Slow medicine: uma medicina sem pressa

Em 1986, na Piazza de Spagna, em Roma, houve uma manifestação, liderada pelo jornalista e ativista Carlo Petrini, contra a abertura de um restaurante fast food no local. A inauguração, nesse lugar icônico da capital da Itália, afrontava a cultura culinária e gastronômica italiana, que é baseada em alimentos tradicionais e na convivência entre as pessoas e que parte do preparo dos alimentos até seu consumo. Uma das expressões do modo de vida italiano, de maneira coletiva, manifesta-se no ato de alimentar-se. A mobilização em Roma foi a origem do movimento slow food, hoje presente em mais de 160 países, que tem como lema um alimento “bom, limpo e justo”, valorizando o produtor local, a gastronomia local e a tradição alimentar e questionando o complexo industrial que se tornou grande parte da cadeia de produção e distribuição da comida. “Alimentar-se é um ato político”, afirmam as lideranças do movimento.

O movimento slow food gerou uma série de vertentes, que questionavam a celeridade da vida contemporânea e propunham sua desaceleração, como por exemplo as cidades slow (CittáSlow), a slow parenting e a slow fashion, tendências que se distribuíram em inúmeras atividades humanas, através do resgate de uma vida onde a pressa e a velocidade, quando possível, fossem deixadas de lado, para que o momento presente pudesse ser apreciado integralmente. A tecnologia tem seu papel – não temos como imaginar a vida contemporânea sem ela, mas por vezes toma tal dimensão em nossas vidas que simplesmente nos tornamos apêndices dela. Ela dá as regras de nosso trabalho, de nossa convivência, de nossas escolhas.

Na medicina, não é diferente. Particularmente nas últimas décadas, a tecnologia tomou a frente do cuidado médico, e aspectos ancestrais da prática médica, em particular o vínculo do médico (e de outros profissionais de saúde) com o paciente, foram paulatinamente sendo substituídos pelas grandes corporações médico-hospitalares e pelo complexo farmacêutico-industrial. A medicina, ao invés de uma profissão eminentemente enraizada no relacionamento humano, passou a ser mercantilizada. A saúde e a doença tornaram-se atividades quase comerciais e os médicos e profissionais de saúde, parte dessa grande engrenagem.

Em 2002, o cardiologista italiano chamado Alberto Dolara escreveu um editorial para a revista de medicina Italian Heart Journal, hoje descontinuada. O artigo chamava-se “Un invito ad una Slow Medicine” – Um convite à Slow Medicine, e nele ele desenvolvia uma interessante ideia: de que os princípios da slow food também poderiam se fazer presentes na prática médica. Nesse artigo, ele propunha a desaceleração do processo de tomada de decisões em algumas situações clínicas, o uso mais cauteloso e ponderado da tecnologia e o fortalecimento da relação médico-paciente como ponto fundamental do fazer médico, como algo benéfico para médicos e pacientes.

Esse artigo cunhou pela primeira vez a expressão slow medicine e uma bela e consistente história se criou, lentamente, a partir das ideias que foram nele esboçadas.

Slow medicine no mundo

A slow medicine desenvolve-se como conceito já há duas décadas e não é objeto deste artigo debruçar-se com mais detalhes sobre essa história. Mas aos poucos, de maneira bastante diversificada e peculiar, várias iniciativas foram brotando no mundo, com a publicação de alguns livros nos Estados Unidos, de diferentes autores, que construíram uma visão pessoal da slow medicine. Dennis McCullough, Katy Butler e Victoria Sweet publicaram livros onde abordavam o envelhecimento e a capacidade de observação clínica e de recuperação em unidades de cuidados de longa permanência, bem como as situações de final de vida. Um olhar slow sobre a ciência médica e os excessos da tecnologia e uma visão crítica do uso excessivo de recursos diagnósticos e terapêutica foram trabalhados por grupo de médicos vinculados à Harvard University e à University of California.

