Cuidados com a criança pela perspectiva do ayurveda

Como muitas formas de medicina oriental, o ayurveda é fundamentalmente uma abordagem preventiva do bem-estar, com o potencial de nos colocar em um caminho vitalício em direção à saúde.

Infelizmente, a obsessão da nossa cultura com a velocidade, eficiência e facilidade, eclipsa parte dessa sabedoria que ajuda a nos manter em sintonia com os ciclos das estações e com os ritmos circadianos. Ao preservarmos essa conexão, a força, a resiliência e uma saúde vibrante serão promovidos.

Nesse sentido, as crianças estão em uma posição única para se beneficiar dessa abordagem porque a inteligência natural dentro de seus corpos geralmente não foi alterada significativamente pelos hábitos de um mundo desconectado. Muitas vezes, mesmo quando há desequilíbrios em jogo, pequenas mudanças reacenderão sua capacidade natural de se curar e se desenvolver. O ayurveda Como sistema único de medicina, o ayurveda honra e celebra o indivíduo, entendendo que em cada um de nós há uma combinação única entre os cinco elementos da natureza: éter, ar, fogo, água e terra.

Para facilitar, podemos entender que vata é a combinação entre os elementos éter e ar. Conhecido como energia catabólica, é responsável por todos os movimentos do corpo, tais como o impulso, a criatividade, a conexão, a respiração, a pulsação do coração, o movimento muscular, os impulsos nervosos, a percepção sensorial, a comunicação e a capacidade de experimentar flexibilidade, alegria e mente expansiva.

Pitta é a combinação entre os elementos fogo e água. Conhecido como energia metabólica, é responsável pela digestão e transformação. Por isso, governa o apetite, a digestão, a absorção, a assimilação, a inteligência, o carisma, a coragem e a ambição.

E kapha é a combinação entre os elementos água e terra. Conhecido como energia anabólica, é responsável pela estrutura, coesão, aterramento e estabilidade. Por isso, governa a nutrição, o crescimento, a lubrificação, a regeneração, o equilíbrio dos fluidos, a regulação da gordura, a força, a resistência, a memória e a capacidade de sentir compaixão e contentamento.

Todos os seres são compostos pelos três doshas (vata, pitta e kapha), mas a proporção dessas combinações é diferente em cada pessoa, predominando um ou dois na maioria de nós.

A nossa constituição (prakriti, em sânscrito), que foi estabelecida durante a concepção, pode ser um guia para o processo de autoconhecimento, isto é, um caminho para entendermos o funcionamento do nosso corpo físico (fisiologia e metabolismo), emocional (gostos e desgostos) e mental (caráter, tendências e hábitos).

Mas é importante ressaltar que somos afetados por inúmeras condições (externas e internas) desde o nosso nascimento que influenciam a qualidade da nossa mente e a capacidade do nosso fogo digestivo. Além disso, a atuação do estágio da vida e a mudança das estações impactam-nos constantemente, provocando um movimento natural dos doshas, que se não forem regidos de acordo com o fluxo, podem perturbar o funcionamento do corpo.

Os tratamentos e orientações dentro do ayurveda levam em consideração a gravidade dessa perturbação, ponderando a idade do indivíduo, sua força mental, sua capacidade digestiva e a época do ano.

Por isso, nos apegarmos às tabelas vata, pitta e kapha, que estão disponíveis na internet, para enquadrarmos as crianças pode parecer ser vantajoso à primeira vista, mas verdadeiramente não é. As tabelas podem facilitar o entendimento de associações antes nunca vistas, porém permanecer nelas nos aprisiona e nos impede de observar a verdadeira beleza do movimento da vida, onde cada ser humano é único e assim será com cada criança.

O ayurveda é um darshana, isto é, observação. Dessa forma, este artigo é um convite à auto-observação, à observação das crianças, à observação da natureza e dos ciclos da vida. Com base nisso, será possível dar o segundo passo, que é desenvolver o respeito pelo que foi observado para só então seguir adiante e agir com gentileza e atenção.

A constituição do indivíduo

A compreensão dos traços gerais da constituição de uma criança pode nos fornecer uma pista sobre como apoiar os pontos fortes, saúde e bem-estar e, ao mesmo tempo, ter a capacidade de antecipar vulnerabilidades previsíveis.

