A editora da Revista Medicina Integrativa deu-me a oportunidade de escrever novamente sobre temas de saúde e medicina integrativa. Ela me pediu para fazê-lo em relação à estrutura de saúde pública. Faço isso da Espanha, em meio à segunda onda da COVID-19, em uma Europa fragmentada em decisões. Em economia, o conceito de “cisne negro” é usado para definir um evento incomum e imprevisto que desencadeia um conjunto de novas situações. Esse cenário é o que marca nossa realidade atual. Um espaço talvez sem manual para uma crise de saúde, mas também econômica, social e política.
Dizem-nos que sairemos desse cenário com um “novo normal”, que é um conceito ambíguo, a partir do qual apenas intuímos que o que virá – no momento somos como um doente na cama que não sabe se terá sequelas – não será o antigo. Se nos voltarmos para uma visão global do passado que nos trouxe até aqui, chegaremos à conclusão de que não foi tão edificante como gostaríamos. O capitalismo, que nasceu no final do século XVIII, incluindo sua vertente colonial, trouxe, é certo, um avanço descomunal ao romper com as barreiras impostas pelo antigo regime monárquico e com as Revoluções Americana e Francesa, surgiu uma outra classe dominante, que detinha um novo poder: o poder econômico. Mas, podemos apontar basicamente duas objeções definitivas ao cenário trazido pelo novo sistema: a enorme desigualdade, quando quase três bilhões de pessoas não têm acesso a serviços básicos, aliada a uma concentração do poder econômico em camadas cada vez menores da população, juntamente com uma situação ambiental muito próxima da beira do precipício. Não parece ser um panorama de grande equilíbrio. Mas esse modelo acabou. Diferentes economistas e estudiosos, como Niño-Becerra, Paavo Järvensivu, Joseph Schumpeter, Larry Summers, Brad Delong e outros, apontam que o modelo capitalista entrou – assim como entraram o feudalismo e o mercantilismo – em sua fase final. Alguns chegam mesmo a datar esse final por volta mais ou menos de 2070. Para o bem ou para o mal, não vou vê-lo.
A medicina não está fora desse contexto, seja como ciência ou como profissão, mas sim muito próxima a ele, pois sempre foi um instrumento de poder, assim como também influenciou a tomada de decisões do poder político. Atualmente, as posições filosóficas da chamada “biopolítica”, que tiveram início com o francês M. Foucault(1) e mantêm-se parcialmente com o coreano residente na Alemanha Byung Chul-Han, estão mais do que nunca em ascensão. Onde está hoje a ideia de se criar um modelo de saúde coletiva que busque a redução das desigualdades, por meio de ações concretas que melhorem o bem-estar global das sociedades?
A corda sempre arrebenta no lado mais fraco
Diante de uma pandemia global que transcende nações e fronteiras, os poderes públicos recorrem a profissionais e técnicos para tomar decisões, ou pelo menos é o que deveriam fazer, mas logo depois as decisões políticas finais se distanciam dos relatórios. E, basicamente, que medidas temos visto serem adotadas? Bem, no final foram tão tradicionais que podem causar rubor no século 21: confinar, evitar contatos sociais e de trabalho entre as pessoas, da mesma forma como na Idade Média, sendo que isso tem sido um novo fator determinante de desequilíbrios sociais. E onde isso mais afeta? Quem são os mais afetados? Como sempre, os de sempre: os mais fracos, como aconteceu em primeiro lugar, no meu país, com os lares de idosos.
Na primeira onda da crise epidêmica na Espanha, quase 20.000 pessoas morreram, basicamente muitas delas nas suas camas em asilos, sozinhas e longe de parentes. Os meios de comunicação – que têm noticiado diariamente o número de infectados, internados e falecidos – impediram-nos de testemunhar a verdadeira realidade e tudo ficou “em família”, instantes depois de a enxurrada de doentes nos hospitais ter mostrado a nossa escassa preparação para suportar uma crise como essa. Um sistema de saúde que pomposamente se presumia bem-sucedido, mas que na verdade mostrou o somatório de suas fragilidades decorrentes da erosão a que tem sido submetido pelos diferentes governos: profissionais maltratados e mal remunerados e falta de apoio ao sistema de atenção primária, além das privatizações diretas ou encobertas. Se não fosse pelo esforço inestimável feito por milhares de profissionais de saúde, alguns dos quais inclusive pagaram com sua própria vida ou com sua saúde física e mental, a catástrofe teria sido absurda. E não é pequena.
