Psicotraumatologia: o estudo do trauma psicológico e seus efeitos

Desde a publicação da terceira versão do DSM III (Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais), em 1980, momento em que foi instituída a categoria nosológica específica para Transtorno de Estresse Pós-Traumático, o TEPT, pudemos observar amplas mudanças e novos alcances na compreensão a respeito dos distúrbios relacionados aos efeitos do trauma psicológico, também chamado psicotraumatismo, assim como um aumento na interlocução com novas disciplinas e abordagens visando a clarificar os fatores que determinam a traumatização, seus efeitos, tratamento e prevenção.

A Associação Americana de Psiquiatria (APA), ao instituir essa categoria nosológica específica, não só demarcou a necessidade do reconhecimento da traumatização e seus efeitos nos diagnósticos terapêuticos, como também estimulou a abertura de novos estudos e compreensões ainda mais direcionados aos fenômenos relacionados diretamente aos traumas, como, por exemplo, o reconhecimento dos traumas de guerra à medida que combatentes retornavam dos campos de batalha e com eles surgia a necessidade de pesquisas e tratamentos direcionados aos fenômenos decorrentes desse tipo de traumatização.

Podemos considerar que esses marcos acima citados demarcaram o desenvolvimento da psicotraumatologia como campo de estudo do trauma, com os seguintes objetivos: compreender de que forma os eventos traumáticos causam a traumatização, o que determina imunidade e/ou vulnerabilidade à traumatização, como a traumatização relaciona-se com adoecimentos psicológicos, fisiológicos e neurológicos e, em especial, novos caminhos de tratamentos efetivos e de prevenção.

Os avanços nos estudos dessa temática e a interlocução com novas disciplinas, especialmente com a neurociência e os estudos de neuroimagem, trouxeram novas e relevantes alterações no entendimento sobre os fenômenos decorrentes do trauma. Podemos destacar alguns desses novos entendimentos sobre os tratamentos e prevenção ao trauma, como por exemplo as recorrentes pesquisas e atualizações sobre a definição inicial do que é trauma e sobre os impactos no cérebro, na fisiologia e no desenvolvimento psicológico advindos de experiências traumáticas.

Como exemplo da rápida evolução no entendimento sobre trauma durante as últimas décadas, apresento a opinião recente de um dos pioneiros dessa nova forma de diagnosticá-lo, o psiquiatra, neurocientista e autor do best-seller “O Corpo guarda as marcas”, Bessel Van der Kolk, uma das maiores autoridades no assunto da atualidade, que iniciou seus estudos e tratamento de trauma com veteranos de guerra na década de 70 e relatou as primeiras definições de transtorno de estresse pós-traumático. Essas primeiras definições eram direcionadas a definir que pessoas traumatizadas necessariamente foram expostas a eventos extraordinários, que estão fora da experiência humana normal do dia a dia. Em retrospecto, ele diz hoje que isso mostra o quão ignorantes e limitadas eram as perspectivas a respeito de trauma. Atualmente, para Kolk, “o trauma está no meio de todos nós, está por todos os lados, uma em cada quatro mulheres foi sexualmente abusada ou assediada em sua infância. Uma em cada quatro crianças experimentou violência física, a verdade é que o mundo está cheio de pessoas traumatizadas”.

Dessa forma, não podemos mais considerar como trauma apenas aquele relacionado a eventos de ordem do extraordinário, assim como precisamos compreender como de fato a traumatização ocorre em diversos tipos de eventos estressores.

Trauma e estresse

Hoje, sabe-se que o trauma não está presente apenas nas guerras ou nos eventos trágicos e/ou imensos. Ele é realmente ordinário à vida estressante moderna. Pesquisas apontam que eventos traumáticos ou estresse contínuo estão na base do desenvolvimento de diversas formas de transtornos, em especial de transtornos de ansiedade e depressivos.

A partir da constatação impressionante de que o Brasil é atualmente um dos países com o maior número de consumidores de ansiolíticos do mundo, apresentando índices de ansiedade na população comparáveis aos de países em guerras, e levando em consideração os dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), que mostram que o Brasil possui o maior contingente de pessoas ansiosas do mundo: 18,6 milhões de brasileiros (9,3% da população), podemos nos perguntar: de quantas formas o trauma está presente para nós, brasileiros?

