Como estabelecer prioridades na vida médica – Parte I

Imagine um cenário de parada cardiorrespiratória (PCR) em que é necessário usar o treinamento do ACLS (Suporte Avançado de Vida Cardiovascular) e no qual o paciente está em situação de morte iminente, seja por uma insuficiência respiratória, por uma arritmia cardíaca grave ou devido a uma parada propriamente dita. Naquele momento, você se recorda que o paciente tinha uma queixa de parestesia crônica em ambos os pés (alteração de sensibilidade cutânea de origem neurológica). O que fazer? Se você tentasse realizar o exame neurológico no paciente naquele momento, seria uma conduta médica inadequada: o correto é garantir o funcionamento da via aérea, pressão arterial, frequência cardíaca, etc. Isso porque, nesse protocolo de atendimento a uma PCR já bem estabelecido há alguns anos, existe claramente uma ordem de prioridades e é precisamente por esse motivo que ele é bem-sucedido.

Em outras situações médicas, esse princípio se mantém. Numa enfermaria, há casos que exigem maior atenção do que outros. Entretanto, se você não tiver critérios objetivos, simplesmente vai de acordo “ao sabor dos ventos”, dando atenção ao paciente que é mais impertinente, por exemplo… A experiência mostra que o paciente que menos cobra pode estar em delirium hipoativo ou com um quadro álgico ou incômodo que não expressa tanto devido ao seu perfil psicológico.

Na vida médica é necessário ter critérios claros, tanto em relação a parâmetros técnicos como também no direcionamento da vida profissional. Caso contrário, o que acontece é que as situações vão se moldando de uma forma que não almejávamos. Quando me refiro à vida médica, é preciso incluir também a vida pessoal, pois o médico não é só um “CRM”, nem um mero carimbador ou uma pessoa jurídica. Ele é um profissional no sentido amplo da palavra: uma pessoa real, concreta, que tem seus interesses, família, preocupações pessoais… É a mesma pessoa, o mesmo coração.

Por isso, a pergunta sobre o que é prioridade deve surgir não só numa emergência médica, mas também na condução dos rumos profissionais e pessoais. Afinal, todos conhecem um excelente profissional, com um “curriculum lattes” maravilhoso, mas no seu lar as coisas não estão tão bem. Isso seria a realização que todos buscam? Da mesma maneira que cuidamos da saúde dos outros, devemos cuidar da nossa: o médico também pode estar um pouco acima do peso, não fazer atividade física, não dormir e nem se alimentar bem. Também pode chegar ao limite da exaustão com o cada vez mais frequente burnout. Nesse ritmo, fica claro perceber então que todos os âmbitos da vida pessoal irão influenciar a vida profissional também.

A necessidade do médico se formar em âmbitos também não técnicos foi se mostrando cada vez mais evidente quando me formei, há 13 anos. Comecei a trabalhar no hospital e percebi que eu sabia os assuntos técnicos, tinha os conhecimentos da área, mas a aplicação deles na prática demandava ainda outras habilidades, como por exemplo saber o que é importante para fazer em cada momento. Afinal, são muitas as variáveis para se lidar: os exames da rotina laboratorial para checar, o atendimento ao paciente, a prescrição de medicamentos e os procedimentos para fazer, o round para alinhar os casos com outros médicos do setor, a conversa com a família do paciente, as opiniões trocadas com os pareceristas de outras especialidades, etc… Eu precisava me organizar para atender a todas essas demandas porque, apesar de o aprendizado do internato ou do Harrison ser fundamental, era necessário haver uma lógica operacional, senão, todo aquele conhecimento poderia não ser útil na prática, se estivesse confuso e desordenado.

Então, tive a ideia de fazer um pequeno checklist. Muitos já assistiram ao cirurgião Atul Gawande, de Harvard, fazendo a palestra do TED Talks “Como curar a medicina?”. Ele implementou um programa de redução de mortalidade pré-operatória que foi adotado no mundo inteiro, baseado simplesmente em listas de procedimentos médicos que sempre deveriam ser seguidos para garantir qualidade e segurança. O seu método teve mais efeito do que outras propostas que meramente usavam antibióticos adequados ou qualquer eventual aperfeiçoamento de alguma técnica cirúrgica. Naquele meu primeiro ano de formado, montei também um checklist para as visitas diárias na enfermaria, que incluía os procedimentos descritos a seguir.

1 – Visita ao paciente: conversar, coletar suas solicitações, fazer o exame físico e avaliar sondas, drenos e acessos venosos.

2 – Últimas 24 horas: sinais vitais e eventuais intercorrências ou procedimentos realizados.

