Mapa da Escuta: musicoterapia para o autoconhecimento e autocuidado – Parte III

Neste terceiro artigo da série relativa à proposta terapêutica denominada Mapa da Escuta, busca-se tecer uma reflexão sobre a presença, papéis, funções e sentidos da música no cotidiano e sobre as possibilidades de se utilizar a experiência musical como uma forma de conhecimento e cuidado de si.

Para ilustrar tal proposição, apresenta-se um exemplo em que a conscientização da presença da música na vida diária torna-se relevante e necessária na manutenção da saúde e do bem-estar: trata-se da relação entre música e substâncias psicoativas e sobre o papel da experiência musical no tratamento de pessoas dependentes de drogas.

Apresenta-se também o conceito de imunogênico cultural, proposto pelo musicoterapeuta norueguês Even Ruud, no qual ele propõe que ações musicais podem ser comportamentos protetores da saúde.

E, por fim, convidam-se os leitores e leitoras a refletirem sobre a função da música no seu dia a dia, propondo algumas questões que visam a auxiliar um mapeamento da escuta musical cotidiana ou, quem sabe, a confecção de um Diário de Experiências Musicais Cotidianas, como uma forma de investigar mais sistematicamente como se constitui o seu entorno musical e que sentidos, papéis e funções apresentam-se na vida diária. E, quem sabe ainda, a partir de tais descobertas, implementar momentos cotidianos de autoconhecimento e autocuidado musicais.

Experiência musical como um fenômeno contextualizado

Desde muito antes de nascermos, ainda na barriga de nossas mães, já estamos ouvindo o mundo. Vozes e sons nos chegam constituindo ambiências, presenças e nos revelando o mundo exterior. Após o nascimento, seguimos sendo banhados por uma variedade de sonoridades, até que algumas delas despertem nossa atenção mais do que outras. E, então, buscamos repetir o prazer de interagir com elas, seja ouvindo-as, imitando-as, movendo-nos corporalmente, cantando, etc.

A partir do momento em que podemos escolher o que ouvir e como interagir, vamos moldando uma parte da nossa trilha sonora vital e cotidiana, selecionando quando, onde, o que, como e com quem ouvir. Desenvolvemos nossa dimensão musical a partir das nossas preferências. Mas, em paralelo, uma grande variedade de sonoridades e músicas do mundo continuam chegando até nós incessantemente, sem que possamos bloqueá-las, o que não significa dirigir a percepção para cada um desses sons e vivenciá-los atentamente, pois há uma impossibilidade de fazê-lo. Porém, lá estão eles presentes e sendo captados pela nossa audição, ainda que não estejamos prestando atenção. Algumas dessas sonoridades capturam a nossa atenção, outras não, mas de alguma forma todas estão lá compondo nossa vivência diária e a nossa paisagem sonora.

Assim, sonoridades e músicas podem passar desapercebidas ou podemos nos manter atentos a elas, deixando que esse gesto nos revele algo sobre nós mesmos e nosso entorno ou ainda nos mostre como nos relacionamos com esse entorno e com as temáticas, sentimentos, memórias, associações e demais reações e sentidos que são despertados no contato com a música. De onde vêm tais sonoridade? Eu as escolho? São escolhidas pelas pessoas que moram comigo? São músicas que vêm da rua? Quais dessas sonoridades e músicas são bem-vindas e despertam vontade de interagir? Quais delas incomodam e provocam a vontade de se afastar? Quais incomodam, mas não é possível desligá-las e nem diminuir seu volume? Nesses casos, como lido com esse incômodo? Quais são os tipos de músicas que prefiro? A partir do observado, como posso gerar uma experiência de cuidado e bem-estar? Quais relações percebidas podem ser cultivadas como forma de trazer bem-estar e melhoria no a dia a dia?

Pode parecer estranho nos determos em tantos detalhes de atitudes que acontecem de forma quase que espontânea no cotidiano, mas a proposta aqui consiste exatamente nisso, num convite para que percebamos como a música se faz presente no nosso dia a dia.

Esse mapeamento da dimensão musical permite conhecer um pouco mais da nossa relação com a música e sobre o que essa relação nos indica. Perceber as relações estabelecidas nas experiências musicais é uma forma de perceber-se no mundo. O quanto escolhemos ou simplesmente seguimos o que está colocado? Esse exercício reflexivo promove possibilidades de realizar um mapeamento na nossa escuta como forma de autoconhecimento e, a partir do que se observou, praticar momentos de cuidados musicais caso assim desejemos.

