Mapa da escuta: musicoterapia para o autoconhecimento e autocuidado – Parte I

Das muitas relações estabelecidas entre seres humanos e música, o uso terapêutico destaca-se em diversos períodos históricos. No início do século XX, no entanto, essa relação passa a ser sistematizada com o surgimento da musicoterapia, uma profissão e disciplina que se propõe investigar e utilizar experiências musicais auxiliando as pessoas no tratamento, reabilitação, prevenção e promoção de saúde. Desde então a musicoterapia vem se desenvolvendo mundialmente em diversas áreas de atuação e com diferentes populações.

Em consonância com as práticas de prevenção e promoção de saúde, será apresentada neste artigo uma proposta de musicoterapia que visa ao (auto)conhecimento e (auto)cuidado para adultos, através da investigação, envolvimento e desenvolvimento da dimensão sonora musical, a partir de uma perspectiva experiencial. Dentre as várias relações que são possíveis se estabelecer entre música e experiência humana, na proposta intitulada MAPA DA ESCUTA privilegiam-se as relações existenciais (música como forma de autoconhecimento) e de cuidado (música para o bem-estar e “bem-mover-se”). MAPA, na verdade, é também uma sigla e quer dizer Música, Arte, Poesia e Afeto, que são as bases que colocam em movimento essa abordagem de escuta.

Para tanto, será realizada uma série de artigos nos quais se pretende conduzir um percurso reflexivo (e experiencial) sobre a presença da dimensão sonora musical na vida humana, especialmente no que tange à relação desta com oportunidades de conhecimento e cuidado através e a partir da experiência musical.

Este primeiro artigo da série abordará a dificuldade e os desafios para se definir música com base numa perspectiva única e objetiva, devido à sua caraterística interdisciplinar e ampla presença na vida humana, o que nos indica a possibilidade de investigar e compreender a música sob uma perspectiva relacional e experiencial. Nesse sentido, será contextualizado também o surgimento da musicoterapia como profissão.

Música: dificuldade de uma definição única e universal

A música está tão fortemente vinculada à experiência humana que muitas vezes se torna difícil defini-la e delimitar sua extensão. Ela pode ser considerada como objeto artístico, produto cultural, mercadoria da indústria cultural, ritual, mas antes de tudo está presente no cotidiano das pessoas nas mais diversas situações.

Costuma-se dizer que não há relatos de sociedades sem música, porém, as características, funções e formas de vivenciá-la podem variar amplamente ao se considerar o campo do estudo que a investiga, a época e a cultura em que ela se insere e a experiência particular de cada indivíduo.

Este último aspecto é o foco desta série de artigos, que tem o propósito de refletir sobre como as pessoas percebem, vivenciam e atribuem sentido às experiências musicais em suas histórias de vida, e sobre as possibilidades de utilizar tais experiências como formas de cuidado e conhecimento.

Apesar da proposta desta série de artigos ter um caráter mais experiencial, buscando conectar os leitores com a temática de acordo com suas próprias vivências musicais, este primeiro artigo terá ainda um formato mais acadêmico, convocando várias “vozes” que nos ajudarão a construir e contextualizar uma narrativa que ilustre a amplitude e o alcance da música na vida humana, bem como a sua relação com as diversas áreas do conhecimento.

Para Beatriz S.Ilari e Roseane C. de Araújo, no livro Mentes em Música, “a ubiquidade da música na vida humana tem sido tema de diversas investigações científicas. Arqueólogos procuram evidências acerca das origens da música humana em vestígios materiais. Psicólogos sociais fazem uso de entrevistas, surveys e grupos focais para tentar compreender o papel da música na construção de identidade de jovens. Neurocientistas usam técnicas ultramodernas para investigar o processamento cerebral e os padrões musicais – pequenos e grandes – em músicos, não músicos, pacientes com lesões cerebrais, crianças e adultos, entre outros. Musicólogos buscam por padrões em análise de obras específicas de um ou mais compositores. Educadores musicais procuram compreender de que maneira se dá a aprendizagem musical de bebês, crianças e adultos, para, assim, balizarem suas atividades práticas em sala de aula”.

