Musicoterapia e audição musical: uma reflexão sobre ouvir música

Falar sobre musicoterapia é sempre um desafio, por se tratar de uma área do conhecimento relativamente nova e híbrida. Estamos sempre transitando entre ciência e arte, o que não é uma tarefa simples. Conclui meu bacharelado em musicoterapia em 1991 e, desde então, venho trabalhando como musicoterapeuta na área clínica. Em 1995, iniciei minhas atividades como professor, na formação de musicoterapeutas e em cursos diversos. São 29 anos de maravilhosas experiências na promoção de saúde através da música e na divulgação e formação de novos profissionais dessa nobre profissão.

Este artigo intenciona promover uma reflexão sobre questões importantes e que de certa maneira simples, como pude observar na minha trajetória, são promotoras de relevantes transformações nas pessoas. A partir de alguns conceitos, espero despertar no leitor a importância de renovarmos nosso encontro com a música, que se dá por meio da audição musical.

A música é portadora de uma universalidade raramente encontrada em um estímulo. Quando utilizada criteriosamente, seu potencial de mobilização pode ser intensificado, tornando a audição musical uma experiência diferenciada com um poder transformador inestimável. Assim, um salto de qualidade é alcançado ao expandir a função de entretenimento para uma função terapêutica e de promoção de saúde. É nesse ponto que começamos a conhecer melhor a musicoterapia.

Nossa jornada será visitar uma espécie de “antessala” da musicoterapia, conhecer alguns pilares que compõem o alicerce da atuação do musicoterapeuta e, assim, contribuir para que cada um possa extrair alguma aplicabilidade do potencial terapêutico da música, buscando aproximar as pessoas em geral dos profissionais musicoterapeutas, para que os serviços que temos para prestar sejam cada vez mais indicados e cheguem aos que necessitem deles.

Audição musical

A audição musical é entendida aqui sob duas possibilidades. De um lado, como a prática comum de ouvir música, que está sempre associada a outra atividade cotidiana, delegando assim à música um papel secundário, pois o foco da atenção normalmente está dirigido à outra atividade. E, sob outro aspecto, como o ouvir música em concerto, quando o que foi proposto acima é invertido e a música assume, então, o foco da atenção do ouvinte.

Percebe-se também uma distinção de postura. Passiva, quando se está envolto por sons, musicais ou não, involuntariamente, o que acontece o tempo todo, uma vez que é possível apenas diminuir ou aumentar a intensidade do som e nunca privar-se dele. E ativa, quando se procura privilegiar o som e a música, voluntariamente, o que requer adequação de um ambiente que favoreça condições acústicas (menor índice de interferências indesejáveis), disponibilidade mínima de tempo e seletividade.

Podem-se classificar dois modos básicos de ouvir música, como sugere Claudiney R. Carrasco, em Trilha musical: música e articulação filmica (1993): a audição sensorial e a audição intelectual.

A audição sensorial é o modo caracterizado pelas situações em que o ouvinte não volta toda a sua atenção para o discurso musical, quando ouve música enquanto desenvolve outra atividade, observando-a, portanto, como plano de fundo, ocupando um espaço secundário em sua percepção consciente.

A audição intelectual é aquela que catalisa a atenção para o discurso musical, permitindo ao ouvinte perceber e decodificar os aspectos morfológicos e estéticos inerentes à música, caso em que é observada como plano principal.

Esses modos referem-se a qualidades distintas da linguagem musical: seu aspecto estrutural e seu poder de envolvimento sensorial. Por meio do estrutural, podem-se notar relações rítmicas, melódicas, harmônicas, contrapontísticas, timbrísticas, formais. Pelo sensorial, que é mais subjetivo, podemos dizer se a música nos tocou ou se provocou uma resposta emocional específica.

Uma dimensão tecnológica

Na passagem do século XIX para o XX, dois eventos desencadearam mudanças nos hábitos, na linguagem e na cultura: Thomas Edison inventou o fonógrafo e os irmãos Lumière, o cinema.

Inicialmente, Edison concebeu o fonógrafo com o intuito de registrar reuniões de trabalho. Seu invento, curiosamente, revolucionou a música, até então apreciada apenas em apresentações ao vivo. A partir desse momento, seria possível apreciá-la sem a presença dos músicos, por meio do gramofone (a evolução do fonógrafo para fins musicais). Sem saber, Edison viabilizou uma revolução cultural no que tange à música, com possibilidades mercantis para uma indústria, que se tornaria soberana (a indústria fonográfica), até o aparecimento de outra tecnologia (MP3) no final do século XX e as sucessivas inovações do século XXI.

No cinema, os irmãos Lumière viabilizaram o surgimento de uma nova arte, de uma nova linguagem: a imagem em movimento. Lembre-se que, inicialmente, o registro e reprodução de som/música e o registro e reprodução de imagem em movimento caminharam e evoluíram separadamente. Como afirma Claudiney Carrasco, “no estudo do cinema mudo, notamos que, nos primeiros anos, a ausência de som obrigou os realizadores dos filmes a desenvolverem uma série de recursos técnicos, estéticos e de linguagem que viabilizaram o cinema enquanto arte narrativa. Como exemplo de alguns recursos, observamos o uso de legendas, a explicitação do signo gestual através da pantomima dos atores e, especialmente, o desenvolvimento das técnicas de montagem, que vieram a se tornar uma das grandes especificidades da linguagem cinematográfica. Outro aspecto importante é o fato de os filmes mudos terem sido sempre acompanhados por música, desde as primeiras exibições comerciais”. Recorde-se que, nesse caso, a música era executada ao vivo.