Como perceber a manifestação de vata – crianças com uma estrutura mais leve, magras e com um apetite irregular. O cabelo é fino e pode ser fortemente encaracolado e a pele tende a ser mais delicada e com um tom mais escuro. A manifestação de vata é percebida quando a criança gosta de estar em constante movimento e quando apresenta altos níveis de criatividade. Quando há excesso de vata, elas mostram uma tendência a pele seca, resfriados com facilidade, mente preocupada ou ansiosa e dificuldades para dormir e lidar com a constipação.

Como perceber a manifestação de pitta – crianças com constituição física moderada, que apresentam um apetite bastante aguçado. O cabelo é fino e reto e os olhos, penetrantes e nítidos. O cabelo e a pele tendem a ter tons avermelhados, com presença de sardas e pintas. Percebemos a manifestação de pitta na aversão ao clima quente devido à tendência ao superaquecimento, no intelecto aguçado e capaz, na fala articulada e na mente inovadora. Os desafios associados ao excesso de pitta incluem tendências a diarreia, inflamação, pele sensível ou facilmente irritada e uma presença notável de emoções agudas, como raiva e frustração.

Como perceber a manifestação de kapha – crianças com um físico sólido e robusto e com notável força e resistência. Normalmente, têm um apetite moderado e a digestão mais lenta. A pele kapha é espessa, oleosa e muito lisa, enquanto os olhos kapha são excepcionalmente grandes e cativantes. O cabelo é espesso, abundante e frequentemente ondulado. A manifestação de kapha é percebida quando o sono é sólido e prolongado, o corpo possui boa imunidade e a mente é estável e compassiva, podendo manter um nível impressionante de foco por longos períodos de tempo. Quanto aos desafios do excesso de kapha, eles incluem digestão lenta, congestão crônica, letargia, sono excessivo, depressão e excesso de peso.

A influência dos doshas no adoecimento

A construção da doença acontece em seis estágios: acúmulo, excesso e transbordamento dos doshas de suas respectivas sedes, contaminação, interferência e mudança estrutural do tecido contaminado.

As duas primeiras fases podem ser provocadas de forma natural (estágio da vida, estações do ano e o ciclo diário), da terceira em diante, pela prática permanente de maus hábitos alimentares e de estilo de vida.

As orientações descritas neste artigo estão focadas para lidar com o acúmulo e o excesso dos doshas em suas respectivas sedes através do entendimento da influência dos fenômenos naturais, correção dos hábitos e aplicação de ervas simples para estímulo da digestão e eliminação dos excessos de forma orgânica.

Para qualquer desconforto que demonstre ser do terceiro estágio em diante, o tratamento adequado deve ser prescrito pelo médico responsável ou pediatra.

A base da saúde humana é o bom funcionamento da digestão, ou agni. Ter um bom agni significa que a pessoa consegue digerir completamente um alimento, emoção ou pensamento e tem a capacidade de absorver a parte necessária e de eliminar a desnecessária de forma adequada.

O maior apoio que podemos dar ao fogo digestivo em crianças é o alinhamento da dieta e hábitos de vida com os ritmos da natureza. Por isso, no quesito alimentar, deve-se fazer o possível para servir alimentos sazonais e de preferência orgânicos, pois o mundo natural é sábio e o que ele produz no agora é o melhor para manutenção da saúde, isto é, ajusta naturalmente os doshas em movimento.

Para mantermos o fogo digestivo com as qualidades de quente, agudo, seco, leve, móvel, sutil, luminoso e claro, podemos incentivar as crianças a tomar uma xícara de água morna 20 a 30 minutos antes das refeições ou comer uma fatia de gengibre fresco, com 1/4 de colher de chá de mel, um pouco de suco de limão e uma pitada de sal, 15 a 30 minutos antes do almoço e do jantar.

Deve também substituir a ingestão de sucos e refrigerantes por bebericar água durante as refeições, assim como praticar o agradecimento antes de começar uma refeição e comer com atenção, ou seja, sem TV, celular ou movimento. Outra orientação importante é no sentido de que se deixe espaço entre as refeições, de duas a três horas, para uma digestão adequada e que se respire profundamente antes de fazer a transição de uma refeição para a próxima atividade. Também é benéfico induzir uma conexão com as sensações de estar cheio e satisfeito.

