Biblioterapia como recurso terapêutico e humanizador

As histórias são universais, fazem parte da comunicação humana e estão presentes em nosso cotidiano desde sempre. Por meio das histórias, é possível aguçar a imaginação e compartilhar experiências, sentimentos e emoções.

No campo emocional, pode-se elaborar e vencer dificuldades, permitir a autoidentificação, propiciar a aceitação de situações desagradáveis, promover a resolução de conflitos e oferecer esperança(3-10-11-12).

A palavra biblioterapia tem origem grega e significa tratamento, cura ou restabelecimento por todo tipo de material bibliográfico ou de leitura(9-10-11-12).

Na Antiguidade, as histórias eram utilizadas como forma de entretenimento e, depois, como procedimento terapêutico em hospitais e manicômios, assim como em prisões.

Mas, somente a partir da década de 1930, a biblioterapia passou a ser vista como ciência e não somente como arte, como campo de pesquisa e de atuação profissional(10-11-12).

Ouaknin (1996) nos lembra que “a palavra livro vem de liber, palavra latina que quer dizer livre, liberdade e liberação pelo livro”.

A biblioterapia pode ser aplicada por meio de leitura solitária, acompanhada por outra pessoa (profissional mediador) ou em grupo. Conduz a uma reflexão e às múltiplas verdades, atribuindo sentido e oferecendo, ao leitor/ouvinte, o caminho da sua liberdade.

A biblioterapia é um processo dinâmico no qual o indivíduo (leitor ou ouvinte) vai se envolver com o personagem, com a trama ou com o desafio contido na história, promovendo a identificação e, a partir disso, vivenciar seus sentimentos. Haverá uma tensão emocional associada às suas questões (catarse) e, por último, o insight, quando o leitor/ouvinte reconhece a possibilidade de resolver seus próprios desafios(10-11-12).

Com isso, é possível utilizar esse recurso para minimizar reações de sofrimentos, assim como sentimento de solidão e para reforçar a criatividade e a capacidade em solucionar problemas.

Com a utilização da literatura, a pessoa ganha distanciamento de sua própria dor e aproxima-se de suas questões emocionais a partir de um personagem. Pensar e falar sobre o outro, muitas vezes, é mais fácil do que falar sobre si.

Dessa forma, ela vai identificando semelhanças e diferenças em relação ao personagem da história, aproximando-se aos poucos de suas dores, ativando seus recursos internos, desenvolvendo uma forma de pensar crítica e criativa, diminuindo a sensação de solidão (percebendo não ser a única) e reconhecendo seus conflitos internos.

Com a biblioterapia, é possível desenvolver habilidades de enfrentamento, oferecendo suporte e esperança para a resolução dos conflitos. No entanto, para utilizá-la de forma adequada, é necessário ser afeito a esse tipo de recurso e conhecer e selecionar bem o material a ser aplicado para tal finalidade.

É importante reconhecer a biblioterapia como um recurso, não devendo ser considerada como ferramenta única de intervenção.

Segundo Heath e colaboradores (2005), é importante que se utilizem livros que apresentem em seu enredo uma solução para os problemas e enfrentamento com desafios, evitando super-heróis ou vítimas, características estereotipadas e soluções fáceis e não realistas.

Brenman (2005) sugere que se ofereça às crianças textos que contemplem lutas e conflitos do cotidiano, envolvendo as tristezas, uma vez que fazem parte das emoções universais(10-11-12).

Paiva (2008, 2009, 2011) afirma que a biblioterapia pode ser realizada em conjunto com outras técnicas lúdicas, abrindo um canal de expressão, a fim de lidar com os sentimentos e a temática proposta.

Pode ser aplicada em vários contextos, como saúde, educação, prisões, instituições de longa permanência, comunidades, etc. e com pessoas de todas as idades.

Gutfreind (2005) aponta que a literatura infantil aborda medos, auxiliando a criança a enfrentá-los e dominá-los e tornando-os mais leves.

Segundo Corr (2003, 2004a), vários livros foram publicados nos Estados Unidos com o objetivo de auxiliar crianças no enfrentamento a situações de morte e luto. Nas décadas de 1980 e 1990, a literatura dirigida a crianças sobre essa temática sofreu um aumento considerável(4-5). Marge Heegaard deu início aos seus workbooks (livros interativos) para crianças em situações de sofrimento.

