O Ayurveda é um sistema científico de medicina baseado em diretrizes clínicas expressas em textos antigos, chamados de Samhitas e Nighantus, que passaram por constante revisão de pares e até hoje são aplicados para tratamento e prevenção de doenças crônicas em diversas partes do mundo.
Na Índia, seu país de origem, a prática é respeitada e levada a sério. Dentro da estrutura governamental, existe o Ministry of Ayush (Ministério do Ayurveda, Yoga e Naturopatia, Unani, Siddha e Homeopatia), órgão responsável pela pesquisa e propagação de sistemas de medicina complementares.
O Ayurveda é reconhecido e recomendado pela Organização Mundial de Saúde (OMS) pela sua eficácia comprovada. No Brasil, faz parte das práticas integrativas e complementares em saúde, também reconhecidas pelo Ministério da Saúde.
Dentro dos textos clássicos, sendo o mais antigo escrito há mais de três mil anos, são mencionadas as três bases fundamentais da saúde humana, chamadas em sânscrito de trayopastambha: alimentação (ahara), sono (nidra) e uma vida de acordo com as leis da natureza (brahmacharya).
Com o objetivo de tornar esse conhecimento mais acessível e prático para as pessoas, criei o sistema dos 4 Pilares da Saúde, no qual considero alimentação e sono, seguindo a lógica tradicional, mas substituí brahmacharya por dois pilares: movimento e silêncio.
Pelo fato de ser uma ciência que busca a saúde integral dos pacientes, o Ayurveda dialoga com uma prática que vem atraindo diversos médicos modernos a olhar para além de suas especialidades: a medicina integrativa.
Neste artigo, abordaremos com mais atenção a alimentação (ahara), primeiro elemento para uma saúde equilibrada de acordo com o conhecimento ayurvédico.
Alimentação e digestão de acordo com Samhitas
Para além dos diversos conceitos básicos que definem o Ayurveda, temos especificações claras nos textos clássicos sobre a alimentação, com riqueza de detalhes e descrições pormenorizadas sobre os efeitos dos alimentos e substâncias na saúde humana.
Apesar da percepção de que o Ayurveda sugere ou prescreve ativamente uma dieta vegetariana, os clássicos ayurvédicos realizam, em suas recomendações, citações sobre a utilização de diversos tipos de carnes para consumo cotidiano e também para tratamentos. Um dos fatores que, na prática atual, distancia o Ayurveda do consumo de carne e derivados de origem animal é a forma como os animais são criados. Se um animal não tem saúde ou se não foi criado como deveria, de acordo com sua própria natureza alimentar, ele não serve para o consumo humano, de acordo com os Samhitas.
Não precisamos ir longe para ver que as condições a que os animais são submetidos atualmente na indústria alimentícia não estão dentro de uma lógica saudável. A utilização de antibióticos na agropecuária é um grande exemplo. Para não serem contaminados e não contaminarem os consumidores com bactérias diversas, esses animais acabam sendo medicados com variados antibióticos de forma preventiva. Cerca de 80% dos antibióticos produzidos no mundo hoje em dia têm como destino a aplicação em animais criados para consumo humano. Essa prática não apenas potencialmente gera desequilíbrios metabólicos nos próprios animais, mas também está na base da criação de superbactérias resistentes a esses medicamentos.
O Caraka Samhita aponta que para uma boa alimentação devemos consumir aqueles alimentos que podem ser considerados saudáveis (hita, em sânscrito) e deixar de lado aqueles que não são (ahita).
Os alimentos podem possuir seis sabores identificáveis pela nossa língua: doce, azedo, salgado, amargo, picante e adstringente (respectivamente em sânscrito: madhura, amla, lavana, tikta, katu e kashaya) e 20 qualidades (guna), podendo ser pesados, leves, quentes e frios, entre outras.
Os textos clássicos debruçam-se com atenção e cuidado sobre as características e qualidades dos alimentos, pois eles são essenciais não apenas para uma vida com bons hábitos, mas também para a própria existência da vida. De acordo com o capítulo 27 do Caraka Samhita Sutrasthana: “Aquelas dietas e bebidas cuja coloração, odor, sabor e tato são agradáveis aos sentidos e conduzem ao estado de saúde, se ingeridas de acordo com as regras, representam, na verdade, a própria vida dos seres vivos”.
Para além do que comemos, devemos nos atentar para a forma como digerimos. De acordo com Sushruta Samhita, outro livro clássico ayurvédico, ao longo do período no qual os alimentos são digeridos, nosso corpo consegue absorver os nutrientes e realizar a conversão de elementos externos para tecidos corporais.
Toda vez que ingerimos um alimento, ele precisa ser devidamente absorvido, deixando de ser o que era para fazer parte de nós. Assim, a máxima “você é o que você come” deve ser revista. Entre comer e ser, existe um processo fundamental chamado digestão. Você não é simplesmente o que come, mas sim o que digere e absorve daquilo que come. Não adianta você comer os melhores alimentos se não consegue digerir e absorver tudo o que eles têm a oferecer. No Ayurveda, esse processo de transformação do alimento em tecidos corporais chama-se “agni”.
Podemos usar essa compreensão de modo estrito aos alimentos, que são os elementos substanciais para nossa vitalidade física propriamente dita, mas também podemos ampliá-la para todos os elementos que fazem parte do nosso dia a dia, como, por exemplo, as emoções e as relações. Quando falamos “eu estou entalado com aquilo que você me disse” ou “ainda não digeri bem aquele sentimento”, também estamos nos referindo à digestão (agni) em sentido amplo.