3 – Checagem dos exames da rotina diária (laboratório, RX de tórax, etc.).

4 – Prescrição e descrição dos próximos passos no diagnóstico ou tratamento daquele paciente.

5 – Evolução escrita no prontuário.

6 – Solicitação dos exames programados e de possíveis pareceres a médicos de outras especialidades.

7 – Avisos às pessoas devidas: ao próprio paciente, aos familiares, aos acompanhantes, a outros colegas médicos que estão acompanhando o caso e também à chefia para notificar sobre a minha programação.

Foi isso que me ajudou a me organizar e garantir que todos esses tópicos estariam cumpridos em relação a cada um dos pacientes. Afinal, não adiantaria eu ser um ótimo semiologista ou dominar a farmacologia, se não conseguisse aplicar uma estrutura prática que fizesse sentido no trabalho. Até porque, independentemente do exemplo citado acima, todos os que trabalham na área médica, seja em hospital ou consultório, sabem que existem intercorrências e mesmo imprevistos não graves – um exame que demora mais do que o esperado, dar atenção a um familiar que está no local na hora imprevista, ter que estudar mais um determinado assunto mais raro ou complicado… Por isso, esses modelos de organização, como um checklist, podem ajudar a não deixar passar nenhuma etapa importante e também a retomar à linha de raciocínio quando tivemos que parar no meio dela, por algum motivo.

Diante dessa necessidade de organização, comecei a estudar esses assuntos não técnicos e encontrei esse nome: “virtude da ordem”. Alguns podem pensar que essa expressão é uma coisa antiga, clássica demais, meio fora de moda, que pode gerar preconceito. Mas isso é um grande engano: virtude é sempre algo que admiramos nas pessoas. Se pensarmos em um líder, um atleta, um artista pelo qual temos admiração, veremos que todos eles têm algum tipo de capacidade, de boa disposição, desse poder (virtude) para cumprir algo com eficácia. E é necessário que consigamos direcionar essas capacidades para colocar algumas coisas em ordem na nossa vida médica.

Quando falamos em ordem, o tipo mais popularmente conhecido é a ordem material: organizar uma estante ou mesa de trabalho, ter um horário para cada atividade durante o dia, etc. No entanto, há outros tipos de ordem que são mais importantes que essa, como a ordem dos valores – o que eu valorizo na vida de fato? Pode parecer subjetivo, mas se é algo valioso para mim, então tenho que conseguir transformar em “objetivo” de algum modo, ao ponto de saber nomear, estar quantificado em horas na minha agenda e estar escrito em algum bloco de notas para que, ao fim do dia, eu possa responder de maneira concreta se dei atenção àquilo, sim ou não. Ou seja, é necessário ter muitas ações concretas na vida prática relacionadas às coisas que realmente valorizamos. E se não aparece na minha agenda, então isso quer dizer que não estou conseguindo dar importância de fato, não estou priorizando aquilo na minha vida pessoal ou profissional.

Esse foco é ainda mais importante se lembrarmos que o amor à medicina pode caminhar junto com o já conhecido peso da nossa profissão, que de fato nos toma muito tempo e atenção. Também por isso, é necessário compaginar os esforços profissionais com outros pessoas, para que não chegue ao ponto de se tornar um fardo que carregamos inconsolados com as dificuldades inerentes ao exercício da prática médica (como, por exemplo, as limitações de recursos que podemos oferecer ao paciente). Dito de outro modo, é preciso que a nossa dedicação profissional seja um zelo sustentável, para que não afete a nossa saúde psíquica e não seja prejudicial à nossa vida familiar. Por isso, viver uma escala de valores bem ordenada e estabelecer prioridades bem pensadas também é fundamental, principalmente para quem atua na assistência clínica. Esse é o desafio que o médico precisa se propor.

Hipertrofias e atrofias

Passamos a maior parte do tempo pensando no passado e no futuro e esquecemos de pensar no presente. Frequentemente, a nossa realização pessoal depende do equilíbrio entre a atenção que damos a cada um desses tempos. De fato, alguém já disse que depressão é “excesso de passado”, ansiedade é “excesso de futuro” e estresse é “excesso de presente”. O problema é que muitas vezes vamos simplesmente tocando a vida, cumprindo as tarefas que nos pedem, “matando o leão de cada dia”. E assim vamos deixando passar as coisas que realmente valorizamos. Certamente, são muito variadas as ordens de prioridade que cada um se propõe, dependendo dos ideais pessoais, da história individual, da época da vida. Mas, no meio dessas variabilidades, existem cinco grandes áreas que, se forem deixadas de lado, um dia irão fazer falta.

