossas fendas sinápticas: a anandamida (ou AEA – N-araquidonoil etalonamina), que significa substância do prazer em sânscrito e a 2-AG (2-araquidonoil glicerol).

Em 1992, na Universidade Hebraica de Jerusalém, com base no trabalho do Dr. Mechoulam, o Dr. Lumir Hanus, juntamente com o pesquisador americano Dr. William Devane, descreveu o endocanabinoide anandamida. A mesma equipe descobriu mais tarde um segundo endocanabinoide, o 2-araquidonoil glicerol (2-AG), passando depois a revelar a existência de outros endocanabinoides menos conhecidos: homo-gama-lineleoul etanolamida, docosatetraenul etanolamida (DEA) e éter de noladina (2-AGE). Incluindo a N-araquidonildopamina (NADA), há mais de uma dezena de endocanabinoides identificados, juntamente com outro grupo de receptores de proteínas acopladas que interagem com eles.

Além das descobertas relativas aos endocanabinoides, os dois pesquisadores realizaram vários experimentos muito bem conduzidos e registrados com várias cepas diferentes de cannabis. Em um experimento muito conhecido, o Dr. Mechoulam convidou vários casais para uma festa em sua casa, onde foi servido, sem que os convidados soubessem, um bolo contendo alto teor de THC. No decorrer da noite, ele pode observar que alguns indivíduos ficavam eufóricos e despertavam a falar profusamente, enquanto outros ficavam introspectivos e calmos até demais. Com base nessas observações, o professor Mechoulam concluiu que as pessoas apresentavam efeitos diferentes ao THC e também que esses efeitos poderiam ser dose-dependentes. Foi ele quem primeiro descreveu a molécula do THC.

Já o Dr. Carlini passou por muitas dificuldades para levar à frente suas pesquisas com canabinoides. O cultivo da planta era proibido em nosso País, assim como seu processamento e distribuição. Tudo isso era considerado crime. Por várias vezes, ele teve seu laboratório e até sua casa invadidos pela polícia à procura de cannabis. Todo esse estado de proibição, naquela época, somente atrasou o desenvolvimento do conhecimento científico sobre o potencial terapêutico da planta, o qual já era de certa forma conhecido e utilizado pelos colegas chineses nos primórdios da medicina tradicional chinesa.

Atualmente, sabemos que existem muitos outros tipos de receptores e alvos no sistema endocanabinoide, como demonstrado na tabela abaixo.Sistema endocanabinoide - efeitos da acupuntura e do uso de cannabis

O sistema endocanabinoide, que hoje é conhecido como o quarto maior sistema regulatório do corpo, participa na modulação do sistema imunológico, na sensação de dor, na regulação do humor, na inflamação, nas respostas do sistema imunológico, no metabolismo geral e até no apetite. Ele está presente desde o 16° dia da gestação e apresenta-se intimamente envolvido com o desenvolvimento do feto e seu sistema nervoso central.

O SEC desenvolve-se nos sistemas tegumentar (pele, cabelo e unhas), circulatório, linfático, endócrino, musculoesquelético, nervoso central e periférico, respiratório e reprodutor.

Uso da cannabis na medicina tradicional chinesa

Em chinês, a cannabis é conhecida por “ma”, o que significa “dormência” e “ajuda”, além de ser a palavra que designa a planta, a qual teve sua primeira descrição conhecida em 2.737 a.C., em um livro atribuído ao Imperador Vermelho, chamado de Shen Nung. Nesse livro, que é um dos fundamentos da medicina tradicional chinesa, o autor atribui efeitos curativos ao chá com cannabis e também descreve muitas outras ervas utilizadas para fins terapêuticos.

Já por volta de 2.698 a.C., o famoso Imperador Amarelo, Huang-Ti, também descreveu com mais detalhes o uso da cannabis, na transcrição de suas conversas com seu conselheiro para assuntos de saúde, em um compêndio de medicina chinesa chamado Nei Ching, que ficou conhecido como o primeiro guia médico existente. Outro registro que temos sobre a utilização da cannabis aconteceu entre 140 – 208 d.C., feito por Hua Tuo, o qual descreve o uso com finalidade analgésica juntamente com a aplicação de agulhas de acupuntura, inventadas ou aperfeiçoadas por ele mesmo. As duas opções terapêuticas foram utilizadas, na analgesia, durante um procedimento cirúrgico.