Assim, quando falamos sobre trauma hoje, graças aos estudos no campo da psicotraumatologia, não falamos mais somente sobre “traumas de guerra” ou grandes violências. Os estudos já apontam e nomeiam a existência de traumas episódicos e cotidianos, traumas de desenvolvimentos (experiências adversas na infância), traumas transgeracionais, traumatizações vicariantes e traumatização secundária, sendo que as categorias estão ficando cada vez mais claras, estudadas e específicas.

Outro avanço significativo que vem nos permitindo nominar e melhorar o tratamento de experiências traumáticas é a compreensão do trauma na fisiologia, o entendimento de como o corpo como um todo se desorganiza diante de experiências estressoras não processadas e como suas marcas no funcionamento cerebral tornam-se cada vez mais visíveis e formam então os desfechos clínicos. Já sabemos compreender os impactos do trauma no funcionamento do sistema nervoso central e autônomo. O trauma não é só psicológico, ele também é especialmente fisiológico.

Os impactos provocados no corpo por situações estressoras das mais diversas ordens, desde situações comuns, ordinárias até condições altamente estressantes, entram na cena do trauma como grande fonte potencial de traumatização e criam um espectro muito maior de pesquisas do que o pensado inicialmente.

Mesmo que hoje ainda existam debates sobre o que é o trauma, já estamos mais próximos de alguns consensos a respeito da temática: trauma que gera traumatização é algo que acontece em você devido a algo que ocorreu com você (experiências estressantes, contínuas e não processadas ou eventos trágicos) e o que ocorre em você como resultado da vivência traumática será informado pelo funcionamento do seu corpo, através da apresentação de sintomas das mais diversas ordens, sendo uma das possibilidades o TEPT (transtorno de estresse pós-traumático), porém não a única. Adoecimentos diversos, tanto de ordem dos transtornos mentais como de ordem fisiológica, podem ser desfechos clínicos de traumatização. Atualmente, já podemos diferenciar o transtorno do estresse pós-traumático (TEPT) do estresse pós-traumático, sendo esse uma possível fonte de outras formas de adoecimento (físico e mental).

Com a amplitude dos estudos no campo da psicotraumatologia, outro ponto próximo ao consenso é o de que o que nos informará efetivamente se a pessoa vivenciou um trauma que resultou (ou não) em traumatização é o desfecho proveniente do encontro entre o organismo, a experiência, os recursos, o suporte e os apoios disponíveis diante dos eventos potencialmente traumáticos, e não apenas o evento em si (mesmo que trágico).

Assim, podemos observar pessoas que passaram pelo mesmo evento trágico e reagiram de formas completamente distintas diante do mesmo estímulo estressante. A resiliência de cada organismo, construída em sua experiência de vida individual, é que nos informará se haverá perda de saúde ou crescimento pós-traumático na travessia de traumas. Essa especificidade de reação de cada indivíduo diante de um evento potencialmente traumático é um dos motivos que torna esse campo de estudo tão amplo e tão necessário, assim como a compreensão do estresse como base de inflamação do organismo e consequente adoecimento com diversas formas de apresentação.

Trauma e traumatização

Estar vivo pressupõe vivenciar desafios, traumas e, consequentemente, desenvolver a capacidade de sobreviver e adaptar-se frente aos mesmos. Todos os dias pessoas do mundo inteiro sofrem traumas repentinos e inesperados – um ferimento, uma perda, uma agressão, abusos (de diversas ordens), acidentes, ataques, traições e muitos outros eventos que podemos compreender como experiências potencialmente traumáticas. Diante disso, é possível considerar que todo ser humano já sofreu uma experiência potencialmente traumática, mas não necessariamente uma traumatização.

Atravessar uma situação/evento desafiante, ficar ferido e até mesmo devastado por tal situação/evento é o limiar entre uma situação de estresse (desafios/trauma) e a traumatização. Essa diferenciação entre trauma e traumatização é um entendimento importante no campo da psicotraumatologia. Como vimos anteriormente, a traumatização é um resultado que dependerá da reação de cada organismo (pessoa) diante de uma situação ou evento potencialmente traumatizante. Uma vez que ocorra a traumatização é que teremos derivações de desfechos clínicos diversos.