A maioria de nós, de alguma forma, já realiza isso funcionalmente quase todos os dias. Selecionando músicas para fazer faxina, para realizar exercícios físicos, para estudar, para relaxar. Mas podemos ir além do funcional e perceber o que mais se mostra na nossa relação com a música.

Podemos criar momentos especiais de abertura para o cultivo dessa dimensão. A musicalidade é um modo humano essencial de existir e, por meio dela, podemos acessar muitas possibilidades de nos conhecer e nos cuidar. E quando digo isso, não falo apenas de uma subjetividade, mas de uma relação que pode se abrir em muitas direções: num contato consigo, com o outro, com a música e com o mundo.

A socióloga Tia Denora é uma das pioneiras nesse tipo de investigação no campo acadêmico, desenvolvendo uma série de pesquisas etnográficas que demonstram como as pessoas fazem uso da música no cotidiano com uma série de objetivos diferentes. Nas diversas categorias descritas no seu livro Music in Everyday Life, um fator interessante a se destacar é que em todas as situações esses usos da música partem de uma relação que é desenvolvida. Não se trata de considerar a música como um objeto que tem um efeito sobre nós, mas como uma atividade que se desenvolve em relação. No livro, ela descreve como as pessoas que observam que a música traz benefícios para o seu cotidiano acabam criando “rituais” pessoais para essa finalidade.

Como musicoterapeuta e investigadora da experiência musical há pelo menos duas décadas, devo dizer que essa experiência pode apresentar-se de maneira profunda e que nem sempre o contato com ela é somente bom, prazeroso ou benéfico. A música não é um objeto ao qual reagimos, mas uma ação viva com a qual constituímos uma interação durante a vida. Cada pessoa desenvolve uma relação particular e múltipla com a música, que é composta de acordo com as suas vivências.

Para ilustrar a profundidade de nossa interação com a música no cotidiano, escolhi um contexto que nos permite observar mais de perto como ela se faz presente na vida diária, relacionando-se com nossas vivências e modos de estar no mundo, criando ambiências e direcionalidades e, ao mesmo tempo, podendo ser fonte de autoconhecimento e autocuidado.

O contexto escolhido foi o da experiência musical de pessoas dependentes de substâncias psicoativas em recuperação. Esse exemplo mostra, de uma forma amplificada, a relação que todos nós apresentamos com a dimensão musical no cotidiano. Porém, no contexto ilustrado, tal relação torna-se mais evidente, pois como será descrito a seguir, estar atento aos hábitos musicais e escolher modos musicais de cuidado mostra-se essencial para manutenção do bem-estar e da saúde.

Fora de uma situação como essa, a percepção da relevância da dimensão musical pode perder seu caráter de urgência, mas ainda assim ela está ali de base, agindo em algum nível. Dessa forma, atentar-se para nossa interação com a música pode dizer muito sobre nossos modos de estar no mundo. E podemos também, a partir desse movimento, produzir hábitos musicais de cuidado.

Experiência musical de pessoas dependentes de substâncias psicoativas em recuperação

Meu interesse no inter-relacionamento entre música e substâncias psicoativas e sobre a utilização da musicoterapia no tratamento de dependentes químicos iniciou-se na Faculdade de Musicoterapia. Logo no começo dessa trajetória, deparei-me com uma informação que me mobilizou muito. Em uma aula, a professora falava sobre como a música seria capaz de promover alterações da consciência e, em determinado momento, ela mencionou que a música poderia alterar a consciência tanto quanto algumas drogas faziam. Naquele instante, pensei: “Oras, se a música é tão potente, por que não a utilizar no tratamento da dependência química como uma espécie de “redução de danos”? Não seria melhor que as pessoas utilizassem música em vez de drogas? Passei então a pesquisar sobre esse assunto, o que me levou a realizar uma iniciação científica sobre o tema, seguida por uma especialização em dependência química após a graduação e consequente atuação profissional na área. Compartilharei, a seguir, algumas importantes descobertas que fiz.