Após o episódio de 11 de setembro de 2001, a Centuring Corporation teve a iniciativa de distribuir livros infantis na costa leste dos Estados Unidos e vários editores uniram-se para prover suporte às famílias enlutadas. Isso validou a importância da utilização desse tipo de literatura em situações de crise e emergência, morte e luto(8-10-11-12).

Como afirma Brenman (2005), os livros dirigidos às crianças agradam pessoas de qualquer idade, pela sua “força, poesia, simplicidade complexa, imagens e força criadora de novas palavras para velhos sentimentos”.

Ao ler e/ou contar histórias, cria-se um momento de intimidade e cumplicidade, que favorece o fortalecimento de vínculo, proporcionando a sensação de não estar só, a percepção de que as emoções não são tão assustadoras, podendo ser controladas e a criação de uma atitude positiva diante da vida(1-2-10-11-12-13).

Atualmente, encontram-se vários livros dirigidos a crianças e a adultos que abordam temas existenciais, inclusive a morte e o processo de luto.

Sobre minha experiência com a biblioterapia

A primeira vez em que utilizei a literatura como recurso terapêutico foi de forma intuitiva, na década de 1980, quando trabalhava no Instituto Central do Hospital das Clínicas/FMUSP, atendendo crianças e adolescentes vítimas de trauma, internados no pronto-socorro. Foi nessa época que descobri Rubem Alves como escritor de livros dirigidos a crianças.

As crianças e adolescentes eram internados, após um evento traumático, em ambiente nada compatível para eles. Por não haver um espaço próprio para atender o público infanto-juvenil no pronto-socorro, ficavam internados nas enfermarias femininas.

Sem ter recursos lúdicos para realizar os atendimentos, eu levava histórias que os fizessem refletir sobre a situação do momento e sobre as emoções envolvidas e, assim, tecíamos o atendimento em meio à imaginação, buscando meios individuais de enfrentamento. Percebi, então, que isso trazia resultados positivos.

A partir daí, comecei a utilizar histórias, em algumas ocasiões, quando considerava pertinente, também com as mulheres na enfermaria. Para minha surpresa, conseguíamos tecer reflexões importantes de enfrentamento à situação adversa, com resultados benéficos.

E assim, com base nessa experiência, passei a utilizar os livros em meus atendimentos no consultório, quando considerava cabível.

Com o tempo e a prática e com estudos sobre morte e luto, comecei a promover workshops para trabalhar situações de luto, atrelando atividades de expressão criativa às histórias selecionadas e vislumbrando outras formas de elaborar questões emocionais, que não somente a verbal.

Para essas atividades, além das histórias, passei a usar outros materiais significativos para trabalhar a temática proposta, tais como músicas, argila, massa de modelar, telas, tintas e aquarelas para pintura, tecidos, retalhos, fitas, linhas e lãs, bexigas, bolhas de sabão e material gráfico para produção de escrita e desenhos (papel, giz de cera, lápis, carvão, giz pastel, etc.), além de fantoches e almofadas dos sentimentos.

Durante a pandemia por Covid-19, além de oferecer suporte emocional a profissionais de saúde que estavam trabalhando na linha de frente e a pessoas enlutadas, realizei várias ações solidárias, que envolveram a biblioterapia.

A primeira delas foi, logo nos dias iniciais de lockdown, organizar um grupo para refletir e discutir sobre o livro Em busca de sentido: um psicólogo no campo de concentração, de autoria de Viktor Frankl. A escolha desse livro deu-se porque o autor escreveu sobre a sua vivência como psiquiatra judeu que esteve preso em campos de concentração durante a Segunda Guerra Mundial, relatando situações caóticas, com muita sensibilidade, e abordando a importância de se ter um sentido para enfrentar condições adversas e o sofrimento.

Escolhi esse livro porque ouvia muitas pessoas referindo que se sentiam aprisionadas durante o período de lockdown.

Nesse momento, formou-se um grupo que se encontrava, periodicamente, de forma remota, para conversar sobre o conteúdo do livro. A partir disso, cada um podia refletir sobre o que aquele conteúdo fazia de eco e de sentido para a sua realidade, o que demonstrou ser enriquecedor para cada participante.

De início, formou-se um grupo com 96 pessoas, de várias localidades do Brasil e, inclusive, com quatro pessoas de outros países. A ideia inicial era realizar oito encontros para discutir o livro, pensando no tempo previsto inicialmente de isolamento social. Ao final desses encontros, o grupo pediu para que houvesse continuidade, pois estavam sendo produtivos para o enfrentamento do momento.