A Itália lançou-se na frente novamente, com a constituição da Associação Italiana de Slow Medicine, em 2011. Por ocasião de seu primeiro congresso, foi criado o Manifesto da Slow Medicine, que propunha uma medicina sóbria – “onde fazer mais não quer dizer fazer melhor”; respeitosa – que afirma que “os valores, as expectativas e os desejos das pessoas são diferentes e invioláveis” e justa – em que é fundamental a oferta de “cuidados adequados e de boa qualidade para todos”. A Associação Italiana de Slow Medicine permanece bastante ativa e já realizou seu 5º congresso, em Florença, em fevereiro de 2020.

Uma iniciativa que, embora menos marcante, tem importância histórica para a slow medicine, foi a criação do Instituto Holandês de Slow Medicine, que elaborou os 10 princípios da slow medicine.

Slow medicine no Brasil

E no Brasil? É interessante que os 10 princípios elaborados pelo instituto holandês provavelmente tiveram maior repercussão no Brasil do que na Holanda.

A expressão slow medicine chegou à mídia brasileira pela primeira vez quando da publicação do livro do cardiologista italiano Marco Bobbio, “O Doente Imaginado”, graças ao esforço do professor Dario Birolini. Na ocasião, o Dr. Bobbio falou sobre slow medicine nas páginas amarelas da Revista Veja.

O movimento começou a tomar força no País a partir da publicação do seu site https://www.slowmedicine.com.br/, cujo propósito era divulgar a filosofia e os princípios da slow medicine para a língua portuguesa.

No decorrer dos últimos quatro anos, o movimento brasileiro constituiu-se, juntamente com o italiano, como um dos mais ativos do mundo. O site é regularmente atualizado, com materiais produzidos em sua maioria por médicos e profissionais de saúde brasileiros.

Recentemente, durante a pandemia pelo novo coronavírus ainda grassando no mundo, uma série de artigos foram escritos, buscando criar um olhar slow sobre uma série de questões que essa grave crise sanitária trouxe à tona.

Medicina baseada em evidências

O movimento slow medicine tem como referencial teórico a medicina baseada em evidências. Porém, mantém um olhar respeitoso e colaborativo com outros saberes. Parte-se do pressuposto de que a ciência oferece respostas para inúmeras questões relativas à saúde, mas que o psiquismo e a coletividade humana construíram, ao longo de milênios, olhares possíveis para o sofrimento humano e perspectivas de intervenções, no que tange à promoção e prevenção da saúde e como formas complementares de alívio de sintomas e melhora da qualidade de vida em algumas situações.

Portanto, a slow medicine não se configura como uma prática alternativa, tendo como sua base fundamental a medicina convencional. Mas é simpática às práticas alternativas (evitamos o termo medicina integrativa pelo fato de estar sendo usado de forma muito pouco crítica e cuidadosa, particularmente nas redes sociais, justificando abordagens terapêuticas pouco seguras e mesmo potencialmente nocivas às pessoas), na medida em que muitas vezes podem significar menos intervenções, diminuir a medicalização do sofrimento humano e melhorar a qualidade de vida.

O sétimo princípio da slow medicine diz: “O melhor de dois mundos: medicina tradicional sempre que indicada. Medicina complementar, se possível, preferencialmente baseada em evidências. Segurança em primeiro lugar, eficácia quando possível. Sem metáforas da luta ou guerra contra a doença. As palavras de ordem são recuperação, equilíbrio e harmonia.”

A slow medicine, baseada em seus pilares – tempo, relação médico-paciente, compartilhamento de decisões e uso parcimonioso da tecnologia, sugere um novo paradigma para a prática médica, resgatando seus valores ancestrais e atualizando-os, na perspectiva de harmonizar o primado da tecnologia, presente na medicina contemporânea, com as humanidades médicas. E, dessa forma, levar a uma maior satisfação dos pacientes e dos profissionais de saúde no sagrado ato de cuidar.


Dr. José Carlos Aquino de Campos Velho – Médico geriatra e clínico geral, formado pela Universidade Federal de Santa Maria, no Rio Grande do Sul. Pós-graduado em Práticas Corporais da Medicina Tradicional Chinesa, com foco em Tai Chi Chuan da Família Yang, pela Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo. Editor do website Slow Medicine Brasil – Medicina sem Pressa.