A vida é uma repetição do que vivemos dentro do útero

Até pouco tempo atrás, acreditava-se que bebês nasciam como folhas em branco. Entretanto, a tecnologia do ultrassom e fotografias intrauterinas do sueco Lennart Nilsson evidenciaram que sentidos e emoções já se iniciam dentro do útero.

A médica e psicanalista italiana Alessandra Piontelli, que acompanhou bebês desde os ultrassons até alguns anos depois do nascimento, constatou que muitos comportamentos registrados durante a gestação, inclusive a forma de gêmeos interagirem, tinham uma grande tendência de serem replicados.

Não existe outro momento da vida em que nos desenvolvemos mais que no período da gestação. As experiências primárias vivenciadas durante esses meses criam nossas emoções mais básicas, crenças, sentimentos e conclusões, os quais vão direcionar nossa percepção de mundo.

Nossa vida é uma repetição desses scripts criados a partir das vivências intrauterinas, que podem ser solidificados e reforçados ou amenizados, dependendo do que acontece posteriormente na infância. O que passamos ao longo da vida será registrado através de um filtro que confirma a experiência inicial.

Memória do corpo

A menor célula do corpo humano, o espermatozoide, encontra-se com a maior célula, o óvulo, que vão se multiplicando, a princípio em células-tronco, para posteriormente cada uma seguir seu processo de diferenciação, até formar o indivíduo.

A questão é que essas células têm memórias. Nosso sistema nervoso central ainda não está desenvolvido, mas o que ocorre durante o período intrauterino fica registrado através da memória celular, memória muscular, bioquímica e até extracorpórea, visto que pessoas que passaram por experiência de quase morte relatam tudo que acontecia ao redor em detalhes.

O médico psiconeuroimunologista e pesquisador Paul Pearsall pesquisou pacientes que passaram por transplante, especialmente de coração, e constatou que muitos deles mudavam hábitos, comportamentos, temperamentos e preferências depois de receberem o órgão de outra pessoa. Essa é uma das comprovações de que as memórias também podem ser armazenadas nas células.

A neurocientista e farmacologista Candace Pert diz que não tem como separar a mente do corpo porque o cérebro é fluído, ou seja, é banhado através de hormônios transmissores e neuropeptídios que fluem através do corpo.

O psiquiatra britânico Ronald David Laing também levantou essa ideia, já na década de 1970, de que as memórias do período intrauterino continuam se propagando na nossa vida, principalmente as do primeiro trimestre, momento crítico de desenvolvimento de todos os traumas, pois é quando estamos sendo formados.

Um exemplo de que o corpo armazena informações é o simples ato de andar de bicicleta. Aquele aprendizado está registrado no corpo, você pode passar anos sem montar em uma bicicleta e ao subir ainda saberá pedalar.

As pesquisas de William Emerson, pai da psicologia pré e perinatal, constataram que a cada semana da gestação há um órgão em período crítico de desenvolvimento, momento em que este está muito aberto a sofrer um trauma ou choque. O coração, por exemplo, começa a bater na terceira semana, quando normalmente a mãe descobre que está grávida. Se essa informação representou um susto para a mãe, se ela não desejava a criança ou ainda se ela passou por outros tipos de estresse, como a morte de um ente querido, sua resposta emocional negativa vai afetar diretamente o órgão do bebê que está se desenvolvendo.

Aprendizados primários

Acessar o trauma intrauterino é muito eficaz porque estaremos exatamente no lugar onde tudo começou. Também podemos e devemos trabalhar outros traumas que aconteceram ao longo da vida, mas o primeiro aprendizado foi registrado mais intensamente no corpo e o sistema já se fechou. Ir na raiz, no aprendizado original, acelera muito o processo de cura. Aprendizados ocorridos no momento da concepção estão muito enraizados em todo o nosso sistema, criando predisposições. Ao mudar a percepção decorrente desse período, outros traumas vão se curando de forma automática.

Pesquisas mostram que há diferentes formas dos bebês aprenderem no útero. Eles aprendem por exploração, condicionamento e associações. Estão o tempo todo explorando o ambiente ao redor. São ainda influenciados pelo ambiente externo e pela bioquímica que a mãe produz. Se ela tem um pico de ansiedade, o impacto que o bebê recebe é equivalente a tomar 600 xícaras de café.

Experimentos diversos comprovam que bebês também aprendem a partir do que acontece fora do útero. Evidências interessantes estudadas por David Chamberlain, um dos precursores da psicologia pré e perinatal, demonstram alguns casos, como o de um garoto que aos sete anos de idade foi estudar piano e surpreendentemente já conhecia partituras, pois sua mãe as estudava durante a gestação. Uma outra criança de cinco anos pronunciou, entre suas primeiras falas, uma palavra de língua estrangeira. Sua mãe havia dado aulas de inglês quando estava grávida.