Uma das primeiras questões levantadas foi que a utilização de substâncias psicoativas, bem como o uso da música, remonta à história da humanidade. Ao traçarmos uma linha do tempo, é possível achar registros de suas utilizações em quase todas as épocas, seja de maneira isolada, quando usadas separadamente, ou da relação entre elas, quando música e drogas são utilizadas concomitantemente. Porém, há uma observação importante a ser feita: as funções tanto das drogas quanto da música variam através dos tempos e das culturas. Nem sempre foram utilizadas para os mesmos fins de hoje em dia, o que demonstra a importância de se considerar o fator histórico e cultural. É preciso levar em conta uma visão interdisciplinar, que considere aspectos culturais, sociais, biológicos e assim por diante.

Para além dos fatores culturais e históricos, procurei entender um pouco mais sobre os aspectos neurobiológicos envolvidos no uso de substâncias psicoativas e na audição musical e logo ficou evidente que havia uma intrincada inter-relação entre estímulos sonoro-musicais, alteração de consciência e memória.

Um dos aspectos interessantes é que a capacidade das drogas e da música em gerar prazer estaria ligada ao sistema de recompensa cerebral, que é um mecanismo dopaminérgico que tem por objetivo fazer com que o indivíduo repita as atividades que são prazerosas. A diferença entre a música e a droga, nesse caso, é que a música, em tese, não desequilibraria o sistema de recompensa, pois sua ativação acontece de forma natural. Sendo assim, ela nunca ultrapassaria os limites “naturais” do sistema de recompensa. A mesma quantidade sempre seria suficiente para se atingir o prazer, fazendo com que o indivíduo possa utilizar a audição musical e continuar sua vida tranquilamente, sem que pense nisso 24 horas por dia. O mesmo, no entanto, não se aplicaria a algumas substâncias psicoativas, pois nesse caso a ativação do sistema vem de fora, agindo diretamente sobre ele e fazendo com que haja um desequilíbrio do mesmo. Dessa forma, uma quantidade cada vez maior de droga seria necessária para garantir o prazer. Para saber mais sobre esse assunto, explicado de uma maneira bastante didática, indico a leitura do livro Sexo, drogas, rock’n’roll… & chocolate: o cérebro e os prazeres da vida cotidiana, da neurocientista Suzana Herculano-Houzel.

Seguindo com as investigações em direção à musicoterapia e dependência química, descobri que a relação que parecia ser simplesmente explicada por um sistema neurobiológico, em que a música não traria prejuízos, poderia ser completamente alterada quando música e droga eram consumidas conjuntamente, pois nesse caso um novo tipo de interação se desenvolvia e a música passaria a estar vinculada à cultura de dependência.

Alguns musicoterapeutas fora do Brasil já vinham relatando seus trabalhos com dependentes químicos. Um dos que mais me ensinaram sobre essa importante relação entre música e substâncias psicoativas foi o musicoterapeuta Tsvia Horesh. Em seu artigo Música perigosa – trabalhando com os poderes destrutivos e de cura da música popular no tratamento de abusadores de substâncias, ele não só apresenta a musicoterapia como uma possibilidade de tratamento, mas também alerta sobre os “perigos da música para dependentes químicos”, ilustrando uma série de situações em que seus pacientes relatavam como a música se tornava um gatilho que os levava a recair. Posteriormente, na minha atuação clínica com dependentes químicos, pude observar pessoalmente essas situações inúmeras vezes.

Horesh destaca a importante relação existente entre os estímulos sonoro-musicais e a cultura de dependência, afirmando que “a cultura de dependência é um modo de vida: um modo de falar, de pensar, de se comportar e de se relacionar com os outros, que separa os abusadores de drogas daqueles que não usam drogas. A cultura engloba valores, lugares, rituais, símbolos e música, todos estes reforçam o envolvimento de um indivíduo com o consumo excessivo de drogas”.

Muitos dos pacientes de Horesh diziam não conseguir imaginar a sua vida social sem pubs, clubs, festas raves e todos os lugares onde as drogas eram consumidas. No entanto, todos os estímulos que lembravam o uso da droga – incluindo a música que estava sendo tocada no momento – podiam ativar desejos que causam modificações cognitivas ou psicológicas, aumentando a quantidade de pensamentos e os sentimentos de ansiedade, o que poderia levá-los a uma recaída. Então, no tratamento, tornava-se necessário traçar um percurso entre a cultura de dependência e a cultura de recuperação.