Além das recomendações quanto à digestão, outro ponto importante é ensinar as crianças a observarem sua eliminação como um feedback muito direto de seus corpos sobre a ingestão de alimentos e líquidos. A urina límpida e abundante indica que estão bem hidratados, o que é essencial para o bom funcionamento de seus tecidos. Fezes regulares e bem formadas, com odor mínimo, que são facilmente limpas (e que idealmente flutuam) sugerem digestão e função intestinal saudáveis.

Também se pode ensiná-las como é essencial evacuar diariamente ao acordar e até mesmo incentivá-las a relaxar no banheiro todas as manhãs para estimular esse hábito.

Como foi dito acima, não é somente a constituição (prakrit) que deve ser observada, mas também o estágio da vida e a influência das estações na saúde da criança.

O estágio de vida kapha

É fundamental entendermos que a infância é, por natureza, considerada o estágio kapha da vida. Isso ocorre porque kapha está diretamente relacionado à nossa estrutura física e é o principal suporte para todos os processos anabólicos (reservas de gordura, equilíbrio de fluidos, hidratação e nutrição dos tecidos) que ocorrem no corpo.

A beleza do processo de crescimento é que sem esse “booster” inicial seria muito difícil para qualquer ser humano sustentar a vida durante a fase adulta.

É relevante compreender que durante o crescimento (energia anabólica de kapha) da criança, o aumento da vulnerabilidade também pode ocorrer. Pois pela visão do ayurveda, o dosha regente dessa fase possui qualidades como peso, lentidão, frieza, oleosidade, maciez e estabilidade, que no excesso podem causar congestão, tosse, coriza, resfriados frequentes e muco.

Muitos pais e/ou responsáveis ficam aliviados ao saber que não é um problema as crianças adoecerem, pois é um movimento fundamental para construção de um sistema imunológico forte e saudável. Mas não é necessário que sofram de resfriados intermináveis, infecções crônicas ou idas frequentes ao médico.

Por isso, promover um kapha adequado, isto é, na medida correta para o corpo observado, mantém boa imunidade, qualidade no sono e uma mente calma e compassiva.

Portanto, caso kapha esteja acumulado ou em excesso, é necessária sua pacificação ativa, aumentando as qualidades de leveza, nitidez, calor, secura, aspereza, fluidez, mobilidade, sutileza e clareza através da dieta alimentar, estilo de vida e uso de ervas e fórmulas.

As crianças são especialistas naturais em produzir muco, pois ele protege seus tecidos contra a secura excessiva ou irritação à medida que elas crescem rapidamente. Porém, o muco pode deixá-las mais suscetíveis a resfriados, gripes, outras doenças transmissíveis e infecções de muitas variedades.

Para crianças menores, é interessante lubrificar diariamente o interior das narinas com uma pequena quantidade de óleo de gergelim ou ghee, que pode ser aplicada de maneira suave com o dedo mínimo. Já as crianças maiores podem aprender como fazer um enxágue nasal, utilizando um lota, de forma a manter as vias nasais limpas e saudáveis.

Uma dieta balanceada é a maior aliada no combate ao muco excessivo. Para isso, deve-se focar em alimentos frescos e naturais, construindo um prato que contenha em sua grande parte, legumes, vegetais e grãos integrais, optar por alimentos cozidos, servindo-os ainda quentes ou mornos, experimentar utilizar temperos digestivos como gengibre em pó, pimenta do reino, cominho, coentro, canela e cúrcuma e reduzir o consumo de alimentos que aumentam kapha, tais como produtos à base de farinha branca, laticínios e doces açucarados (açúcar branco). Perceba-se que, no mundo moderno, alimentos processados à base de farinha e açúcar são os mais atraentes para os pequenos.

Porém, mais do que todas essas orientações, é importante que os pais entendam que a criança repete o comportamento daqueles que são considerados seus primeiros gurus (ou seja, os próprios pais). Por isso, antes de pretenderem mudar o hábito de seus filhos, precisam observar seu próprio comportamento e mudar primeiro. Só assim a transição alimentar será amorosa e respeitosa.

O estilo de vida também pode contribuir para diminuir o muco excessivo. Manter constante atividade física, principalmente na forma de brincadeiras, melhora a circulação no sangue e na linfa, equilibra os níveis de energia, apoia o fluxo adequado de nutrientes e reforça os mecanismos de desintoxicação em todos os órgãos e tecidos do corpo.

Todas as atividades físicas, inclusive as praticadas em família, reduzem drasticamente a tendência de kapha à estagnação. Os jogos ao ar livre são imprescindíveis para construir um corpo forte com boa imunidade, além de contribuir para o sono adequado.