. Profissão: quanto tempo dedico ao estudo/atualização? Como está a qualidade da minha atuação profissional, da atenção ao paciente?

. Família: estou dando a atenção necessária para essa área, para minha esposa/marido? Participo da educação dos meus filhos?

. Saúde: estou fazendo atividade física? Estou dormindo bem? Tenho o tempo de descanso necessário?

. Espiritualidade: qual o sentido que dou a cada coisa, transcendendo a mera aparência externa imediata? Eu lembro de Deus ao longo do dia?

. Relações sociais: como anda concretamente minha atenção aos amigos? O quanto consigo crescer em cultura? Disponho-me a ajudar as outras pessoas?

Algumas pessoas têm o costume de fazer um autoexame semanal ou mensal para analisarem se estão sendo negligentes em algum desses campos, para não acabarem só fazendo o que é urgente e deixando de lado o que é importante. Isso porque muitas vezes acontece que algumas ações estão hipertrofiadas (por exemplo, as demandas profissionais) e outras que são essenciais estão atrofiadas (por exemplo, educação dos filhos, o serviço aos necessitados, atenção aos familiares e amigos). Por isso, reservar uns momentos para pensar sobre as nossas rotinas não é mania de organização, nem algum tipo de mentalidade controladora ou perfeccionismo exagerado, mas sim uma ferramenta simples para o médico desenvolver essa indispensável habilidade de ter uma hierarquia clara dos próprios valores. Com ela, poderemos criar uma rotina diária mínima que harmonize os valores e as demandas profissionais/pessoais, porque é disso que vai depender a realização da nossa biografia.

Nessa mesma linha, é importante ainda colocar ordem em nosso tempo ao longo do dia, para nos dedicarmos de modo proporcional àquelas coisas que mais queiramos priorizar. A ideia não é ficar com o dia engessado numa planilha de horários, mas sim melhorar o aproveitamento do tempo: uma desordem nesse aspecto faz com que, no decorrer de um dia, possamos nos deixar arrastar pela inércia, não fazer o que deveria ou ficar na agitação atendendo a demandas que vão surgindo, o que acaba agredindo alguns valores e transtornando o cumprimento das tarefas que nos propusemos a realizar, mesmo que tenhamos boa intenção. Ao contrário, um horário bem pensado, em que cada atividade tenha o seu melhor momento e a duração certa, permite que “multipliquemos” o nosso tempo, pois ele estará mais bem aproveitado, já que estaremos fazendo cada atividade com o máximo de intensidade possível.

“Para ser grande, sê inteiro: nada

Teu exagera ou exclui.

Sê todo em cada coisa. Põe quanto és

No mínimo que fazes.

Assim em cada lago a lua toda

Brilha, porque alta vive”.

Ricardo Reis

Por exemplo, se estou no hospital de plantão, tenho que dedicar todo meu tempo e atenção àquilo que estou fazendo. Por isso, vou deixar as outras coisas para realizar antes ou depois do trabalho, a fim de conseguir estar focado, fazer o que deve ser feito no momento certo. Isso vai evitar que toda hora tenha que me desculpar por ter esquecido essa ou aquela pendência que um colega me pediu ou que o paciente está precisando.

Contudo, é importante ressaltar que a distribuição do tempo não é para ser feita com uma atitude defensiva, de quem cria uma armadura para que ninguém possa interferir no seu tempo, pois isso acabaria se tornando um tipo de egoísmo. Algumas pessoas são muito organizadas, sabem aproveitar bem o tempo, mas têm um esquema intocável nesse planejamento, onde não entra a atenção aos outros, a convivência com os amigos e nem a flexibilidade mínima para atender a uma intercorrência familiar. Em vez de ser uma organização saudável, isso se torna um tipo disfarçado de comodismo, pois parece que a pessoa é bastante eficaz, mas na verdade essa “eficácia” só funciona para ela mesma.

Existe também o oposto, que é dar tempo e atenção a todo mundo a toda hora. Isso também é um problema, porque é um tipo de desordem no uso do tempo. É o caso, por exemplo, de um paciente que lhe chama quando você está atendendo outro. Você pode pedir para ele aguardar e, quando terminar essa consulta atual, atendê-lo em seguida. Ou até mesmo quando um colega de trabalho liga para discutir um caso clínico – peça para ligar mais tarde, se não for urgente. Nessas situações, vale se autoexaminar: “isso que estou fazendo agora é o que eu deveria mesmo estar fazendo? Posso mesmo dar atenção para essa outra pessoa nesse momento?”