Muitos de seus clientes intercalavam música e drogas, ouvindo-a compulsivamente nos períodos de abstinência, pois, segundo eles, a música era capaz de preencher o vácuo emocional que sentiam sem as drogas, desviar pensamentos e emoções, acalmá-los na hora de dormir e energizá-los para iniciar o dia. Porém, nem todo tipo de música podia ser utilizado para esse fim, pois um estímulo relacionado ao consumo da droga poderia reativar a memória do uso, causando um forte desejo de utilização e colocando então tudo a perder.

Assim, um dos primeiros passos a serem tomados para a recuperação é o dependente assumir quais seriam os fatores de risco para uma recaída: as pessoas, os lugares e as coisas que lembram o consumo da droga como é chamado nos narcóticos anônimos.

Horesh ressalta que “os estímulos musicais provocam respostas emocionais e físicas, não apenas por suas propriedades musicais, mas porque recriam uma representação mental e emocional da essência do momento de quando a escuta foi feita pela primeira vez. As memórias evocadas podem ser de experiências e de noções negativas ou do atual uso de drogas. A ligação estabelecida entre certos tipos de música e a lembrança eufórica da intoxicação da droga, reforçada através de milhares de repetições, serve como poderosa conexão com a cultura de dependência”.

Dessa forma, a audição musical tem um papel paradoxal na recuperação dos dependentes. Ela pode ajudar nesse processo, aliviando a ansiedade dos dependentes e o mal-estar causado pela síndrome de abstinência, mas ao mesmo tempo pode ativar um desejo de consumir a droga novamente, o que reforça a dependência e pode resultar em recaída.

Essa relação delicada que aparece entre o desejo de consumir novamente a droga e a escuta da música é construída. Não depende de nenhum elemento ou gênero musical específico, apesar de alguns estilos musicais fazerem parte de movimentos culturais em que determinadas drogas se fazem mais presentes. O que está em questão aqui não é o gênero musical, mas a utilização conjunta de música e substâncias para modificar a percepção e o estado de consciência e o aspecto cultural e de habituação fortemente envolvido.

No entanto, podemos observar também que existe uma cultura de consumo entre os tipos de alteração de consciência e tipos de música. É comum observar diferentes usos e combinações de substâncias e de estilos musicais, como por exemplo jazz e maconha, samba e cachaça, rock e heroína, música eletrônica e ecstasy e outras drogas estimulantes, rock progressivo e LSD, como se cada gênero pudesse ser mais bem apreciado com a contribuição de determinada substância. Para quem se interessar pelo assunto, o musicoterapeuta Jörg Fachner possui um interessante artigo intitulado Jazz, improvisação e uma farmacologia social da música.

Mas, insisto, não basta que olhemos apenas para a música e para a substância, e sim para todo o entorno, contexto e cultura que envolvem tais usos.  A relação é complexa e deve ser encarada como tal. Enfatizo esse ponto pois não se trata de determinado estilo de música que atua sobre nós. A música é sempre parte de um contexto maior.

Voltando ao exemplo de tratamento da dependência química, não bastaria afastar a pessoa dos ambientes em que a droga fosse consumida e evitar que ela ouvisse as músicas que estavam vinculadas a esse momento. A música está no mundo, é impossível interrompê-la. A afinação entre esses hábitos saudáveis ou não devem ocorrer constantemente. Compreender o contexto é de fundamental importância, pois nenhum remédio ou nenhuma prática musical é terapêutica por si só. A experiência terapêutica da música é algo a ser desenvolvido.