Um dos conceitos básicos da acupuntura é o entendimento de que deve existir um fluxo constante de “energia” ou “chi”, que flui através de meridianos pela pele e órgãos do corpo para haver homeostase. Se esse fluxo de “chi” é interrompido ou modificado por alguma causa interna ou externa, com consequente desequilíbrio, haverá condições para desenvolvimento de doenças e principalmente de dor.

A colocação de agulhas em pontos precisos localizados nesses meridianos tem a função de tentar restabelecer o fluxo normal do chi, devolvendo a homeostase ao organismo.

Já existem várias publicações demonstrando as vias pelas quais seguem os impulsos nervosos provocados pelas agulhas de acupuntura. Esses impulsos percorrem as vias nervosas desde os receptores na derme até o corno posterior da medula, neurônio primário, neurônio secundário e finalmente na área do cérebro correspondente ao dermátomo (ou miótomo ou viscerótomo) onde a agulha foi posicionada. Além das vias ascendentes e descendentes, também conhecemos os tipos de fibras que carregam os vários impulsos e como estimular a resposta desejada.

Sempre que realizamos um tratamento com acupuntura, sabemos que não estamos tratando apenas o local comprometido do corpo. Todas as reações dos sistemas de defesa (imunológico, simpático e parassimpático, vasodilatador e vasoconstritor, musculoesquelético, neuroendócrino e outros) entram em jogo e precisam ser coordenadas entre si, sempre buscando a homeostase geral. Mesmo em casos de patologias que se originam a partir de má absorção de vitaminas e cuja causa é algum desequilíbrio no sistema nervoso, podem-se obter bons resultados por meio da acupuntura, sem o uso concomitante de suplementação vitamínica.

De acordo com o livro Acupuntura clássica chinesa, do Dr. Tom Sintan Wen, os mecanismos de ação da acupuntura são vários:1 – Alteração da circulação sanguínea regional através de microdilatações, sanando o espasmo e diminuindo a dor e a inflamação, 2 – Liberação de hormônios como o cortisol e endorfinas, promovendo analgesia, 3 – Regulação interna de sistemas orgânicos para oferecer resistência à doença. Pode haver um possível estímulo do hipotálamo, da hipófise e de outras glândulas que atuam na recuperação, 4 – Regulação e normalização das funções orgânicas. As diversas funções no organismo humano são inter-relacionadas. Se há algum distúrbio alterando esse inter-relacionamento, ocorre a manifestação de sintomas e a doença se estabelece. O estímulo pela acupuntura pode dinamizar e restabelecer os relacionamentos anteriores e apressar a recuperação e 5 – Homeostasia do metabolismo de órgãos diversos, recuperando condições de prostração e deficiências.

Assim como a acupuntura, a cannabis estimula o organismo através de suas ligações em receptores específicos, incluindo de forma intrigante o papel do sistema endocanabinoide em toda essa modulação.

Portanto, estamos trilhando o caminho do conhecimento dentro dos limites da ciência ocidental, que fundamenta não só o mecanismo de ação de cada terapia em discussão, mas sim sua integração e possíveis sinergias.

Desde as primeiras pesquisas realizadas na década de 1970 sobre o que havia de científico no mecanismo de ação da acupuntura, foram constatados os seus efeitos analgésicos. A aplicação de agulhas de acupuntura em pontos específicos dos meridianos do corpo na pele estimula a produção de “opioides endógenos”, ou seja, substâncias que reduzem a dor e são produzidas pelo próprio organismo. Um ótimo exemplo é a redução da dor, quase de forma imediata, quando tratamos uma crise de enxaqueca, um espasmo muscular ou mesmo uma dor de origem inflamatória.

Também existe uma relação direta entre os “endo-opioides” e os endocanabinoides. Através de sinalização química entre os dois, evidências sugerem que a liberação dos endocanabinoides, ou o uso de fitocanabinoides, pode aumentar de forma significativa a produção de “endo-opiáceos”, criando assim uma redução geral da dor e diminuição da resposta inflamatória, considerada como um dos desencadeadores principais de doenças crônicas e outras condições no organismo.