Choques e traumas

Muitos traumas e choques específicos e bastante comuns podem ocorrer durante a fase perinatal, alguns deles em nível existencial, colocando a vida do feto diretamente em risco, como uma tentativa de aborto, situação em que o ser em formação não tem como se defender. Outro exemplo é a circular de cordão, quando o cordão umbilical está enrolado em alguma parte do corpo.

Traumas como esses podem gerar dilemas que ficam registrados de forma muito somática, já que, afinal, aquilo que está nutrindo o feto, o cordão umbilical, ao mesmo tempo está ameaçando sua vida.

Em geral, indivíduos que passaram por casos assim serão pessoas mais dramáticas, que se desestabilizam com qualquer sentimento mais profundo, pois situações emocionais do presente desengatilham esse drama primário de sobrevivência. Possuem também uma grande apatia. Falta-lhes energia e sentem-se paralisadas na vida, porque o sistema nervoso congelou. Costumam ainda ter medo de morrer sufocadas e não gostam de usar golas altas e correntes. Vale ressaltar que nenhum sintoma é regra. Cada indivíduo registra as informações de uma forma, mas são observadas, na maioria das vezes, essas características citadas.

São ainda pessoas que carregam um sentimento de impotência, pois a tentativa em vão de desenrolar o cordão umbilical registrou o aprendizado de que “por mais que eu tente, não consigo”.

Esse tipo de sentimento também é comum em quem possui a Síndrome do Gêmeo Desvanecido ou Evanescente. Aliás, esse é um dos choques mais comuns e intensos. 40% das gestações iniciam-se com mais de um feto, mas durante uma das fases um deles não sobrevive. Antigamente, esse índice era de apenas 20%, mas com os processos de inseminação in vitro a estatística quase dobrou.

Perder um irmão gêmeo ainda no útero é uma das maiores dores que um ser humano pode sentir, porque o vínculo com irmãos gêmeos chega a ser maior do que com os pais. É uma das experiências mais intensas que alguém pode ter. Por meio de ultrassonografia, é possível visualizar esse vínculo íntimo entre eles, que brincam, se tocam, se beijam e se abraçam. É um período de muita alegria. É a maior conexão e a experiência de integração mais completa que existe. Mas, em seguida, de repente, transforma-se em muita dor. É um contato íntimo com a morte, quando o ser ainda está chegando à vida.

A pessoa que vivenciou essa experiência de amor interrompido terá dificuldade de confiar e se conectar com outros, o que traz sentimentos de solidão, rejeição, abandono, traição, inconformismo e culpa para a vida. Carregam ainda uma relação peculiar com a morte, que se manifesta num profundo medo dela ou em um desejo de desafiá-la. Sentem um vazio que nada e ninguém completa, sensação de que sempre ficarão sozinhos, necessidade de agradar aos outros por medo de perder e dificuldade intensa com despedidas.

São diversos sintomas, manifestados de formas distintas em cada indivíduo, que precisam ser liberados em nível neurológico e somático. Um dos maiores especialistas na síndrome, Peter Bourquin, registrou seus estudos no livro o “Gêmeo Solitário”, escrito em conjunto com Carmen Cortés, onde apresenta mais de 50 testemunhos que nos permitem conhecer as múltiplas manifestações de ser um gêmeo sobrevivente.

Outro tipo de choque comum, porém geralmente com impacto menor, é o do gênero. Muitas vezes, os pais sonham em ter um bebê com um determinado sexo, assim como em várias culturas espera-se que o primogênito seja homem. Contrariar essa expectativa pode gerar na pessoa sentimentos de não ser aceita por ser quem ela, afastando-a de seu eu real, além de criar dificuldades na aceitação do próprio corpo e críticas sobre sua aparência.

A descoberta da gravidez pela mãe e o nascimento do bebê são dois momentos muito importantes, que podem deixar marcas profundas. Ao saberem que estão grávidas, algumas mulheres ficam muito felizes, pois aquele ser era muito desejado. Já outras tomam um susto, têm pensamentos negativos e até tentam abortar. Quer a rejeição seja apenas inicial, até que a mãe se acostume com a ideia, quer dure a gestação toda, o feto sente e absorve esse sentimento, já que não sabe discernir o que é dele e o que acontece fora, com os pais.

A pessoa que passou por essa situação terá o sentimento de que não é digna de ser amada, uma carência enorme e problemas em relacionamentos. Desde cedo, ela aprendeu que “quem devia me amar está me rejeitando, eu não sou bem recebida e não mereço estar nesse mundo”. O medo de rejeição e a busca por aprovação e validação da mãe tornam-se uma obsessão por toda a vida. Esse ser não tinha a clareza sobre os problemas pelos quais a mãe estava passando e mesmo que depois a família o ame incondicionalmente e lhe proporcione muitas experiências de amor disponível, seu sistema emocional já se fechou, pois nosso cérebro é programado para focar no negativo por questão de sobrevivência.