Quando esses eventos ou desafios acontecem muito rapidamente, de forma demasiadamente intensa e/ou em época/idade precoce, de maneira que não seja possível para a pessoa, por meio de suas próprias forças ou com a ajuda de alguém, absorver, processar, liberar e transcender os efeitos dessas vivências – e assim retornar ao estado basal de segurança e homeostasia que existia antes do evento, e, além disso, quando ela não encontrar a oportunidade de reparação dessas “impossibilidades”, ocorrerá a traumatização. A traumatização é o resíduo que permanece em nós, no nosso corpo em funcionamento, mesmo após o término da experiência desafiadora. Esse resíduo de estresse que se mantém no organismo é uma fonte de adoecimentos de diversas ordens.

A traumatização é uma ruptura do equilíbrio homeostático do organismo, é a ruptura do senso de segurança e do senso de integralidade do indivíduo, um rompimento de limites que não suportaram a quantidade de carga de estresse gerada pelo evento (ou eventos) potencialmente traumático(s). A traumatização acontece quando o organismo é forçado além de sua capacidade adaptativa para regular estados de ativação. Assim, o sistema nervoso traumatizado se desorganiza, falha em seu processamento e não consegue se recompor. Isso se manifesta em uma fixação global das respostas de estresse que foram ativadas durante o evento traumático e em uma perda importante na capacidade rítmica de autorregulação após a ativação, que irão compor o funcionamento futuro do organismo.

Em meados de 1990, o Dr. Vince Felitti e o Dr. Bob Anda conduziram um grande  estudo a respeito das experiências adversas da infância – Adversity Childhood Experiences (ACE), que representou um marco nas pesquisas sobre traumas precoces, impulsionando tratamentos, prevenções e novos campos de estudo e discussões na psicotraumatologia. Juntos, eles perguntaram a 13.494 adultos sobre seu histórico de exposição a experiências adversas na infância e as classificaram com a sigla ACE (Adversity Childhood Experiences). Essas experiências incluem violência sexual, física ou emocional, negligência física ou emocional, doenças mentais, dependência química ou prisão dos pais, separação ou divórcio dos pais e violência doméstica. Para cada SIM a essas experiências era adicionado um ponto no quadro de ACE, sendo que o que eles fizeram foi relacionar a pontuação de ACE com resultados na saúde.

As  descobertas foram impactantes e relevantes para a compreensão dos efeitos do trauma na fisiologia e no cérebro, sendo duas dessas descobertas/conclusões muito importantes, como se vê a seguir.

1) ACEs são altamente comuns: 77% da população estudada tinha ao menos uma ACE e 12,6% tinham quatro ou mais ACEs, o que fortaleceu o entendimento sobre trauma citado acima, ou seja, que o trauma é mais comum e cotidiano do que se considerava quando do surgimento desse campo de estudo.

2) O estudo apontou a relação “dose-reação” entre as ACEs e os resultados de saúde: quanto maior a pontuação de ACEs, piores os resultados na saúde. Exemplos dos apontamentos: O estudo mostrou que uma pessoa com pontuação de ACE de 4 ou mais apresentava um risco relativo para doença obstrutiva crônica dos pulmões 2,5 vezes maior do que alguém com 0 de pontuação ACE. Para hepatite, o risco também era 2,5 vezes maior e para depressão, 4,5 vezes maior. Pessoas com pontuação de 7 ou mais em ACEs tinham o triplo de chances de morrer de câncer no pulmão e 3,5 vezes mais riscos de isquemia cardíaca, que é a maior causa de morte do Estados Unidos.

Ao observarmos esses números, parece ser claro e fazer sentido terapêutico pensarmos que, se a pessoa tem uma infância difícil, fica mais propensa a desenvolver vícios como fumar ou beber ou fazer coisas que vão prejudicar a saúde. Isso, em princípio, é apenas um comportamento destrutivo, não necessariamente um dado científico. Porém, é nesse ponto que entra a ciência, a interlocução entre as novas disciplinas e os avanços dos estudos de neurociências e neuroimagem, citados no início deste texto.

Hoje, esses novos avanços tecnológicos e estudos permitiram compreender de que forma a exposição precoce às adversidades (traumas) afetam o desenvolvimento do cérebro e do corpo, especialmente das crianças e adolescentes. Foram constatados impactos em áreas como o núcleo accumbens, o centro do prazer e da recompensa do cérebro, que está envolvido no processo de dependência e compulsões ao inibir/gerir as reações do córtex pré-frontal necessárias para o controle de impulso, registrando-se impactos/danos na função executiva, que é a região essencial ao aprendizado. Também foram registradas, através de ressonâncias magnéticas, mudanças significativas após traumatização nas amígdalas, que constituem o centro de reação ao medo no cérebro.