Diferentes sentidos e atribuições designados à música são apontados também por Maria de Lourdes S. Zampronha, no livro Da Música: seus usos e recursos, onde ela lembra que “a música é um poderoso agente de estimulação motora, sensorial, emocional e intelectual, informa a psicologia. Sendo assim, não favoreceria o desenvolvimento de nossas potencialidades e a maturação de nossa equação pessoal? A música tem o poder de evocar, associar e integrar experiências, diz a psiquiatria. Sendo assim, não beneficiaria o equilíbrio de nossa vida psíquica? Ela é uma atividade temporal, perceptiva, uma atividade de criação, recriação e/ou escuta que nunca é passiva, ensina a musicoterapia. O seu exercício não estimularia, desse modo, a capacidade de análise e síntese do desenvolvimento das funções psíquicas superiores do educando? A música se relaciona sempre com o indivíduo, pois nasce de sua mente, fala de suas emoções e de sua gama perceptual. Não possibilitaria, igualmente, a harmonia de nossa vida psicológica e mental?”

A diversidade no que se refere aos campos de estudos que se dedicam à música não é característica apenas do mundo contemporâneo. Como afirma Lia Tomás, em Música e Filosofia: estética musical, “a história da música ocidental, quando discutida juntamente com suas fontes primárias, apresenta em sua construção teórica e estética uma variedade de ideias. Nos antigos tratados de teoria musical encontram-se discussões sobre metafísica, ciência, ética, educação, política, religião, bem como questões mais específicas – prática instrumental, estilística, construção de instrumentos ou notação. No entanto questões musicais também são encontradas em escritos sobre matemática, cosmologia, poética, retórica, arquitetura ou estética; temos ainda noções mais gerais de música presentes na literatura e na poesia”.

Edward A. Lippman mostra ainda que “a história do pensamento musical coincide, em parte, com várias áreas do estudo histórico – como a história da filosofia ou da ciência – e que isso ocorre porque a música apresenta como traço peculiar uma íntima relação com vários aspectos da atividade humana, o que acarreta um difícil isolamento ou mesmo uma definição restrita a uma única área do pensamento” (grifo nosso).

Os musicólogos Carl Dahlhaus e Hans Heinrich Eggebrecht, em nota de advertência no livro “Que é a Música?”, discorrem sobre a impossibilidade de defini-la de uma maneira única e objetiva, afirmando que “a música é sem conceitos. Nisto se baseia o seu poder, aqui residem os seus limites. No seu poder, ela consegue estender-se a toda a existência humana, em todas as suas ocupações e situações. E nos seus limites pode utilizar-se, é funcional em todas as direções, e podem atribuir-se-lhe as mais diversas funções. A pergunta “que é a música?”, à luz da insistência com que é feita desde a antiguidade, é de natureza excepcional. Esta pergunta constitui, ainda hoje, a reação a um vazio que nos inquieta. Ninguém sabe o que é a música, ou ainda, cada qual o sabe de outro modo e, em última análise, só para si” (grifo nosso).

O percurso narrativo das citações anteriores demonstra que o caráter interdisciplinar da música, bem como sua relação plural com a experiência humana, cria dificuldades para defini-la de forma objetiva, sendo impossível considerá-la fora do contexto de relação humana.

Do ponto de vista histórico, há no início do século XX um momento de amplificação dos estudos sobre a música a partir de outros enfoques, expandindo-se as possibilidades de pensá-la além da perspectiva artística. Para Paulo de Tarso Salles, em Aberturas e Impasses: o pós-modernismo na música e seus reflexos no Brasil, o pós-guerra surge como um marco inevitável do século XX. O musicólogo Enrico Fubini vê na vanguarda do pós-guerra um “operar filosófico por excelência”, em que obra de arte e teoria andam juntas. Na música, essa reflexão tem como consequência a abertura para outras possibilidades “não artísticas” de função “sociolinguística”, “sociopsicológica”, didática, educativa, etc. Ou seja, “a música transcende a função de objeto estético e se torna uma forma atuante de compreensão epistemológica da realidade” (grifo nosso).

Dentre as aberturas para o estudo da música enquanto experiência humana, na primeira metade do século XX, destaca-se o surgimento da musicoterapia como profissão e campo de análise, que emerge dos estudos sobre as relações entre música e desenvolvimento humano, com a finalidade de utilizar tais relações em forma de processo terapêutico para promover saúde e qualidade de vida.

