Cantoterapia: uma terapia complementar antroposófica

A cantoterapia antroposófica, fundamentada na Escola Desvendar da Voz, proporciona um trabalho delicado de atenção, escuta, foco e interação paciente-música-terapeuta, de maneira que os elementos musicais (melodia, intervalos, harmonia e ritmo), combinados com as forças formativas dos fonemas (consoantes e vogais), vão trazendo à consciência a quietude e acuidade auditiva e trabalhando musculaturas importantes para a saúde da respiração, saúde vocal e expressão, tanto da fala como do canto, que são processos desencadeadores de transformações, autoconhecimento e autoeducação.

A qualidade da ressonância dos fonemas, juntamente com a dinâmica dos tons, traz a possibilidade de o paciente transcender o seu corpo pesado, resultado de um trauma, estresse ou depressão. O que ressoa a partir dele próprio proporciona um processo de liberação de tensões, de saída do peso do seu corpo físico e de libertação, pouco a pouco, para um espaço mais sutil, mais etérico, revitalizando com consciência e por sua própria vontade e presença em realizar os exercícios com o canto.

Na prática dos exercícios da Escola Desvendar da Voz e na terapêutica antroposófica, num primeiro passo o terapeuta atua diretamente na harmonização e no equilíbrio da respiração, que significa a troca no sistema rítmico (pulmão e coração). É através do pulmão que o corpo físico relaciona-se com o mundo externo, ao inspirar e expirar, como na sístole e diástole para o coração. Além disso, há também uma relação direta com os rins, como na “increção” dos processos pela irradiação renal correspondente à inspiração, bem como na excreção renal correspondente à expiração.

Num segundo passo, desperta-se a atenção para a importância de um resgate e renovação do encontro com a música, demonstrando como ela pode atuar por meio de ausculta refinada, através dos exercícios formados por intervalos específicos e rítmicos. Esse é um passo importante para gerar uma “pré-disposição” interior no paciente.

Num terceiro passo, é feita a escolha dos fonemas que vão ampliar, desenvolver e/ou desvendar a voz em toda a sua amplitude. Os exercícios utilizados na cantoterapia proposta pela Escola Desvendar da Voz atuam verdadeiramente no organismo anímico, vital e físico, a partir de um sistema criterioso de estímulos musicais, elaborados para as necessidades específicas de cada paciente e escolhidos e aplicados por um terapeuta com habilidades e competências desenvolvidas para esse trabalho terapêutico.

A Escola Desvendar da Voz

Trabalho e desenvolvo pesquisas na área de terapia musical desde a década de 1990, quando decidi estudar música à luz da antroposofia e da pedagogia Waldorf, na Alemanha. E, desde 2007, venho trabalhando com Thomas Adam na coordenação dos cursos de formação da Escola Desvendar da Voz no Brasil. Além disso, apresento estudos de caso em simpósios de terapias antroposóficas e em congressos da ABMA (Associação Brasileira de Medicina Antroposófica), trazendo embasamento teórico e aplicação prática da cantoterapia à luz dessa escola.

A Escola Desvendar da Voz foi criada pela sueca Valborg Werbeck-Svärdström (1879-1972). Ela era uma cantora famosa, na época, até que perdeu a voz por consequência de um desgaste físico e da grande exigência artística durante suas viagens e apresentações em companhias de ópera na Europa.

Mais tarde, no período do pós-guerra, enquanto trabalhava com crianças e jovens com necessidades especiais numa escola em Eckwälden, na Alemanha, Werbeck, em projeto colaborativo com médicos antroposóficos, como o Dr. Eugen Kolisko, pode desenvolver e fundamentar um método próprio, que ficou registrado em seu livro “A Escola do Desvendar da Voz – um caminho para a redenção na arte do canto”, publicado pela Editora Antroposófica. Além do livro, ela deixou também alguns manuscritos sobre seu método.

Durante meus estudos na Alemanha, no Instituto de Pedagogia Waldorf, pude conhecer e aprender com um aluno de Werbeck, o músico-regente, pianista e organista Jürgen Schriefer. Cantei em seu coral, em Bochum, no período de três anos em que lá morei. Foi quando tive a oportunidade de conhecer Thomas Adam, que era aluno de Schriefer. E foi com Thomas Adam que trabalhei na implantação da Escola Desvendar da Voz no Brasil, durante 10 anos, na Associação Sagres.