Dessa forma, podemos dizer que há razões neurológicas para que pessoas expostas a altas doses de adversidade (traumas) sejam mais propensas a apresentarem comportamento de alto risco, vícios e baixo controle de impulso.

E mesmo que a pessoa não adote o comportamento de risco, ainda será mais propensa a desenvolver doenças cardíacas e câncer, devido ao funcionamento alterado do eixo hipotalâmico-pituitário-adrenal, que é o sistema de reação ao estresse do corpo e do cérebro, cuja função é comandar nossas respostas de sobrevivência (luta e fuga) diante de adversidades e também gerir respostas de nosso sistema imunológico.

Em resumo: como funciona basicamente esse eixo hipotalâmico-pituitário-adrenal (eixo HPA)? Imaginemos que você está caminhando em uma floresta e avista um leão. Imediatamente seu hipotálamo enviará um sinal de alerta à glândula pituitária, que, por sua vez, enviará um sinal à glândula adrenal para liberar hormônios de estresse (adrenalina/cortisol). Com isso, o coração acelera, as pupilas dilatam, as vias aéreas se expandem e o corpo fica pronto para lutar ou fugir do leão. Se você realmente estiver na floresta precisando lutar ou fugir de um leão, essa reação corporal é maravilhosa, porque ela guiará suas possibilidades de sobreviver e salvar sua vida. O problema torna-se complexo para o corpo assimilar e processar devidamente essa quantidade de estresse quando não estamos na selva e não há um leão de verdade, já que o “leão” com o qual temos que lidar aparece todos os dias na vida como formas de violência, negligências e outras experiências desafiadoras que são experimentadas pelo nosso corpo da mesma maneira, com o mesmo impacto e com os mecanismos que temos para nos salvar do leão.

Em especial crianças e adolescentes, que experimentam adversidades recorrentes, maus tratos, negligências, violências estruturais e tantas outras formas de não se sentirem seguros no mundo para crescerem e se desenvolverem, são as mais impactadas. Com essa frequência de “leões”, o sistema de resposta ao estresse é ativado repetidas vezes, sem completar o seu ciclo de processamento e deixando assim de ser adaptável ou de efetivamente salvar a vida, para tornar-se mal adaptado e prejudicial à saúde da pessoa por estar cronicamente ligado na fisiologia do estresse, gerando inflamações importantes no organismo. Crianças são especialmente sensíveis a essa ativação recorrente de estresse porque seu corpo e cérebro ainda estão em desenvolvimento e aprendendo a adaptar-se para sobreviver. Altas doses de adversidade também afetam o sistema imunológico e o sistema endócrino em desenvolvimento, podendo até interferir na maneira como o DNA é lido e transcrito (Figura 1).

Efeitos do estresse em crianças
Figura 1 – Comparação entre o cérebro de uma criança com vida saudável e outra submetida a situações recorrentes de estresse.

Como podemos ver na imagem, os efeitos do trauma não são apenas psicológicos, mas também e especialmente fisiológicos. Como já foi dito, seus danos podem estar na origem da maior parte das doenças com base inflamatória que enfrentamos hoje.

As bases do trabalho com trauma através do corpo

Conforme vimos acima, quando o indivíduo vive uma experiência estressante, potencialmente traumática, irá necessariamente acessar suas respostas de sobrevivência para lidar com o evento. A traumatização é o que acontece quando essas respostas acessadas para adaptação e sobrevivência às situações não se desativam completamente após o término do evento desafiador ou quando eventos desafiadores tornam-se constantes e ordinários, fazendo então com que o funcionamento do organismo seja mediado por estresse crônico.

Peter Levine, psicólogo, neurocientista e criador da técnica de tratamento de traumas denominada de “experiência somática”, postula com veemência que o trauma é fisiológico e que reside na desregulação do sistema nervoso. Para Levine, os sintomas traumáticos não são causados pelo acontecimento desencadeador em si mesmo. Eles vêm do resíduo congelado de energia que não foi resolvido ou descarregado, devido ao fato do corpo não ter acessado um senso de segurança suficiente para “desligar” suas respostas de estresse. Esse resíduo permanece preso no sistema nervoso, onde pode causar danos ao corpo e ao funcionamento psíquico, sendo então o corpo o caminho para liberação dessa carga de estresse residual e não apenas uma mudança de significado via narrativa.