Observe mais um exemplo que vivenciei em minha prática no tratamento de pessoas com dependência. Foi um fato curioso que ocorreu no início da minha carreira, quando atuava como musicoterapeuta em Hospital Dia (HD). Havia um jovem que já tinha passado por muitas internações e que apresentava um uso bastante compulsivo, sem escolha de uma droga preferencial, utilizando diversas em diferentes contextos. Logo que saía da internação, voltava ao HD, mas depois era internado novamente. No período em que estive por ali, conduzindo as sessões de musicoterapia, ele permaneceu por mais tempo, causando bastante surpresa e esperança na equipe interdisciplinar. Porém, em algum momento, mesmo que ele não estivesse fazendo uso de drogas ilícitas, começamos a observar algumas alterações em sua rotina. Ele passou a ter dificuldades de acordar cedo e comparecer ao centro de tratamento no período da manhã. Investigando um pouco mais a fundo, descobrimos que o motivo era porque cada noite ele passava a dormir mais tarde. Ele nos contou que todas as noites fazia seu próprio ritual pessoal para adormecer: tomava os remédios receitados pelo psiquiatra e colocava, por sua própria conta, música para “relaxar” e ajudar a induzir o sono, uma vez que estava percebendo nas sessões de musicoterapia em grupo como a música poderia ser benéfica e terapêutica. Evitava fazer uso das músicas vinculadas à cultura de dependência para não gerar ansiedade, procurando um novo repertório. Entretanto, o que funcionou no início como ajuda de higiene para o sono logo se tornou um ato compulsivo e ele passou a ficar noites e noites em claro “curtindo o barato” que a música dava junto com o remédio.

Esse caso leva-nos a refletir sobre a importância de compreender a saúde também em uma perspectiva contextual, de não olhar apenas para os efeitos que a música ou que determinada medicação pode produzir, mas para qual experiência a pessoa desenvolve com esse tratamento.

Os exemplos de pessoas dependentes de drogas deixam muito clara a necessidade de olhar para a relação que foi sendo estabelecida com a dimensão musical. Se desejarmos implementar estratégias de cuidados musicais, é preciso ir conhecendo a relação com a música e ir identificando as possibilidades de usos saudáveis.

Evidenciam também como o autoconhecimento e o autocuidado podem caminhar juntos, além de indicar a importância de um entendimento da saúde como performance, que se desenvolve na experiência, na interação com o mundo, como um modo de ser e fluir e de se reconhecer de forma saudável e não como uma meta externa a ser alcançada.

No caso das pessoas dependentes de drogas, há uma relação muito forte estabelecida com o ambiente em que a droga é consumida e isso envolve todos os elementos presentes nesse ato e no período em que o fato ocorreu: pessoas, lugares, cheiros e, obviamente, som e música. Então, quando o indivíduo resolve interromper o uso e ingressar num processo de recuperação/reabilitação, esses elementos presentes na cultura de dependência podem se apresentar como estímulos desafiadores, que algumas vezes servem como gatilhos para um novo consumo, colocando em risco a cultura de reabilitação.

No entanto, a música também é utilizada para ajudar a diminuir a ansiedade, como acompanhante, como forma de espelhamento e expressão de emoções, com diversas funções, papéis e sentidos. O problema nunca está na “música em si”, mas na relação desenvolvida com a música. Era, então, nesse campo que eu, como musicoterapeuta, atuava, ajudando a pessoa a mapear quais eram as práticas musicais saudáveis e as não tão saudáveis para aquele momento, além de buscar construir uma compreensão de como tal vivência musical tornava-se boa ou má para aquele indivíduo.

Música como imunogênico cultural

Apesar de os exemplos citados acima apresentarem um contexto específico em que há uma problemática que se destaca em relação à escuta, acredito que, ao transpormos esse contexto e olharmos para nossas próprias vivências, poderemos observar como a experiência de atentar-nos para nossa dimensão musical permitirá perceber funções da música que se destacam no nosso cotidiano.

Tal abordagem leva-nos a notar de que forma a música está presente e que tipo de sentidos ela nos desperta ou ainda a fazer um exercício imaginativo de como gostaríamos que ela estivesse mais presente e quem sabe até a partir para a ação realizando tais possibilidades. É possível também identificar sonoridades e músicas que muitas vezes fazem parte do nosso ambiente nos incomodando e tendo funções que não percebemos espontaneamente.

O musicoterapeuta norueguês Even Ruud vem, há vinte anos, desenvolvendo uma metáfora provocativa que considera as “ações musicais como um imunogênico cultural”, compreendendo a música como um hábito de proteção de saúde e propondo uma saúde musicada (health musicking).

Para estabelecer tal perspectiva de pensamento, ele se baseou no conceito sobre os imunogênicos conhecido no campo da medicina imunológica, que foi posteriormente adotado de forma metafórica pela psicologia da saúde.