Outro importante ponto a observar é que se refere às mudanças que acontecem em cada estação do ano. Por não terem sofrido tantas alterações pelo próprio tempo de vida, as crianças são mais sensíveis e suscetíveis às alterações de temperatura, umidade e pressão atmosférica entre as estações do ano.

As crianças tendem naturalmente a desejar alimentos mais pesados e densos nos meses de outono e inverno e apreciarão alimentos mais leves como frutas e vegetais nos meses de primavera e verão. Essa inteligência natural deve ser considerada, pois dentro da perspectiva do ayurveda, o agni (fogo digestivo) fica enfraquecido nos meses mais quentes e se fortalece à medida que a temperatura cai. Por isso, é natural a alteração da fome, ficando mais leve e suave na aproximação do verão e mais aguda, na aproximação do inverno.

Além disso, o final do inverno e início da primavera são as estações que promovem o dosha kapha, pois as qualidades manifestadas na natureza são idênticas à fase da vida da criança. Caso nesse período a criança costume passar por um desequilíbrio agudo de kapha, pode-se incluir a ingestão de mel cru em jejum e utilizar o trio de pimenta do reino, gengibre em pó e pippali em proporções iguais para temperar a comida. Se na primavera, a criança sente menos fome, deve-se simplificar a dieta e retirar o açúcar e os alimentos processados. Nessa época do ano, os corpos denso e sutil estão voltados para uma limpeza interna e a energia acumulada na temporada anterior servirá para protegê-los contra o esgotamento.

A influência da rotina

Dentro da ótica do ayurveda, a rotina diária é de extrema importância para a saúde e bem-estar geral, mais ainda para as crianças. As rotinas criam segurança, estabilidade e confiança para o sistema nervoso, apoiando sua fisiologia para desenvolver hábitos saudáveis.

As crianças precisam de muito mais sono do que os adultos e, embora esses hábitos mudem drasticamente desde a infância até a puberdade, é fundamental que tenham tempo suficiente para dormir.

De acordo com o ayurveda, o sono está diretamente ligado à qualidade do dosha kapha, por isso para melhorar a qualidade do sono da criança, devem ser observadas as recomendações descritas a seguir.

. Evitar jantares pesados, pois o consumo de energia à noite é muito menor. O jantar leve induz a um sono natural.

. Evitar comer tarde da noite, sendo que o intervalo entre o jantar e o horário de deitar deve ser no mínimo de duas horas. Assim a digestão se completa e evita-se a má digestão noturna, que provoca insônia e pesadelos.

. Ter um horário fixo para colocar a criança para dormir. Fazer isso na mesma hora todos os dias vai ajudá-la a ajustar seu relógio biológico.

. Deixar o quarto escuro, visto que um ambiente sem luz promove a produção de melatonina.

. Manter o ambiente limpo e sem barulho e escolher a cor da colcha em tons claros, como azul e roxo, que acalmam a mente.

. Utilizar ursinhos de pelúcia ou qualquer brinquedo preferido, pois isso acalma a mente e deixa a criança feliz. Os pais devem também contar histórias de ninar, escolhendo as não violentas, com boa moral e com finais felizes.

. Se a mãe ainda amamenta, precisa evitar o consumo de bebidas com cafeína, pelo menos três a quatro horas antes de dormir.

. Evitar a exposição à TV e ao celular, pelo menos uma hora antes de dormir. A tela brilhante machuca os olhos e provavelmente o conteúdo assistido também pode estar machucando a mente da criança.

. Ajustar os cochilos diurnos. De acordo com o ayurveda, crianças e idosos podem dormir durante o dia, pois no caso da criança, esse hábito ajusta o sistema anabólico por conta do crescimento e no idoso, recupera a energia. Essa regra é especialmente aplicável durante o verão, quando o dreno de energia é maior. Mas é preciso certificar-se de manter o tempo de cochilo limitado de 45 minutos a 1 hora. Dessa forma, as horas de sono noturno não serão consumidas pelas horas da sesta.

Em casos de insônia, pode-se utilizar a seguinte atuação terapêutica: à noite, uma hora antes de dormir, aplicar algumas gotas de óleo de gergelim no couro cabeludo, testa e pés da criança, fazendo uma massagem suave e circular, com uma leve pressão. Isso relaxa profundamente, acalma a mente e nutre os sentidos.