A traumatização é um desfecho clínico decorrente de uma experiência de trauma cujo evento tenha sido maior que a capacidade do indivíduo de processá-lo fisiologicamente e não apenas psicologicamente. A traumatização ocorre quando o organismo não conseguiu por si mesmo recuperar seu estado de equilíbrio e homeostasia anterior ao(s) evento(s) potencialmente traumático(s).

As respostas de sobrevivência para lidar com os diversos desafios da vida são mediadas pela carga de estresse necessária para responder a eles. Assim, para que luta, fuga e congelamento sejam efetivos em sua função de sobreviver aos eventos da vida, ou seja, aos traumas, será preciso que essas respostas se completem e que a carga de estresse gerada no corpo do indivíduo seja utilizada e liberada (descarregada) ao término da situação. Para que aconteça essa liberação das cargas que medeiam as respostas de sobrevivência, o organismo do indivíduo precisará encontrar a sensação de segurança que informe ao seu organismo que o perigo já passou e esse “informe” deve ser sentido fisicamente e não apenas entendido racionalmente. Quando a pessoa pode sentir corporalmente essa “informação” de segurança, aí, então, as defesas das respostas de sobrevivência podem ser desarmadas sem acumular resíduos de estresse no corpo. É assim que a luta pode acabar, que a fuga pode ser encerrada dentro da fisiologia e não apenas em ações externas e visíveis e que a saída pode ser encontrada no caso de congelamento/dissociação, estados esses que têm a função de proteger a vida, mas não de se perpetuar na vida.

Infelizmente, muitas vezes isso não acontece e, devido a não acontecer, o desfecho do estresse na fisiologia é que determinados aspectos e funcionamentos da pessoa que viveu o trauma acabam “não saindo” da experiência e configurando em seu corpo a traumatização e seus respectivos sintomas traumáticos.

Conforme explica Levine, “embora os seres humanos traumatizados não permaneçam, de fato, fisicamente paralisados, eles se perdem em um tipo de nevoeiro de ansiedade, desligamento parcial crônico, dissociação, depressão prolongada e torpor”. O autor relata ainda que, mesmo que consigam seguir a vida, as pessoas com traumas criam um tipo de “congelamento funcional”, ou seja, perdem o prazer de viver, por carregarem um fardo que lhes tira a energia, e ficam então “sobrevivendo”, mantendo consigo essas respostas de sobrevivência incompletas com adoecimentos diversos.

Quando compreendemos que é preciso fornecer a esse corpo, que teve que desencadear respostas de sobrevivência (luta/fuga/congelamento) para lidar com os desafios/traumas, o apoio necessário para acessar o senso de segurança que permitirá que essas mesmas respostas sejam liberadas, descarregadas e desativadas na fisiologia, encontramos um caminho para o processamento (tratamento) de experiências traumáticas.

Stephen W. Porges, psicólogo e neurocientista norte-americano, criador da teoria polivagal, defende que a cura para o trauma é a segurança. Em sua visão, não há outro caminho que melhor oportunize a fisiologia a se liberar, se autorregular e se regenerar do que a conexão com o senso de segurança e processos de corregulação em vínculos seguros. A teoria polivagal de Porges é hoje conhecida como a teoria da conexão e da segurança.

Além dos nomes já citados nesse texto, como os de Bessel Van der Kolk, Peter Levine e Stephen W. Porges, podemos observar o surgimento crescente de profissionais e pesquisadores que estão cada vez mais alinhados à visão do trabalho com trauma via corpo e conexão segura, trazendo novas perspectivas e caminhos para a abordagem do processamento de traumatizações. Gostaria de citar alguns nomes cujos trabalhos considero como de extrema relevância dentro dessa temática, como o PhD Eugene Gendlin, que foi pioneiro no apontamento para o corpo como caminho de mudanças efetivas em psicoterapia. Ele criou a focalização e o reconhecimento da sensopercepção como manejo e forma para o processamento de experiências não integradas no organismo. Falecido em 2017, teve sua obra premiada diversas vezes pela Associação Americana de Psicologia e pela Associação Americana de Psicoterapia Corporal, em razão de sua contribuição para o desenvolvimento da psicoterapia experiencial.