A partir de 2018, a formação oferecida pela Escola Desvendar da Voz no Brasil passou a constituir-se também de um curso de pós-graduação/especialização, oferecido pela Faculdade Rudolf Steiner, onde continuo atuando como docente e coordenadora do curso. Formamos também um colegiado brasileiro, com musicoterapeutas e cantoterapeutas do País. Além disso, contamos com a colaboração de docentes convidados, médicos e euritmistas, pois no currículo do curso há aulas de fundamentação médica, ampliada pela medicina antroposófica, assim como prática de regência e de canto-coral e atividades com movimento, como euritmia e dança. Como pré-requisitos para o término de sua formação, os alunos precisam realizar um projeto social, de pesquisa e um estudo de caso.

Pode-se dizer que a cantoterapia é uma especialidade da musicoterapia antroposófica, mas que chegou ao Brasil antes da própria musicoterapia antroposófica.

A cantoterapia já vem sendo aplicada em vários continentes, em clínicas, hospitais e escolas ou através de terapeutas autônomos. A Escola Desvendar da Voz tem vários cursos de formação espalhados pela Europa, América, África e Japão.

Desde o início dos trabalhos com a cantoterapia, vem sendo desenvolvido um estudo profundo de observação fenomenológica, que continua até hoje, sobre a utilização dos elementos da arte musical, combinados com a atuação dos fonemas, com a respiração e com o direcionamento, ampliação e espelhamento do som, que compreendem as três fases do canto no organismo humano, descritas por Werbeck.

A cantoterapia é ainda um campo novo de estudos, tanto que a terceira turma do curso oferecido na Faculdade Rudolf Steiner está concluindo agora sua formação. Sendo assim, precisa ser mais amplamente difundida e estudada.

Cantoterapia e Covid-19: pausa para respirar e cantar

Preciso inicialmente dizer que eu tive um quadro de Covid-19 e pude perceber por experiência própria o quanto a respiração e a circulação são prejudicadas, assim como o sentido do olfato e do paladar. Há um desequilíbrio no corpo calórico, que prejudica também o equilíbrio físico, mental e emocional.

Após o alívio dos meus sintomas de Covid, decidi desenvolver uma proposta profilática e terapêutica com a prática da cantoterapia, denominada “pausa para respirar e cantar”. Trata-se de uma terapêutica complementar com base nos princípios da medicina e das terapias antroposóficas, de Rudolf Steiner e Ita Wegman, e nos fundamentos da Escola Desvendar da Voz. É realizada em grupo, de forma online, para a prática de exercícios profiláticos e terapêuticos musicais com o canto, especialmente indicados para síndromes respiratórias, alergias, medo, estresse e ansiedade. Os exercícios podem ser realizados mesmo por quem não tenha conhecimentos ou habilidades musicais. E embora a finalidade principal seja trabalhar a respiração, acabam irradiando benefícios para todo o organismo.

Amparados em 30 anos de experiência clínica e pesquisa, os exercícios utilizados nessa prática promovem ganho cognitivo e equilíbrio físico, mental, emocional e social. Aplicados de maneira lúdica e artística-musical, envolvem movimento, ritmo, coordenação motora, gestualidade, expressão, respiração e articulação com os fonemas, convidando o praticante a efetuar um trabalho muscular de todo o aparelho fonador e muito mais.

Esses encontros têm também o objetivo de despertar a atenção para a importância de se vivenciar o encontro com a música de um modo atencioso, como numa contemplação da audição, assim como de promover reflexões sobre a relação da música com a saúde.

Precisamos silenciar para poder escutar! Precisamos contemplar para poder auscultar! Vivemos no pulsar do coração e do pulmão, refletindo ritmos cósmicos que nos fornecem clareza para o pensar, entusiasmo para a tomada de decisões e força para o agir.

Efeitos da música e do canto para a saúde humana

A musicoterapia e cantoterapia antroposóficas são vivenciadas pelo fazer e pela audição musical, através de um sistema criterioso de estímulos musicais desenvolvidos para necessidades específicas, que pode ser aplicado individualmente ou em grupo.

Cada detalhe dos elementos musicais, como o ritmo, a dinâmica dos intervalos, as tonalidades maiores e menores e as escalas, tem uma razão de ser, convidando o paciente a criar um ambiente interno de calma e levando-o à auto-observação, autorreconhecimento e ausculta da própria voz interior, isto é, conduzindo-o a um processo de individualização.