Musicoterapia como campo da experiência musical 

O uso terapêutico da música pode ser encontrado em diversos momentos na história da humanidade, com diferentes funções e finalidades. Mas é só no século XX, especialmente após a Segunda Guerra Mundial, que a musicoterapia começa a se sistematizar enquanto profissão. De acordo com Marly Chagas e Rosa Pedro, “a musicoterapia surgiu através de uma interação interdisciplinar e casual. Nos Estados Unidos, por exemplo, músicos profissionais foram contratados com a finalidade de distrair os egressos da guerra, que sofriam problemas tanto de ordem física quanto de ordem emocional. Os resultados positivos foram percebidos imediatamente. A experiência musical provocou uma mudança no quadro clínico daquelas pessoas. A equipe de saúde logo percebeu que, para o sucesso dessa atividade, não bastava que este profissional fosse músico; era necessário que ele também fosse um terapeuta”.

Paralelamente ao evento do pós-guerra, a música também passou a ser utilizada em manicômios, causando reações em pacientes que se encontravam catatônicos. Havia uma mobilização desses pacientes que estavam inertes, imóveis ou alheios ao mundo. Ao entrarem em contato com a música, passavam a dançar, cantar e se expressar. Como forma de interagir com essas pessoas e dar sentido às reações que elas manifestavam, não apenas escutas musicais passaram a ser oferecidas, mas estabeleceu-se também a prática musical através de bandas e coros terapêuticos.

Diversos conteúdos e manifestações emergiram dessas práticas musicais e os músicos que desenvolviam esse trabalho começaram a perceber que apenas os conhecimentos musicais eram insuficientes para explicar o porquê de tais reações à música. Do que adiantava excitar, estimular e favorecer a expressão se eles não compreendiam como e por que a experiência com a música trazia tais benefícios, se não sabiam o que fazer com tais efeitos e reações despertadas?

Em busca de tais respostas, esses músicos recorreram a fundamentações nas práticas vigentes de estudo da mente humana, como o modelo médico-biológico e as linhas da psicologia (psicanálise, psicologia comportamental e psicologia humanista). Dessa forma, tem início o estudo interdisciplinar entre música e a área da saúde, que tem como um de seus frutos o surgimento da musicoterapia como profissão.  Nesse contexto, surgem as primeiras faculdades de musicoterapia na década de 50, primeiramente nos Estados Unidos e Europa e, depois, na América Latina. No Brasil, a musicoterapia iniciou-se na década de 70, com o primeiro curso de especialização em Curitiba e, logo em seguida, com o primeiro curso de graduação no Rio de Janeiro.

Segundo a World Federation of Music Therapy, “musicoterapia é a utilização profissional da música e seus elementos para a intervenção em ambientes médicos e educacionais e no cotidiano com indivíduos, grupos, famílias ou comunidades que procuram otimizar a sua qualidade de vida e melhorar suas condições físicas, sociais, comunicativas, emocionais, intelectuais, espirituais e de saúde e bem-estar. A investigação, a educação, a prática e o ensino clínico em musicoterapia são baseados em padrões profissionais de acordo com contextos culturais, sociais e políticos”.

Para um dos maiores epistemólogos da área, o norte-americano Kenneth E. Bruscia, “musicoterapia é tanto disciplina como profissão. Como disciplina, ela é organizada por um corpo de conhecimentos e práticas, essencialmente preocupado com os processos pelos quais os musicoterapeutas usam a música para ajudar seus clientes a alcançarem saúde. Como profissão, a musicoterapia é organizada por um grupo de pessoas que partilham, utilizam e avançam o corpo teórico de conhecimentos e práticas através de seus trabalhos como clínicos, supervisores, teóricos, pesquisadores, administradores e educadores”.

Definir musicoterapia, no entanto, sempre esbarrará com a problemática semelhante de se definir música ou experiência musical de uma forma objetiva, como já foi abordada anteriormente. Pelo fato de diversos sentidos e funções serem atribuídos à música, suas definições podem diferir ao se considerar o contexto histórico, a cultura em que está inserida, o campo de estudo que se dedica à sua investigação e a experiência singular de cada pessoa que a vivencia. Tal problemática de definição estende-se à musicoterapia, somando-se a esta os diferentes sentidos e significados que são atribuídos aos termos terapia e saúde ao redor do mundo, em diferentes contextos e culturas.