Outro nome a ser destacado e o do PhD Gabor Maté, cuja teoria enfoca a conexão entre a saúde mental e corporal. É médico, escritor, especialista brilhante em trabalho com trauma e vícios, autor de livros sobre TDAH, estresse, psicologia do desenvolvimento e vício e colunista regular do Vancouver Sun e do The Globe and Mail.

O PhD Eller R. S. Nijenhuis, psicólogo e pesquisador, passou mais de 30 anos atendendo pacientes dissociados, ganhou prêmios por seu trabalho clínico e pesquisas sobre dissociação e escreveu diversos artigos profissionais e capítulos de livros. É autor de Somatoform Dissociation: Phenomena, Measurement, and Theoretical Issues (2004 – Norton) e coautor de The Haunted Self: Structural Dissociation and the Treatment of Chronic Traumatisation (2006 – Norton). Foi também diretor do conselho executivo da International Society of the Study of Trauma and Dissociation (Sociedade Internacional de Estudo do Trauma e da Dissociação).

O PhD Allan N. Schore, psicoterapeuta e teórico interdisciplinar, faz parte do corpo docente da Escola de Medicina David Geffen, na Universidade da Califórnia e é autor de diversos artigos acadêmicos e dos livros Affect Regulation and the Origin of the Self (1999), Affect Regulation and the Repair of the Self (2003), Affect Dysregulation and Disorders of the Self (2003) e The Science of the Art of Psychotherapy (2012). É também editor da série Norton sobre neurobiologia interpessoal.

O PhD Daniel J. Siegel é psiquiatra infantil, pesquisador na área de vínculo, proponente do papel da prática de mindfulness na cura do trauma de infância e professor clínico de psiquiatria na Escola de Medicina da UCLA, onde faz parte do corpo docente do Centro de Cultura, Cérebro e Desenvolvimento e atua como codiretor do Mindful Awareness Research Center (Centro de Pesquisas de Percepção de Mindfulness). É autor dos livros Parenting from the Inside Out (2004,), The Mindful Brain (2007), The Mindful Therapist (2010), Mindsight: The New Science of Personal Transformation (2010), The Whole-Brain Child (2011), The Developing Mind (2012) e Pocket Guide to Interpersonal Neurobiology (2012).

No Brasil, destaca-se a brilhante atuação de duas mulheres que vêm apontando de forma precisa o trabalho com trauma via corpo: da Dra. Liana Netto e Dra. Denise Gimezes Ramos.

A Dra. Liana Netto é psicóloga, docente e escritora de diversos artigos sobre trauma e traumatização. Sua tese de doutorado apresentou os “Aspectos clínicos e epidemiológicos do trauma psíquico e da impulsividade nos transtornos de estresse pós-traumático e de personalidade em adultos jovens” (2015), de forma pioneira. No período de 2009 a 2021, coordenou e lecionou para a Pós-graduação em Psicotraumatologia no Instituto Junguiano da Bahia, formação reconhecida e chancelada pela Escola Baiana de Medicina. Atualmente, ministra a formação em psicotrauma, em formato de curso livre e on-line.

A Dra. Denise Gimenez Ramos é psicóloga e professora titular do Programa de Mestrado e Doutorado em Psicologia Clínica da PUC-SP. Coordena o Núcleo de Estudos Junguianos e o Núcleo Avançado em Psicossomática, juntamente com a Dra. Mathilde Neder, desde 1994. Com especial ênfase em psicossomática do estresse e dos eventos traumáticos, o núcleo possui o Centro do Trauma, o qual desenvolve um programa de pesquisa e atendimento psicoterápico junto à população vítima de estresse, violência e trauma psicológico. Com esse objetivo, realiza pesquisas que visam a compreender os fenômenos psicossomáticos envolvidos na violência e o aperfeiçoamento de técnicas de prevenção e tratamento para as vítimas de trauma. A Dra. Denise é autora de várias obras e seu livro “A Psique do Corpo” está traduzido para o francês, inglês e russo.

Esses são apenas alguns dos nomes e dos conhecimentos diversos que continuam a ser produzidos sobre trauma e traumatização que podemos nos beneficiar em conhecer.

Uma sociedade informada sobre trauma

São muitos os entendimentos e caminhos de processamentos das experiências traumáticas que precisam ser alcançados por todos nós enquanto sociedade e não apenas por profissionais da psicologia ou da psiquiatria.

A seguir, neste final, apresento alguns aspectos de interesse coletivo sobre trauma que acredito na relevância de serem amplamente divulgados.