O próprio Edison contribuiu nos avanços tecnológicos para trazer ao cinema a sincronização de imagem e sons e assim aproximar as duas novidades. Uma nova linguagem nascera: o audiovisual, que se tornaria um fenômeno cultural. As gerações que viriam a receber essa nova linguagem estariam cada vez mais “presas” a ela, com o advento da TV e, consequentemente, uma nova mídia, que assumiria o poder de formadora de opinião, transformando as relações éticas (princípios) e morais (conduta) da sociedade. Essa nova linguagem é uma amálgama de linguagens artísticas próprias.

No final do século XX, temos a explosão do videoclipe. Aqui se nota a sincronização sonoro-visual, através da montagem de planos e sequências, de acordo com a estrutura temporal. Temos como resultado o ritmo visualizado somado à sua percepção auditiva, constituindo, mais que a sincronicidade dos dois, uma nova forma audiovisual, o videoclipe. Essa linguagem ganharia proporções de frenesi entre os jovens.

Como consequência, assistimos a um afastamento das formas tradicionais de entretenimento e relação com a cultura, em virtude do grande desenvolvimento e facilidade de acesso às formas audiovisuais e da comodidade dos registros fonográficos que evoluíram e que atingiram, com o CD e a tecnologia digital, um padrão de qualidade que possibilita uma experiência sonora, em termos de fidelidade, compatível com o concerto ao vivo, com a comodidade, controle, conforto e economia de estar em casa.

As possibilidades que a tecnologia trouxe – ouvir uma grande orquestra, com obras de livre escolha, podendo repetir ou interromper, quantas vezes quiser –– em vez de aproximar o público da diversidade cultural, estimular o acesso livre (democrático) aos repertórios mais diferenciados e reforçar a identidade cultural dos povos em confronto com a globalização, lamentavelmente serviram mais a propósitos mercantilistas do que culturais, provocando uma inversão do proposto, um imperialismo cultural que reforça a reprodução de padrões exteriores, levando a uma alienação mascarada por um discurso de pseudoliberdade.

Na passagem do século XX para o XXI, pode-se observar o declínio dessas instâncias estabelecidas, advindas da transformação dos processos de informação desencadeados pela internet. A liberdade proposta pela internet ainda está se estabelecendo, trazendo consigo o problema da exclusão digital. Mas o importante é verificar as evidências que já indicam uma transformação no que tange à música, como a queda anunciada da indústria fonográfica, provocada pela tecnologia MP3 e a exploração do streaming.

Parece que o momento é propício para usufruir todos os benefícios que a tecnologia criou. Se outrora a tecnologia provocou um afastamento da verdadeira arte, o apogeu da falta de qualidade, que se possa apontar para novas possibilidades de atuação dessa mesma tecnologia e contribuir para uma nova realidade.

Uma dimensão sociocultural

Incentivar a cultura, sua manutenção e seu desenvolvimento e preservar sua memória pode ser o caminho para uma nação que almeja reconhecer sua identidade. Ao longo da história, essa tarefa foi atribuição do poder instituído, que gradativamente diminuiu seu interesse no incentivo e investimento à cultura. Atualmente, pode-se notar o resultado desse processo quando as manifestações culturais vinculam-se e submetem-se aos interesses econômicos do discurso político/econômico do momento. Submeter a cultura à economia é traçar seu destino de forma determinista ao fracasso. O setor privado tem sido responsável por boa parte dos investimentos nas atividades culturais. Resta a indagação de como conseguir driblar tal situação, num momento de crise global acentuada, quando também o setor privado afasta-se dos investimentos em cultura e a falência do Estado no setor é evidente. Medidas simples, criativas e de pouco investimento podem resultar em alternativas para suprir certas deficiências.

Uma delas pode ser sugerida por esse trabalho: oferecer um resgate às audições musicais intelectuais, proporcionando maior contato com a cultura do país e do mundo, para valorizar e posicionar a diversidade no mundo globalizado.


Raul Jaime Brabo – Possui graduação em Musicoterapia e mestrado em Administração (gestão de pessoas) pela Universidade Municipal de São Caetano do Sul – USCS. Tem experiência na área de prevenção e tratamento de estresse, com ênfase em método próprio de musicoterapia denominado AudioMusicoTens. Foi professor e coordenador da Faculdade de Musicoterapia da FMU – Faculdades Metropolitanas Unidas, durante 18 anos e professor convidado em cursos de pós-graduação e cursos livres na Universidade Metodista, Universidade São Marcos, PUC, Fefisa e Unisantanna. Como músico, fundou e atua no grupo “Les Folies”, especializado em gaita de fole e outros instrumentos medievais.