Manifestação oral da intolerância à lactose

A intolerância à lactose tem sido diagnosticada com muita frequência nas últimas décadas, geralmente relacionada a distúrbios no aparelho digestivo. No entanto, sinais e sintomas orais da intolerância à lactose são pouco registrados pela literatura científica, seja no âmbito médico ou odontológico. O relato de caso descrito neste artigo teve como objetivo levantar a possibilidade de associação entre a presença de aftose oral recorrente e a intolerância à lactose, em paciente adulto jovem do sexo masculino, em que ocorreu a remissão do quadro após ajuste nutricional.

Como ocorre e quais são os sintomas

O leite possui naturalmente a lactose, que é um açúcar, formado no complexo de Golgi, que está presente nas glândulas mamárias das fêmeas. Sua digestão só é possível através da enzima lactase, que se encontra na mucosa do intestino delgado. Naturalmente, há um declínio programado e irreversível da produção dessa enzima, denominado de hipolactasia. Isso ocorre na maioria da população mundial. Os mecanismos que causam esse declínio ainda são desconhecidos, sabendo-se apenas da influência genética de diferentes etnias.

A intolerância à lactose (IL) representa um quadro clínico caracterizado por dor abdominal, cólica, inchaço, flatulência, náusea ou diarreia, que ocorre devido à ingestão de alimentos que contêm lactose. Essa experiência depende da quantidade de lactose ingerida e dos alimentos ou componentes que acompanham, da concentração de lactase que existe na mucosa intestinal e da sensibilidade individual da pessoa quanto a essa experiência e aos sintomas.

Quando o indivíduo consome leite ou derivados e possui hipolactasia, outros sintomas podem ser referidos, como vômitos, cefaleia, vertigem, perda de concentração, dificuldade de memória de curto prazo, dor muscular, alergias, úlceras orais, arritmia cardíaca, dor de garganta e aumento da frequência de micção. Normalmente, esses sintomas se iniciam por volta de 30 minutos a duas horas após o consumo de algum alimento contendo lactose.

Existem três tipos de intolerância à lactose: congênita, primária e secundária. A congênita é provocada pela ausência completa de lactase jejunal ao longo de toda a vida de um indivíduo, sendo detectada desde o nascimento da criança. A primária pode se desenvolver em qualquer idade, sendo provocada pelo decaimento da concentração de lactase no organismo humano, geneticamente programado (lactase não persistente), desde a primeira infância até a fase adulta, acarretando em dificuldades na hidrólise da lactose. A secundária ocorre devido à presença de lesões ou doenças intestinais, sendo transitória e reversível.

Apesar das limitações dos estudos epidemiológicos, com prevalências muito variadas de intolerância à lactose e alergias à proteína do leite de vaca (quadro para uma diferenciação maior), a IL representa um problema relevante para a saúde pública mundial, com a possibilidade de implicações ao longo da vida e de um início precoce, esforços para a prevenção, o diagnóstico, o manejo das reações de hipersensibilidade imediatas e o tratamento e prevenção da restrição de crescimento. Estima-se que 50% da população apresente intolerância à lactose, principalmente os adultos no Brasil.

Manifestações orais como possível indício de IL

Manifestações orais apresentam grande relevância no diagnóstico de condições sistêmicas em saúde e o cirurgião-dentista tem a oportunidade da constatação de alterações e encaminhamentos necessários. No contexto da intolerância à lactose, entretanto, ainda são poucos esses registros, particularmente direcionados a uma maior prevalência de cárie dentária em crianças com alergia à proteína do leite de vaca e intolerância à lactose.

A estomatite aftosa recorrente  é a condição ulcerativa oral aguda mais frequentemente observada, seja na sua forma leve, grave ou complexa. A aftose representa uma condição reativa, onde as lesões podem apresentar-se na mucosa, em uma variedade de condições, aqui com a ênfase para as aftas orais. Como a boca ou cavidade oral representa o começo do trato gastrointestinal, existe correlação possível entre eles que deve ser  avaliada cuidadosamente, estabelecendo-se um diagnóstico preciso, classificação adequada e reconhecimento de fatores irritativos e doenças associadas, com um prognóstico favorável em geral.

O objetivo do estudo a seguir relatado foi descrever o caso de paciente adulto jovem com aftose oral possivelmente associada à intolerância à lactose.