Mas já havíamos tido a experiência decorrente do que aconteceu em 2003-2004 com o então chamado SARS-COV (que não recebeu o número 1 em sua denominação porque foi considerado como “novo”) e sua Síndrome Respiratória Aguda Grave, em que foram identificados, desde sua origem, muito semelhante à atual, quais eram seus mecanismos de transmissão, período de incubação, níveis de mortalidade e morbidade e efeitos nas pessoas, profissionais e populações. Fatores basicamente idênticos aos da crise atual. Os grupos vulneráveis eram conhecidos, assim como os percentuais de pacientes que iam entrar em internação e em UTIs. Tudo isso está escrito e publicado, inclusive em livros básicos de medicina interna(2). A OMS (Organização Mundial de Saúde) tinha todos os registros e relatórios referentes àquela primeira pandemia, em que foram contabilizadas cerca de mil mortes. Humildemente, constato que toda aquela experiência que foi recolhida e até exposta em um simples tratado de medicina interna, para mim, como médico de trincheira, não ajudou em nada na tomada de decisões imediatas frente à quantidade inconcebível de opiniões, indecisões, atrasos e outros problemas que recebemos. E posso me perguntar: a OMS é útil hoje? E as autoridades de saúde pública dos governos são úteis?(3)
Determinantes sociais da saúde
Pode parecer que falar de economia e política quando estamos arriscando vidas seja uma provocação, mas a saúde pública enquadra-se nesse espaço. Se me perguntam o que é saúde pública, devo responder que TUDO é saúde pública. Hoje, cada decisão de governo ou de uma instituição supranacional tem a ver com algum aspecto que, se for seguido por você – que está lendo este artigo – logo mostrará sua relação e impacto em uma questão de saúde: planejamento urbano, regulamentação da pesca, educação, mercados, regulação de costas, tipos de agricultura, turismo, tipos de automóveis que circulam nas ruas… cada política pública, cada lei ou decisão pública está impregnada de efeito direto ou indireto sobre a saúde física, mental e social do indivíduo e da coletividade. E temos visto a globalidade de um mundo que está cada vez mais interconectado, não apenas digitalmente, mas físicamente, devido à nossa capacidade de movimentar pessoas ou mercadorias.
Essa visão já é um clássico desde que epidemiologistas estabeleceram os chamados determinantes da saúde, apontando que os básicos não eram a genética e nem mesmo a presença de um sistema de saúde de alta qualidade (que certamente tem seu papel protetor), mas sim os determinantes sociais e econômicos que afetam a população como um todo. E dou um exemplo atual: nos Estados Unidos, a população afroamericana é a que está recebendo o maior impacto do vírus, sendo que os números relativos à pandemia correspondem aos grupos sociais com menos recursos tecnológicos para fazer teletrabalho, por exemplo. A incapacidade de realizar o teletrabalho supõe muitas coisas: que não há recursos para o mínimo de tecnologia, que não há know-how e que o trabalho efetuado não é intelectual. E isso sem falar no efeito em crianças em idade escolar. E o vírus – como sempre foi e infelizmente será – ataca os mais fracos. Porque os obriga a não ficar em casa, a sair para “fazer a vida”. E isso acontece em qualquer outro lugar do planeta.
O que o modelo de saúde integrativa tem a oferecer?
O modelo que propomos de medicina e saúde integrativa pode mudar toda a realidade? Sabe-se que esse modelo surge basicamente tentando responder a um conjunto de fatos, como mudança demográfica (envelhecimento da população) e mudança epidemiológica (de quadros agudos para crônicos), onde a medicina ortodoxa só sabe fazer uma coisa: polimedicar. Ato que beneficia apenas um terceiro: a poderosa indústria farmacêutica. Não beneficia o paciente, não faz com que ele seja saudável, só ajuda os acionistas e administradores de poderosas corporações farmacêuticas. Diante de uma demanda de atendimento ilimitado, diante da burocratização da relação médico-paciente, diante da necessidade do cidadão de ser parte ativa de sua saúde, o sistema precisa de uma mudança. E o modelo de medicina e saúde integrativa oferece essa mudança, porque proporciona algo antigo (na forma como em grande parte praticava-se a medicina no passado), mas faz isso contando com os recursos dos tempos atuais.
E agora uma pergunta: você pode ajudar? Certamente que sim. Em 2020, vimos como nenhum país sozinho pode controlar essa crise. Presenciamos brigas por recursos entre diferentes países nos momentos de máxima tensão, como por exemplo tentando comprar recursos médicos necessários para manter as pessoas vivas em UTIs. Essa epidemia está sendo um teste em relação à força e elasticidade do sistema e está mostrando suas falhas. A pandemia não tem apenas implicações médicas, mas também sociais e econômicas. Estamos percebendo como, diante do desamparo, da precariedade e do enorme nível de desemprego, existem grupos e empresas que têm gerado fortunas descomunais e continuarão a gerá-las.