Um “imunógeno cultural” implica o manuseio de artefatos culturais ou expressões artísticas dentro do contexto do comportamento relacionado à saúde.

No campo da medicina ou imunologia, imunogênico é um tipo específico de antígeno ou uma substância capaz de provocar uma resposta imunológica adaptativa se injetada por vontade própria. Então, em psicologia da saúde, um “imunogênico comportamental” deve ser entendido, em sentido metafórico, como uma espécie de comportamento protetor, em oposição a um patógeno comportamental, que seria um comportamento que prejudica a saúde, como por exemplo beber, dirigir sem cinto de segurança e assim por diante.

Diário de Experiências Musicais

E vocês, caros leitores e leitoras, já pararam para analisar como a música está presente no seu cotidiano? O quanto ela auxilia nas suas demandas diárias ou quanto lhe atrapalha e gera irritações?

Nesta parte final do artigo, gostaria de fazer um convite para que vocês percebam e investiguem suas próprias experiências musicais. Para tanto, sugiro a confecção de um “Diário de Experiências Musicais”, no qual seja registrada a presença da música no seu dia a dia.

Essa sugestão de investigação da dimensão musical pessoal refere-se a uma proposta sensibilizadora para conscientização sobre os papéis da música no cotidiano. Não se trata de musicoterapia, até porque, como já foi apontado no artigo anterior, essa é uma atividade personalizada que se desenvolve de forma processual com um profissional qualificado para tal. No entanto, a experiência musical encontra-se presente a todo momento em nossas vidas e dedicar alguns instantes do dia para experienciar e refletir sobre ela pode auxiliar-nos a compreender um pouco mais dessa relação que estabelecemos com a música, além de nos favorecer com um maior conhecimento de nós mesmos e até gerar bem-estar e satisfação… e por que não dizer momentos de cuidados musicais?

Além da criação do Diário de Experiências Musicais, algumas perguntas norteadoras podem auxiliar, tais como: de que maneira a música está presente no seu dia a dia? Que funções ela desempenha? As músicas são sempre as mesmas ou variam? Você ouve música sozinho ou acompanhado? Entre outras que estão espalhadas ao longo deste artigo.

A ideia é que você tome nota das percepções e descobertas sobre o seu mundo musical. Arrisco-me a supor que você se surpreenderá em constatar como a música movimenta, contribui, interfere e modifica formas de estar no seu cotidiano.


Priscila Bernardo Mulin – Bacharel em Musicoterapia, especialista em Dependência Química (UNIFESP), mestra em Educação, Arte e História da Cultura (MACKENZIE) e pós-graduanda em Psicologia Clínica Fenomenológica-Existencial (NUCAFE). Foi docente e supervisora de estágios da Graduação em Musicoterapia da FMU, onde atuou também como docente responsável pela Clínica-Escola de Musicoterapia e coordenadora do Curso de Pós-Graduação em Musicoterapia Preventiva e Social. Atualmente dedica-se ao Mapa da Escuta, uma proposta terapêutica autoral que promove o envolvimento e o desenvolvimento da dimensão sonora musical como forma de (auto)conhecimento e (auto)cuidado.

 

Fontes

Denora, T. Music in Everyday Life.United Kingdom: Cambrige, 2004.

Fachner, J. Jazz, Improvisation and a social pharmacology of music. Music Therapy Today (online). Vol. IV, (3). June – 2003.

Herculano-Houzel, S. Sexo, drogas, rock’n’roll… & chocolate: o cérebro e os prazeres da vida cotidiana. Rio de Janeiro: Vieira & Lent, 2003.

Horesh, T. Dangerous Music – Working with the Destructive and Healing Powers of Popular Music in the Treatment of Substance Abusers. Music Therapy Today (online). Vol. IV (3). June – 2003.

Mulin, P. B. O Comportamento Compulsivo do Dependente Químico no Período de Abstinência de Dependência Química e Sua Relação com a Audição Musical. Centro Universitário das Faculdades Metropolitanas Unidas: São Paulo, 2004.

Mulin, P. B. Investigando a experiência musical. Dissertação (Mestrado em Educação, Arte e História da Cultura) – Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2015.

Ruud, E. Can music serve as a “cultural immunogen”? An explorative study, International Journal of Qualitative Studies on Health and Well-being, 8:1, 20597, 2013.