Relato de caso

Paciente com 26 anos de idade, do sexo masculino, caucasiano, brasileiro e casado, foi encaminhado do Hospital das Clínicas  da Universidade Federal de Pernambuco, em Recife (HC-UFPE) para o Centro de Especialidades Odontológicas (CEO) da mesma instituição de ensino superior, apresentando lesões persistentes na mucosa oral (Figura 1).

Intolerância à lactose - afta oral
Figura 1 – Lesões persistentes na mucosa oral do lábio superior, ao exame inicial do paciente no CEO (Centro de Especialidades Odontológicas).

Enquanto o paciente estava sendo acompanhado no Hospital das Clínicas – UFPE, foram realizados exames, a fim de diagnosticar essas lesões, tais quais hemograma, colonoscopia, endoscopia e teste de HIV. Os resultados deram negativo para HIV e não foi encontrada anormalidade nos demais exames. Ao dar entrada no CEO-UFPE, submeteu-se a exame clínico, em que foi detectada uma lesão esbranquiçada, com dor moderada, bem delimitada, de forma redonda e com 4 mm de diâmetro, localizada no lábio superior, compatível com uma lesão aftosa (Figura 1). Partindo-se da hipótese inicial de ser uma aftose oral recorrente, investigaram-se os hábitos alimentares do paciente.

Na história médica, não foram relatados diabetes ou hipertensão. Praticava exercícios e sua alimentação matinal era composta principalmente de leite achocolatado e pão. Seu almoço era composto por legumes, verduras, proteínas e suco de laranja industrializado e, no jantar, consumia suco de laranja industrializado, derivados de milho e mandioca. O paciente também relatou que o aparecimento das lesões havia tido início há oito meses e que cada lesão durava em média sete dias para cicatrizar.

Ao exame clínico, foram identificadas regiões eritematosas bem delimitadas e em diferentes regiões da cavidade oral, com uma pequena área esbranquiçada no centro da lesão, mas sem o aspecto de afta (Figura 2). Como houve uma melhora no aspecto das lesões, a hipótese era de que os alimentos ácidos, em contato com a região eritematosa, causavam as ulcerações, potencializando o quadro e dificultando um possível diagnóstico.

Figura 2 – Regiões eritematosas delimitadas em áreas diferentes da cavidade oral.

Seguiu-se com a mesma linha de raciocínio, acreditando que esse problema era decorrente de um fator sistêmico, causado por alguma alergia relacionada à alimentação que estava se manifestando na cavidade oral. Dessa forma, revisaram-se os hábitos alimentares do paciente, que continuou com a dieta rica em leite no café da manhã, com uma média de 750 ml. Houve então a suposição de que o problema teria relação direta com o leite, solicitando-se um exame de sensibilidade à lactose (Figura 3).

Figura 3 – Exame de sensibilidade à lactose.

O resultado foi positivo para sensibilidade à lactose, mostrando uma pequena elevação do nível de glicose: 3,5 mg/dl em 30 min, 6,4 mg/dl em 60 min e 2,4 mg/dl em 90 min, respectivamente. Com o resultado dos exames, o paciente foi encaminhado ao gastroenterologista e ao nutricionista, para dar continuidade ao tratamento especializado.

Considerações finais

Após a mudança da dieta, com restrição à lactose, o paciente não apresentou mais aftas recorrentes, estando ainda em acompanhamento.

A solicitação de exames complementares, em especial o teste de intolerância à lactose, foi fundamental para a conclusão do diagnóstico.

Existe a necessidade de estudos complementares que forneçam evidências científicas robustas sobre correlações possíveis de manifestações orais da intolerância à lactose.


Leonardo Cavalcanti Bezerra dos Santos – CD-MS-PhD, Prof. Adjunto do Departamento de Clínica e Odontologia Preventiva da UFPE (Universidade Federal de Pernambuco) e especialista em cirurgia bucomaxilofacial e ortopedia funcional dos maxilares.

Luciana de Barros Correia Fontes – CD-MS-PhD, Profa. Adjunta do Departamento de Clínica e Odontologia Preventiva da UFPE, com residência em odontologia holística, mestrado e doutorado em odontopediatria e especialização em ortodontia.

Adriano Campos dos Santos – Graduado em odontologia e biologia.