Conforme vimos, o trauma está mais presente e recorrente do que se julgava. A vida moderna, baseada em estresse e na desconexão de si, do outro, da natureza e de processos autorregulatórios, tornou-se um campo de adoecimento com números cada vez mais alarmantes.

A pandemia de Covid-19 foi um marco de trauma coletivo que ainda reverberará de inúmeras formas com os traumas deixados sem processamento. Podemos dizer, de certa forma, que estamos vivendo uma epidemia colateral na saúde mental, devido a todo o estresse vivenciado durante a pandemia. E não estamos falando sobre isso da forma que seria tão importante para a sociedade como um todo.

Quando realmente compreendermos que as crianças e adolescentes estão em desenvolvimento e precisam de ambientes seguros e com conexões estáveis com seus cuidadores para crescerem fortes, saudáveis e resilientes e, inclusive, para serem capazes de lidar com os desafios da vida que virão, e que violências e/ou negligências serão determinantes para seu funcionamento e saúde durante toda a vida, poderemos eleger melhores práticas como pais, professores, médicos, cuidadores e nas diversas formas de atuação em sociedade.

Deixar um bebê com menos de um ano chorar para “aprender” a se acalmar sozinho, para “não ficar mimado”, é uma das piores práticas que poderíamos eleger como mamíferos, que dependem de outros de sua espécie para construir seu senso de segurança e crescimento saudável. Um bebê com menos de um ano de vida ainda não desenvolveu suas capacidades autorregulatórias do sistema nervoso autônomo e está em fase de aprendizagem desses processos justamente na relação com seus cuidadores. Somente após sua maturação, é que ele será capaz de se “acalmar sozinho”. Nem que esse bebê quisesse conseguiria tal feito com seis, sete ou oito meses… Se soubéssemos disso com maior clareza, já estaríamos dentro da máxima de que segurança e conexão são não apenas o tratamento, como também a prevenção de uma traumatização para toda a vida.

Há muitos profissionais presentes na cena de um trauma: socorristas, enfermeiros, assistentes sociais, políticos, advogados, médicos. A lista é grande e cada uma dessas atuações pode ser a porta de entrada e/ou a porta de saída da traumatização.

Um socorrista que socorre alguém de um acidente, por exemplo, e sabe que a sua intervenção deve primeiramente proporcionar conexão e segurança ao seu socorrido, oferecerá a este melhores chances de atravessar o trauma do acidente sem ou com baixa traumatização. Esse socorrista informado sobre trauma se tornará um agente nessa consciência sobre trauma.

Um professor que procura criar ambientes seguros e conectados com seus alunos, diminuindo ativações de estresse, irá não apenas facilitar os aprendizados como será um agente nessa consciência sobre trauma.

Um médico que cuida da conexão e do vínculo ao informar um diagnóstico ao seu paciente, reduzindo fortemente o impacto da noticia e consequentemente as chances de traumatização motivada por diagnóstico, será um agente nessa consciência sobre trauma.

Um pai e uma mãe que não agridem, não negligenciam seus filhos e conectam-se com suas crianças serão os maiores agentes nessa consciência sobre trauma e esse é um desejo para todos nós.

Uma vez que uma vida sem traumas não é possível, que possamos então ser agentes que facilitem a saída de traumatizações quando elas ocorrerem e que, em especial, possamos ser agentes de prevenção, ao construirmos uma sociedade mais orientada para as conexões e os cuidados conosco e principalmente com nossas crianças.


Profa. Cecília Lauriano – Mestranda em Psicologia Clínica, com ênfase em psicossomática do estresse dos eventos traumáticos, pela PUC-SP, pós-graduada em Psicotraumatologia e em Psicologia Analítica, trainer internacional em Focalização, pedagoga, psicoterapeuta e docente. Autora do livro “A Função do Vínculo no Trabalho com Trauma”. Atualmente, dedica-se a apoiar e formar profissionais da área de desenvolvimento humano, saúde mental e emocional, oferecendo cursos e formações em Psicotraumatologia (em parceria com a Dra. Liana Netto) e Focalização do Relacionamento Interior e cursos livres com o método autoral Terapeuta de Si e Meu Raciocínio Clínico (em parceria com o Prof. Fábio Abagabir), além de lecionar na pós-graduação de Psicossomática e Psicotraumatologia do Instituto Junguiano da Bahia.

 

Referências bibliográficas

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