Podem-se destacar três importantes aspectos na atuação da música e do canto para o desenvolvimento e saúde do ser humano.

O primeiro deles refere-se aos efeitos sobre a respiração, regulando o sistema rítmico-respiratório-cárdio-pulmonar, responsável pelo fluxo e equilíbrio entre o sistema neurossensorial e o metabolismo.

É preciso ter coragem para RESPIRAR. Medo, estresse e ansiedade têm relação com o processo respiratório e normalmente trazem dificuldades no que se refere à respiração. Isso, por sua vez, prejudica também o funcionamento da laringe e de glândulas, como a tireoide, que é vizinha da laringe.

O sistema rítmico é o meio em que a pessoa efetua a troca com o mundo interno e externo. Se ela tem coragem de se relacionar com o ambiente, troca o ar com os outros. Esse é um fenômeno social e primordial que permite a troca sem que, no entanto, a pessoa se perca no outro. Para isso, é preciso que ela esteja bem presente com o seu EU (self).

O segundo aspecto importante a citar é a reverberação através do licor, que oxigena o cérebro, irradiando da espinha para todo o sistema nervoso central e, a partir daí, estimulando todos os órgãos internos. No ato de respirar, quando a pessoa inspira, ela expande o tórax e aperta o diafragma, que abaixa ligeiramente e irradia para a espinha com esse movimento. Um fluxo no licor sobe então suavemente e oxigena o cérebro. Já, quando ela expira, a caixa toráxica se aperta e o diafragma ganha espaço, subindo, enquanto o fluxo do licor desce da cabeça. Vemos o quanto esses movimentos do inspirar e expirar provocam uma grande circulação e oxigenação em todo o corpo. Os exercícios do canto são vivenciados nessa direção.

O terceiro e último ponto a ser abordado é o exercício da ausculta, que promove o encontro do ser consigo próprio e com o outro. Esse lado social do canto em grupo está, no momento, prejudicado pela pandemia. Porém, é por meio da ausculta fina e observadora que alcançamos sutilezas sobre a nossa própria voz, sobre a maneira como nos colocamos no mundo, ouvimos e respondemos aos estímulos sensoriais e, principalmente, sobre quem somos e como é o nosso som, pois cada um de nós soa e vibra de forma peculiar com a sua própria voz.

É através dos tons que a música se faz audível, no tempo e no espaço, no passado, presente e futuro. É a nossa percepção, por meio do órgão do sentido auditivo, que nos faz entrar em conexão com a realidade dessa dimensão. Exercitamos aí uma mudança de percepção de tempo, espaço e movimento.

E é nessa realidade que temos que pesquisar mais intimamente o que é o som, que qualidade tem a organização desse som e como ele chega e reverbera até nós e o outro. A diagnose da voz revela muito do que e como somos.

O ambiente em que vivemos, cantamos e nos comunicamos também é de grande relevância. Nesse sentido, há de se considerar a poluição sonora que nos rodeia.

É muito preocupante, por exemplo, a altura do som para quem usa fones de ouvido. Os valores compreendidos entre uma audição saudável e o limite da dor para o ouvido humano são de 0 dB e 130 dB (decibéis – unidade de referência utilizada para aferir a intensidade relativa dos sons). A partir de 130 dB já se considera a possibilidade de perda auditiva, sendo que, se a exposição permanecer contínua, a perda auditiva torna-se definitiva.

Ruídos intensos e permanentes podem alterar o nosso humor, trazer dores de cabeça, dificultar a capacidade de concentração, prejudicar o metabolismo e provocar distúrbios cardiovasculares, além de levar à perda auditiva e até à surdez permanente.

Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), o início do estresse auditivo se dá sob exposições a partir de 55 dB. Até aí os ruídos não causam deficiências. A partir daí até 75 dB já podem trazer incômodos, mas ainda sem provocar distúrbios. Mas é a partir de 76 dB que podem causar problemas para a saúde. Acima de 85 dB, dependendo do tempo de exposição, certamente a saúde sofrerá prejuízos.


Francisca Cavalcanti – Musicoterapeuta, cantoterapeuta e Mestre em Música. Docente em cursos de ampliação em Pedagogia Waldorf, desde 2000. Coordenadora e docente do Curso Livre de Formação da Escola Desvendar da Voz no Brasil, desde 2007, na Associação Sagres. Coordenadora e docente no Curso de Pós-graduação em Canto e Cantoterapia, pela Faculdade Rudolf Steiner, desde 2018.