Às vezes, a ideia de “matar um leão a cada dia” pode parecer interessante e até motivadora, porque dá um sentido de força. Porém, noutras vezes, surge a demanda de querer “matar um leão a cada minuto”. Dessa forma, acaba que a pessoa não constrói nada de fato, como se estivesse levando sempre uma “vida de bombeiro”, de apagar incêndios. Mais do que isso, é necessário construir um edifício de conhecimentos, de habilidades e de experiência acumulada, que irão proporcionar prestígio profissional para dar atenção aos outros, servir aos outros da melhor forma.

É interessante entender que a boa organização do tempo pode ficar prejudicada pela falta de ordem material. Por exemplo: em hospitais acontece muitas vezes que um prontuário ou instrumentos sejam deixados em qualquer canto do setor. Isso dificulta o trabalho das outras pessoas, porque perde-se um bocado de tempo procurando esses objetos. Já num ambiente em que as coisas estão devidamente no seu lugar, todo o fluxo de trabalho fica facilitado.

Outra situação que também pode ser poupadora de tempo para o médico é uma boa passagem de informação (prática conhecida como “hand-off”), que acontece por exemplo nas trocas de turno de plantão. Deixar as coisas organizadas, com informações claras e completas, é uma demonstração de profissionalismo, porque a ordem não é só para mim, mas também para as outras pessoas que participam daquele trabalho. No fim das contas, a ordem material poupa esforço e deixa mais tempo para dar atenção ao que devemos (por exemplo, ao paciente ou à revisão de um assunto técnico).

Nessa mesma linha, está o famoso atraso do médico. Muitas vezes, o fato de estar atrasado pode acontecer por causa da própria natureza do nosso trabalho, com casos que demoram mais que o previsto, pacientes com os quais precisamos estender um pouco a conversa ou urgências que surgem e nos impedem de chegar cedo em outro compromisso. Mas estar atrasado também pode ser resultado da desorganização própria da pessoa, o que felizmente é algo modificável. Portanto, vale um autoexame sincero para dissecar as verdadeiras causas de estar atrasando com frequência, pois isso é quase sempre um desrespeito ao horário das outras pessoas.

Por fim, em relação a esse aspecto, é preciso ainda tratar do conceito de “urgência”. Algo é urgente quando tem que ser feito agora, indiscutivelmente. Diferente disso, algo é importante quando faz parte do que valorizamos na vida, mesmo que possa demorar para ser realizado. Um bom método para saber distinguir essas características em cada tarefa que cumprimos é criar uma tabela de 2 x 2, em que se escreve, de cada lado, as atividades que são importantes/não importantes versus as que urgentes/não urgentes. Por exemplo: pagar uma conta de luz pode ser urgente se o prazo for hoje, mas essa tarefa não tem a ver diretamente com os valores mais essenciais da minha vida. Já, há outras situações que são ao mesmo tempo urgentes e importantes, como um problema familiar a que é necessário dar atenção. Por isso, é interessante fazer essa listinha das atividades que são urgentes e das que são importantes e observar o quanto estou dando atenção para cada uma delas.

O oposto da ordem

Sócrates, o fundador do método filosófico, tem uma frase que diz assim: “Uma vida sem reflexão é uma vida que não merece ser vivida”. Essa frase é uma provocação para nossa realidade atual, em que muitas vezes estamos só vivendo de acordo com o corre-corre do dia a dia. Isso se chama “desordem” e abrange muito mais do que a “desorganização”: a desordem é uma falta de proporção, em que se investe muito tempo/atenção/energia no que não merece tanto, deixando de lado outras áreas mais prioritárias.

Podemos refletir que no século XXI vivemos numa época de abundância, com muito acesso a vários sites, revistas científicas, podcasts e programas de entretenimento, entre outros. Esse é um aspecto positivo, claro. Mas quando nos deparamos com um imenso número de possibilidades a escolher, isso pode gerar uma dúvida paralisante, um estado de perplexidade atônita. É mais ou menos comparável a esses grandes congressos médicos, com mais de dez salas de palestras concomitantes, em que temos de escolher qual assistir, competindo com o corredor de pôsteres de trabalhos científicos, além dos estandes de patrocinadores e a conversa com os amigos que reencontramos. Se não pararmos para pensar sobre o que vale a pena a cada momento, a qual frente dar atenção e o nosso precioso tempo, corremos o risco de simplesmente fazer a primeira coisa que aparece, tomar decisões de acordo com o impulso momentâneo ou com base no que os outros estão seguindo. Tudo isso acaba culminando numa falta de hierarquia e numa desordem.