A digestão é essencial para nossa vida. A tradução literal do sânscrito para agni é fogo. Essa imagem é utilizada no Ayurveda porque o processo digestivo é semelhante ao do fogo. Se tivermos uma fogueira com fogo baixo e colocarmos nela muitas madeiras, nós a abafamos e o fogo se apaga. Ao contrário, se tivermos um fogo alto, aquela madeira será consumida por ele. Se o fogo estiver muito alto, corremos o risco dele se alastrar para onde não deveria. Esse processo também ocorre, de forma alegórica, com a nossa digestão.
Podemos, por meio da escolha de bons alimentos e da compreensão do funcionamento de nosso agni, ampliar as possibilidades de absorção de nutrientes do nosso corpo, fazendo com que a alimentação seja nosso principal remédio, para nos mantermos saudáveis ou para curar alguns tipos de doenças, como obesidade, refluxo gástrico e problemas no trato intestinal, e evitar as patologias crônicas que têm nos maus hábitos sua razão de existir.
O alimento mal digerido é chamado de “ama” em sânscrito e basicamente representa as toxinas geradas pelos alimentos que não foram processados adequadamente pelo nosso corpo. Essas toxinas provocam uma série de problemas e a solução para elas é relativamente simples: compreender a qualidade e a quantidade de alimento que consumimos. Mais de 80% dos pacientes que eu vejo na minha prática clínica observam melhoras significativas em suas reclamações ao escolherem melhor os alimentos e comerem de acordo com sua fome, o que ajuda a equilibrar a capacidade digestiva e adequar a quantidade ingerida.
Os 4 Pilares da Saúde
Como dito anteriormente, os 4 Pilares da Saúde são uma adaptação prática do tripé clássico ayurvédico, simplificando o entendimento de brahmacharya em dois pilares: movimento e silêncio.
Esses quatro pilares fazem parte da nossa existência, ou seja, todos nós comemos, precisamos nos exercitar, dormir e fazer silêncio para conseguir ouvir quem verdadeiramente somos.
Quer dizer, para mantermos bons hábitos, além da alimentação, devemos nos atentar a esses outros três elementos. São eles, conjuntamente, que mantêm nosso equilíbrio e nos proporcionam mais saúde.
O sono é extremamente importante para nossa recuperação após o período diurno, no qual precisamos utilizar nossas energias. Para termos um sono bom é necessária uma entrega adequada e a organização de um ambiente propício para esse momento de recolhimento. A utilização de aparelhos eletrônicos, por exemplo, deve ser limitada antes de dormir e ao acordar. Pessoas com problemas de sono precisam evitar o uso de eletrônicos pelo menos duas horas antes de dormir. Se essa proposta lhe parece radical, vale a pena observar que a maioria das pessoas fica acordada entre 16 e 17 horas por dia. Considerar radical evitar eletrônicos por duas dessas 16 horas pode servir para demonstrar como esse hábito, aparentemente inofensivo, talvez esteja mais próximo a um vício.
O movimento faz parte da natureza do corpo humano. Essa prática pode, a princípio, nos causar desconforto, principalmente em razão do sedentarismo extremo que caracteriza a maioria das sociedades atualmente. Uma rotina saudável de movimentos nos ajuda a manter tanto a saúde física quanto mental. Somos adaptados, em especial nossa coluna vertebral e nossas articulações, a realizar uma grande variedade de movimentos complexos. Essa habilidade e essa propensão, caso ignoradas, podem gerar uma deterioração da saúde e uma perda de mobilidade.
Por fim, o silêncio é o pilar central de autoconhecimento. A partir do silêncio, conseguimos centrar nossa mente, temos concentração, desenvolvemos nossa memória e reconhecemos quem realmente somos e o que buscamos. O processo do silêncio pode ser entendido como uma conexão com aquilo que o Ayurveda chama de “atma” (o que nós somos). A meditação é uma boa forma de exercitar esse pilar da saúde e possui benefícios notáveis cientificamente comprovados. Diversos estudos apontam que, além de reduzir o estresse e nos relaxar, a meditação provoca alterações no cérebro, como o aumento das conexões entre nossos neurônios.
O Ayurveda oferece-nos ferramentas práticas para a transformação de nossa saúde por meio de nossos hábitos, proporcionando o que precisamos para viver uma vida que caminha para a felicidade e distancia-se do sofrimento e das dores.
Como seu próprio nome diz, o Ayurveda é a ciência da vida (ayus significa vida e veda significa conhecimento, em sânscrito). Por se tratar de um sistema tão complexo, seus procedimentos também trazem consigo essa complexidade. Se você tiver interesse, procure mais informações sobre a temática. Hoje em dia, há muito conhecimento de qualidade sendo dividido de forma gratuita online. Este artigo é apenas uma porta de entrada para esse espaço científico tradicional que ainda precisa ser bastante desbravado pelos brasileiros e pelos falantes da língua portuguesa em todo o mundo.
Vd. Matheus Macêdo – Fundador do Vida Veda. Mora há 7 anos na Índia e foi o primeiro brasileiro a concluir o BAMS (Bachelor in Ayurveda, Medicine and Surgery). Faz parte da Ayurveda Academy, de Bangalore e fez residências clínicas no Hospital Vaidyagrama, em Coimbatore e em diversas universidades na Índia, como a SDM Hassan, assim como nos Estados Unidos, na TrueNorth Health Clinic, em Santa Rosa, Califórnia. No Brasil, busca trazer o conhecimento do Ayurveda baseado nos Samhitas, tanto em sessões individuais quanto em grupo.