Na obra sobre fitoterapia chinesa, a magnum opus Bencao Gangmu, de Li Shizhen, existe uma seção sobre a flor de cannabis MA PO. De acordo com Li, a ma po é picante e sem toxina e também amarga e ligeiramente quente. Trata 120 tipos de ventos, incluindo escurecimento do corpo inteiro com coceira intensa, todos os tipos de estagnação e bloqueio do sangue do vento, amenorreia, furúnculos devido a trauma (raramente) e vômitos. Ele recomenda: “para tratar o vento com dormência, faça pílulas de ma po, cao wu e mel e tome com caldo de osso”. Li conta que diziam que médicos habilidosos podiam usar ma po com ginseng para prever o futuro. Ela também trata a amnésia. Esta era a fórmula número um para amnésia: “no sétimo dia do sétimo mês, pegue um sheng de ma po e adicione três liang de ginseng, triture até formar pó e vapor… o paciente se lembrará de tudo das quatro direções e saberá tudo de novo no mundo”. Li diz que isso é um exagero.

Uma fórmula à base de plantas usada com frequência na medicina tradicional chinesa, run chang wan, contém semente de cannabis. A semente de cannabis huo ma ren é doce, neutra e tóxica. Ativa o estômago, o baço e o intestino grosso, nutrindo o yin e lubrificando os intestinos. Além de constipação senil, é usada em quantidades generosas (até 1,5 liang) para controlar eficazmente a hipertensão.

Embora não haja menção sobre fumar cannabis no texto antigo, ela é usada para tratar náuseas e amnésia. Isso apoiaria a utilização em náuseas induzidas por HIV e quimioterapia, bem como no tratamento de transtornos mentais. O uso médico de preparações de cannabis também está muito bem documentado nos livros didáticos de todos os farmacêuticos e médicos do início do século XX, como o Wilcox’s Materia Medica and Therapeutics.

Sinergia entre acupuntura e cannabis medicinal

E qual o significado dessa sinergia entre a acupuntura e a cannabis? Essa parceria pode render muitos frutos para diversos tratamentos das mais variadas patologias.

Na prática, a acupuntura estimula o funcionamento dos sistemas regulatórios principais do corpo, o que talvez os chineses antigos entenderam por “chi”. A consequência clínica é o melhor funcionamento das funções corporais prejudicadas, estimulando o sistema endocanabinoide para que trabalhe em sinergia nos mecanismos de homeostase. Pode ser que por isso mesmo é que as duas formas de tratamento são tão eficazes em controlar a dor.

Por essa razão, é grande a probabilidade de que, no futuro, a pesquisa clínica examine não apenas como a acupuntura estimula o sistema endocanabinoide, mas como a própria cannabis medicinal pode funcionar para manter ainda mais essa estimulação, mesmo entre os tratamentos com as agulhas, para retornar sistemas em desequilíbrio à saúde ideal.

Existem áreas comuns nas quais os tratamentos com acupuntura e cannabis podem atuar com eficácia, como por exemplo vício, depressão, ansiedade, insônia, dores crônicas, espasticidades musculares e doenças inflamatórias, entre tantas outras. E, neste momento, já estamos acumulando experiência com vários pacientes que se beneficiam do uso simultâneo das duas técnicas.

Se considerarmos que, através da estimulação pela acupuntura e/ou pela cannabis, o corpo está enviando sinais de “bem-estar” e ativando sua própria forma endógena e natural (e não tóxica) de opioides e canabinoides para restaurar sistemas internos danificados, podemos avaliar implicações positivas para várias condições de danos à saúde.

No Ocidente, isso pode ter uma consequência bastante significativa, trazendo a acupuntura como uma parte importante e melhor aceita pelos sistemas médicos, ao combiná-la com o uso da cannabis medicinal, a qual está em processo de legalização rapidamente nas economias e países por todo o mundo.

De um outro ponto de vista, a sinergia da acupuntura com a cannabis medicinal pode ter um significado para o bem-estar preventivo a longo prazo de maneira bastante positiva. Com o aumento da expectativa de vida e envelhecimento da população, governos e seguradoras estão combatendo de todas as formas os custos de saúde crescentes e a incorporação da acupuntura em combinação com o uso medicinal da cannabis pode ajudar a reduzir a velocidade de crescimento desses custos no geral.

Existe a necessidade primordial de desenharmos e realizarmos estudos clínicos estruturados que demonstrem a sinergia entre cannabis medicinal e acupuntura. Cabe a nós, médicos com formação e experiência integrativas, juntamente com nossos colegas da medicina tradicional chinesa, elucidar essas questões e propagar o conhecimento.


Dr. Wellington Briques – Médico e Director Global Medical Affairs da Canopy Growth Corporation.