Por isso, a solução é uma boa reflexão acerca da “hierarquia dos nossos próprios valores”, que não deve ser algo rígido, mas sim manifestar-se de maneira concreta na nossa agenda, em nossos planos e no tempo que dedicamos a cada projeto. Também é interessante notar que essa ordem nas nossas prioridades pode mudar de época para época. Costuma ser de um modo quando nasce um filho e de outro modo quando mudamos de trabalho ou quando estamos estudando para uma prova, etc. Por outro lado, vale sempre a pena revisar aquelas cinco grandes áreas que mencionamos acima, neste artigo.

Outra dica para evitar que a nossa biografia “saia dos trilhos” é ficarmos atentos aos vários tipos de desordens que podem nos sabotar, fazendo um exame de consciência de tempos em tempos para checar se estamos flertando sem querer com alguma delas. Vejamos, a seguir, alguns exemplos.

. “O paradoxo da escolha”: como já foi dito anteriormente, trata-se de um deslumbre perante o excesso de opções, que se manifesta em diversas decisões, pequenas e grandes, ao longo de um dia ou ao longo da vida. Inclui desde a pessoa que, num cinema com diversas salas e opções de filmes distintos, fica indecisa e com medo de não escolher o melhor, passando pelo fenômeno de várias abas de navegador de internet abertas ao mesmo tempo e chegando até a escolha de rumos profissionais.

. FoMO – “fear of missing out” (medo de perder algo): alguns usam essa expressão para se referir à sensação experimentada por um indivíduo de que outras pessoas estariam passando por experiências mais gratificantes, enquanto ele está consumindo o conteúdo das redes sociais delas. Há ainda o “fear of better option” (medo de uma opção melhor), que consiste no temor que uma pessoa nutre de perder uma oportunidade melhor quando faz uma escolha (bloqueio de outras alternativas).

. “Só fazer aquilo que gosta, aquilo que dá prazer”: esse é outro exemplo de desordem que as pessoas costumam não reconhecer. É o caso, por exemplo, de um médico que trabalha no melhor hospital, tem um consultório organizado à sua disposição, atua na especialidade que planejou, mas ainda assim não tem uma satisfação tão plena quanto já teve algum dia ou não tão expressiva quanto ele imaginou que iria sentir quando alcançasse esses projetos. O risco é viver num mundo fictício, porque só buscar aquilo de que gosta é uma desordem, já que a pessoa vai sempre ficar mudando de uma situação para outra.

. “Não estar presente no que faz”: é uma desordem que pode ocorrer com pessoas que trabalham em situações absorventes, como as de um médico, e que não conseguem se manter “mentalmente” focadas naquilo que estão fazendo. É o que acontece, por exemplo, com o médico que, no fim de semana com a família, fica pensando que poderia estar se atualizando com a leitura de um artigo científico ou então participando daquela cirurgia em que tinha interesse. Isso também pode ocorrer quando alguém tende a fazer muitas coisas ao mesmo tempo e não concluir nenhuma. Então, é necessário fazer o que se deve e estar no que se faz.

A verdadeira harmonia nas nossas prioridades resume-se basicamente nesse alinhamento entre nossa ação concreta no mundo (tempo que a gente gasta em cada atividade) e o nosso interesse biográfico (aquilo que é a nossa vocação, que mais nos motiva, a que devemos realmente nos dedicar). Se essas duas coisas estiverem desalinhadas, não seremos produtivos e estaremos infelizes. De fato, alguém já disse que “disciplina é você fazer o que mais quer em vez do que você quer agora”. Então, muitas vezes é necessário se perguntar: “o que eu estou fazendo na prática tem a ver com aquilo que eu almejo? O que estou fazendo hoje será importante no meu plano de médio e longo prazo?”. Por isso, vale a pena analisar as armadilhas que foram aqui citadas e fazer essas perguntas frequentemente, para poder orientar-se no caminho e dedicar a energia e a atenção devidas.

Numa segunda parte deste artigo, continuaremos com reflexões e dicas práticas de como alcançar hábitos que sejam de fato importantes na vida do médico e que o ajudem a estabelecer prioridades em seu cotidiano, elencar uma escala de valores de maneira concreta e determinar as necessidades do dia a dia, a fim de ser um melhor profissional e uma pessoa mais realizada.


Dr. Henrique Cal – Médico formado pela UFRJ – Universidade Federal do Rio de Janeiro, com especialização em Neurologia pela UFF – Universidade Federal Fluminense, doutorando em Neurologia pela UFF-RJ, nas áreas de Esclerose Múltipla e Neuroimunologia e membro titular da ABN – Academia Brasileira de Neurologia.