Porém, o que poderia ser visto como um problema, acaba gerando possibilidades de utilizações da musicoterapia em diversos campos de atuação, dialogando com diferentes áreas do conhecimento e teorias epistemológicas. Segundo Bruscia, em Definindo Musicoterapia, ela “não é um tema isolado em si mesmo, mas sim um híbrido de duas disciplinas (música e terapia), bem como muitas disciplinas que agrupam ou se sobrepõem a essas duas, como artes, saúde, medicina, educação, psicologia, ciências humanas e assim por diante”.

Dessa forma, pode-se dizer que a musicoterapia é uma profissão transdisciplinar, pois emerge do entrelaçamento de diferentes saberes, especialmente daqueles que dialogam com os campos das artes e saúde, mas transborda tais conhecimentos, construindo um novo campo de saber, que passa a apresentar características próprias que a delimitam e a diferenciam de outras áreas que tem tanto a música quanto a saúde como objeto de investigação e ofício.

Apesar de a musicoterapia constituir-se a partir de um encontro entre arte, ciência e humanidades, como mostra Bruscia, houve em um primeiro momento uma maior aproximação com a área da saúde e da psicologia e os modelos biomédicos. A atuação musicoterapêutica estabeleceu-se inicialmente no campo da educação e da saúde mental, em especial com pessoas não-verbais ou com um funcionamento verbal divergente da normativa, como por exemplo, aquelas com transtornos do espectro autista e psicóticos, ou ainda com crianças com hiperatividade e problemas comportamentais. Apenas posteriormente, começou a existir uma maior abertura aos contextos sócio-históricos, culturais, artísticos e ecológicos, através do diálogo com o campo das humanidades e artes, com disciplinas como filosofia, musicologia, estética, fenomenologia, etnomusicologia, antropologia e sociologia.

Aos poucos, a área de atuação musicoterapêutica foi se expandindo e esse é um processo gradativo que se amplia cada vez mais, devido ao fato de a presença e as possibilidades de utilização da música na vida humana serem extremamente amplas. Quando se remete ao campo de atuação, atualmente fala-se em musicoterapias clínica, hospitalar, escolar, organizacional, preventiva, social e ecológica.

No contexto de abertura para novas práticas de musicoterapia com uma visão mais ecológica e integral do ser humano, e concebendo a experiência subjetiva e relacional da experiência musical é que se insere a proposta musicoterapêutica do  MAPA DA ESCUTA, que busca favorecer o envolvimento e o desenvolvimento da dimensão sonora musical como forma de autoconhecimento e autocuidado. Mas isso já é tema dos próximos artigos.


Priscila Bernardo Mulin – Bacharel em Musicoterapia, especialista em Dependência Química (UNIFESP) e mestra em Educação, Arte e História da Cultura (MACKENZIE). Atua na formação de musicoterapeutas há mais de uma década, realizando escuta profissional e supervisão com enfoque fenomenológico-existencial. Foi docente e supervisora de estágios da Graduação em Musicoterapia da FMU, onde atuou também como docente responsável pela Clínica-Escola de Musicoterapia e coordenadora do Curso de Pós-Graduação em Musicoterapia Preventiva e Social. Atualmente dedica-se ao MAPA DA ESCUTA, uma proposta autoral que promove o envolvimento e o desenvolvimento da dimensão sonora musical como forma de (auto)conhecimento e (auto)cuidado.

 

Fontes

Bruscia, Kenneth E. Topics, phenomena, and purposes in qualitative research. In: Wheeler, Barbara L. Music Therapy Research: quantitative and qualitative perspectives. Phoenixville: Barcelona Publishers, 1995.

Bruscia, Kenneth E. Definindo Musicoterapia. Trad. Marcus Lepoldino. 3. ed. Dallas: Barcelona Publishers, 2016.

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Mulin, Priscila Bernardo. Investigando a Experiência Musical. Dissertação (Mestrado em Educação, Arte e História da Cultura) – Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2015.

Salles, Paulo de Tarso. Aberturas e impasses: o pós-modernismo na música e seus reflexos no Brasil, 1970-1980. São Paulo: Ed. UNESP, 2005.

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