Formamos um grupo no WhatsApp, onde as pessoas compartilhavam reflexões, músicas, poesias, etc., como forma empática de presença e acolhimento.

Quando se esgotaram as reflexões sobre o livro, várias pessoas pediram para que os encontros continuassem. O grupo diminuiu, permanecendo com cerca de 45 participantes, sendo que nem sempre todos estavam presentes em todas as reuniões. Afinal, as pessoas estavam se reorganizando na vida ativa, pois o tempo de isolamento pela pandemia era incerto. Ansiedades, medos, angústias, adoecimentos, mortes e lutos estavam sempre presentes, mas tudo era tratado de forma acolhedora, empática, solidária e sensível. O sofrimento era compartilhado pela sutileza de histórias selecionadas para cada encontro. Para esses eventos, eu utilizava histórias (infantis) curtas, mas que traziam conteúdo e sentido para o momento proposto.

Detalhe importante: esse grupo foi organizado a partir de divulgação boca a boca e, praticamente, ninguém se conhecia. Durante os encontros, percebeu-se que o grupo tornou-se uma rede de apoio, sendo possível enfrentar, de forma afetuosa, tempos sombrios da pandemia por Covid-19.

Ao final desse período, quando as pessoas começaram a retomar o seu cotidiano, o grupo então se encerrou, tomando a consciência de que, quando há solidariedade, o sentimento de solidão diminui.

Além desses grupos, ofereci vários workshops temáticos, com o objetivo de trabalhar questões emocionais em datas celebrativas, como Finados, Dia dos Namorados, Natal e Ano Novo, utilizando a biblioterapia como base.

Dessa forma, pode-se observar, dentro de diversas práticas, a riqueza da biblioterapia, como recurso terapêutico e humanizador.


Lucélia Elizabeth Paiva – Doutora em Psicologia, pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, mestre em Ciências/Oncologia, pela Fundação Antônio Prudente – Hospital AC Camargo e psicóloga.

 

Referências bibliográficas

1 – Bettelheim, B. (2002). A psicanálise dos contos de fadas (16ª ed., A. Caetano, Trad). Rio de Janeiro: Paz e Terra.

2 – Brenman, I. (2005). Através da vidraça da escola: formando novos leitores. São Paulo: Casa do Psicólogo.

3 – Coelho, B. (1986). Contar histórias – uma arte sem idade. São Paulo: Ática.

4 – Corr, C. A. (2003 – 2004a). Introduction to death-related literature for children: A special issue for Omega. Journal of Death and Dying. Omega, 48 (4), pp. 291- 292.

5 – Corr, C. A. (2003 – 2004b). Bereavement, Grief and mourning in death-related literature for children. Omega (48), pp. 337-363.

6 – Gutfreind, C. (2005). O terapeuta e o lobo: a utilização do conto na psicoterapia da criança (2ª ed.). São Paulo: Casa do Psicólogo.

7 – Heath, M. A., Sheenn, D., Leavy, D., Young, E., Money, K. (2005). Bibliotherapy: A resource to facilitate emotional healing and growth. School Psychology International, 26 (5), pp. 563-580.

8 – Johnson, J. (2003-2004). Historical perspectives and comments on the current status of death-related literature for children. Omega, 48 (4), pp. 293-305.

9 – Ouaknin, M. (1996). Biblioterapia. São Paulo: Loyola.

10 – Paiva, L. E. (2008). A arte de falar da morte: a literatura infantil como recurso para abordar a morte com crianças e educadores. Tese de Doutorado. Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo.

11 – Paiva, L. E. (2009). Biblioterapia: um recurso para abordar a morte, perdas e luto, na clínica e na educação. In: Santos, Franklin Santana (org). A arte de morrer – Visões Plurais – Volume 2. Bragança Paulista, SP: Editora Comenius, pp. 150-164.

12 – Paiva, L. E. (2011). A arte de falar da morte para crianças: a literatura infantil como recurso para abordar a morte com crianças e educadores. Aparecida, SP: Editora Ideias e Letras.

13 – Radino, G. (2003). Contos de fadas e realidade psíquica: a importância da fantasia no desenvolvimento. São Paulo: Casa do Psicólogo.