O modelo da medicina e saúde integrativa está inserido em um conjunto de ações que envolvem mudanças globais. Já existem inúmeros relatos e estudos sobre os benefícios econômicos – da redução dos gastos com saúde e da redistribuição de recursos – ao se implementar alguns dos instrumentos oferecidos pela medicina integrativa nas equipes de atenção básica à saúde. Imagine-se o papel redutor de patologias metabólicas (obesidade, síndrome metabólica, hipertensão, diabetes, doenças cardíacas, etc.) que poderia ser alcançado apenas com a incorporação de nutricionistas nessas equipes. Somente com a introdução desses profissionais, sem contar com os resultados que poderiam ser obtidos por meio de uma visão integrativa das dietas, das normas alimentares e da educação nutricional ou ainda da incorporação de um programa regrado de exercícios físicos, supervisionados por pessoas especializadas. Duas ferramentas básicas e simples que gerariam redução de problemas, número menor de consultas, internações, intervenções cirúrgicas e exames desnecessários e diminuição no consumo de medicamentos. É claro que isso interessa a todo mundo… mais ou menos. E por que não é feito?
Desconheço o cenário brasileiro, mas olhando para o espanhol continuo sem entender o porquê. Posso pensar em desconhecimento e posso pensar em seguir a linha do dinheiro. Tenho visto como no Japão diversos responsáveis por municípios e bairros reúnem-se para estudar, analisar e ouvir propostas de ajuda entre diferentes setores da população em face de uma crise de saúde ou ambiental. Isso é chamado de “braço social” da medicina integrativa. Então, deve haver uma vontade política para poder implementar o modelo ou parte dele. E não é necessário que haja visão política de “esquerda”, pois no Japão esse tipo de iniciativa é promovido pelo partido governante, que é de caráter liberal.
Todos nós sabemos que a saúde não tem “um negócio”, mas a doença sim. Observem-se os benefícios que foram gerados na bolsa de valores após o simples anúncio de um efeito potencial – que ainda não tinha sido comprovado cientificamente ou publicado – de futuras vacinas. A quem esse anúncio beneficiou? O escândalo é tão grande que até o JAMA (The Journal of the American Medical Association) aceitou uma carta encaminhada ao diretor por um dos pesquisadores que denunciou publicamente os eventos(4). Esses são os grupos de barreira para que a medicina integrativa avance nos programas públicos.
Diante da dúvida de que em algum dia os programas de medicina integrativa serão regulamentados dentro de modelos padronizados de saúde pública, seja nas escolas de formação, seja nos sistemas de atenção básica, tenho que me rearmar na ideia de continuar a promover essa forma de fazer e praticar a medicina, partindo do pressuposto de que o trabalho dos profissionais de saúde é apoiar o cuidado com as pessoas, sua saúde e meio onde vivem, levando em consideração sua realidade cultural e crenças e estimulando sua participação na comunidade. Qual é o grande problema de saúde? Para mim, é a pobreza, a desigualdade extrema e a mudança climática. É nesse contexto que a medicina integrativa deve estar.
Quero terminar este artigo cumprimentando fortemente os amigos de língua portuguesa. Não pode ser de maneira diferente neste momento. Especialmente em relação àqueles que sofreram os maiores impactos em sua saúde ou na saúde de seus familiares, assim como àqueles que perderam seus empregos. Esse vírus acelera processos históricos que já estavam em curso e também reforça algo que já conhecemos: uma concepção global do ser humano, do nosso pontinho no imenso espaço onde vivemos. Será necessária a colaboração de todos, porque estamos seguindo em um barco com um grande furo por onde entra água.
Dr. José F. Tinao Martin-Peña – Diretor médico da CMI – Clínica Medicina Integrativa, em Madrid, na Espanha e membro fundador da SESMI – Sociedade Espanhola de Saúde e Medicina Integrativa.
Fontes
(1) M. Foucalt descreveu o conceito, em outubro de 1974, durante uma conferência sobre medicina social, realizada numa universidade do Estado do Rio de Janeiro, no Brasil. Roberto Esposito e outros desenvolveram a ideia. Chul-Han fala sobre psicopolítica.
(2) Síndrome respiratorio agudo grave. Benito Hernández, M. N., Marcos Maeso, M. A., em Viriasis respiratoria, cap. 310, Farreras-Rozman, 16ª ed. – 2008. Elsevier.
(3) Cumulative Number of Reported Probable Cases of Severe Respiratory Sindrome (SARS) https://www.who.int/csr/country/2003_05_14/en/
(4) https://jamanetwork.com/journals/jama/fullarticle/2772764