Já o parto deixa bastantes questões somáticas e viscerais, porque o processo de nascer é algo realmente muito físico, tanto em relação às contrações que acontecem dentro do útero quanto à passagem pelo canal vaginal.

Durante esse processo, podem ocorrer várias complicações, com sofrimento e risco para ambos, mãe e bebê, como ter que nascer de forma forçada, antes da hora, por fórceps ou por cesariana. O procedimento é muito necessário e bem-vindo para salvar vidas, mas infelizmente não é somente por essa motivação que ele está sendo realizado no Brasil, já que somos campeões no ranking mundial de cesarianas, questão muito bem relatada no documentário da Netflix “O Renascimento do Parto”.

Em uma cesariana, o bebê é manipulado e tem seus limites invadidos. Mesmo em partos naturais, há pouca interação entre o bebê e a mãe. Os bebês nascem e já são separados da mãe, passando por diversos procedimentos, para só então, por último, ter contato com ela. E esse contato físico do bebê com a mãe, que permite sentir o calor da pele e o olho no olho, é fundamental.

Em outras vezes, o bebê nasce prematuro e precisa ficar isolado na incubadora, o que é bastante traumático. A falta de contato faz o sistema emocional se fechar.

É importante destacar que não há uma regra ou uma causa única para um determinado sintoma, pois cada ser registra e acumula informações com percepções diferentes, até para o mesmo fato, o que é comumente evidenciado em casos de gêmeos idênticos.

Por isso, não é possível tirar conclusões sem investigar caso a caso. É preciso que cada pessoa explore sua própria história, para saber quais crenças foram criadas, quais são os “congelamentos” do seu sistema e se existem outras recapitulações.

Psicologia pré e perinatal

Várias pessoas emperram em seus processos terapêuticos, mas quando se alcança um acontecimento intrauterino, as peças começam a se desenrolar. Trabalhar essa fase é um processo bem mais profundo, que transformou a minha própria vida e a de muitas pessoas que acompanhei e conduzi.

Adultos acessam facilmente as memórias desse período, através de várias técnicas de regressão. Na verdade, o termo mais correto é egressão, porque o indivíduo mantém-se consciente durante todo o tempo, ou seja, não há o menor risco de “não voltar’, como alguns temem, pois são apenas lembranças. A regressão é um estado de consciência elevado e seguro.

As memórias podem ser acessadas por hipnose, toques, gestos, posturas e até em regressões realizadas em água quente, simulando o útero, um dos métodos que utilizo nas vivências pré e perinatais. Um simples gesto que ativa alguns grupos musculares específicos pode desengatilhar essas memórias. Algumas pessoas acessam tais lembranças de forma metafórica, com símbolos e cores.

Regredir é muito fácil, mas o mais importante são as intervenções que serão realizadas para descongelar o sistema, liberar choques e traumas e criar novos aprendizados.

É necessário antes preparar o sistema para que as memórias sejam acessadas de forma assertiva. A própria pessoa que está passando pela regressão vai fornecendo indícios e o profissional que conhece bem esse tipo de terapia tem um feeling para identificar qual a técnica mais adequada e o momento certo para aplicá-la.

Esse é um trabalho que precisa ser feito por alguém que tem domínio dos conceitos e das questões que envolvem o território intrauterino, pois intervenções específicas precisam ser feitas para não retraumatizar a pessoa e para que os choques sejam, aos poucos, liberados. Um choque é um trauma elevado à décima potência e não se resolve do dia para noite, requer um processo.

Somente lembrar e entender o que aconteceu, na maioria das vezes, não é o suficiente. É preciso liberar aquele choque e tudo que ficou encapsulado. É um processo feito a médio e longo prazos porque são muitas informações, choques e traumas que vão se acoplando antes mesmo da pessoa chegar à vida.

Entretanto, não somente traumas são acessados, há também muito material positivo. Não se descobre somente tragédia e dor, mas êxtase e experiência transpessoal. Regressões intrauterinas são uma janela para a espiritualidade, um momento de amor e conexão.


Manoel Augusto Bissaco – Terapeuta integrativo especializado em cura e resolução de traumas e estresse pós-traumático. Pioneiro em abordar abertamente a terapia pré e perinatal no Brasil, é hoje um dos maiores especialistas em choques intrauterinos. Desenvolveu ao longo de 11 anos de atuação diversos treinamentos, workshops e vivências imersivas com sua própria metodologia, criada a partir da integração de mais de 15 abordagens terapêuticas.