Quando todas as tentativas citadas acima não surtirem o efeito desejado, e somente nessa situação, pode-se então aplicar a orientação a seguir. Como já foi visto, o sono está diretamente relacionado com o dosha kapha e, por esse motivo, se a criança ingerir alimentos de sabor doce (excluindo os processados e industrializados) e oleosos, isso ajuda na construção de um bom sono.

Com a mesma lógica, o excesso de alimentos picantes irrita os órgãos dos sentidos e gera depleção de kapha, diminuindo as horas de sono. Nesse caso, deve-se considerar reduzir a ingestão de alimentos picantes.

As crianças se dão melhor quando seus corpos podem confiar em comer em horários previsíveis diariamente. O ideal é que suas rotinas alimentares concentrem-se em várias refeições substanciais, servidas aproximadamente nos mesmos horários todos os dias e que forneçam sua fonte primária de nutrição, com um mínimo de lanches entre elas.

A maioria das crianças sente-se bem com três refeições por dia. Entretanto, isso pode precisar ser adaptado de acordo com o tipo constitucional e a força digestiva de cada indivíduo. Algumas crianças precisam comer com mais frequência do que essa ou pelo menos ser suplementadas com um ou dois lanches. Mas é necessário sempre observar se a fome é real ou emocional. Na fome real, não há escolhas ou desejo por alimentos específicos como chocolate, bolo, brigadeiro ou sorvete.

Para estimular a fome real, deve-se fazer o possível para permitir um intervalo, de pelo menos duas horas, entre cada refeição. Isso permitirá que o fogo digestivo processe totalmente o que foi ingerido antes da introdução do próximo alimento. Também ajuda o corpo a desenvolver hábitos saudáveis em termos de regulação dos níveis de açúcar e energia no sangue.

Os pais e/ou demais responsáveis pela alimentação da criança precisam identificar os alimentos saudáveis e os sabores que ela prefere e prepará-los. É interessante incluir as especiarias digestivas (como cardamomo, pimenta do reino, canela e gengibre) em quantidade mínima no preparo da comida. Se a criança rejeitar, a inclusão pode ser feita aos poucos, para que ela se acostume aos sabores.

A influência do cuidado e o valor do amor

Como tradição holística, o ayurveda reconhece que o cuidado com o bem-estar de uma criança é muito mais importante do que o funcionamento adequado de sua fisiologia. Na verdade, as crianças são extremamente sensíveis do ponto de vista energético e emocional. E como primeiros cuidadores, devemos entender a importância da relação do cuidado para a saúde emocional e mental dos pequenos.

A infância é um período delicado tanto para a criança quanto para os pais. Enquanto ela desfruta de seus marcos, sem saber e sem medo dos acontecimentos ao redor, os pais desfrutam da paternidade. É sabido que os primeiros meses e anos de educação de uma criança têm seus próprios desafios, por isso cada aspecto do seu desenvolvimento deve ser tratado com prioridade.

Por esse motivo, deve-se permitir o aproveitamento da infância, onde cada aprendizado é celebrado, independentemente do resultado. Esse comportamento apoia e permite que as crianças reconheçam o amor que sentimos por elas sem barganha.

O valor do amor para uma criança não pode ser subestimado. Por essa razão, é melhor que os pais sejam honestos sobre o fato de não terem todas as respostas, do erro inevitável e da humanidade em sentir emoções como raiva, tristeza, confusão, medo e alegria. Essas atitudes fundamentam o amor que eles sentem por elas.

No primeiro ano de vida, as crianças devem ser protegidas do contato ou toque de estranhos. Nesse período, as funções sensoriais e motoras estão enfraquecidas e em estágio de desenvolvimento. Nessa fase, é preciso evitar o excesso de luz brilhante, objetos vibrantes, sons ásperos e agressivos e exposição a cheiros estranhos e odores fortes que são irritantes. Também é necessário protegê-las de toques prejudiciais, por exemplo, substâncias quentes como o fogo.

A criança adormecida ou em repouso não deve ser acordada repentinamente, nem ter seu sono perturbado. Também não se deve jogá-la para o alto. Isso desenvolve medo e insegurança constantes na mente da criança (que ela não consegue explicar), podendo torná-la tímida. O medo também bloqueia o processo natural de defecar e urinar na criança.

Se ela for teimosa e não estiver pronta para receber uma orientação ou se estiver repetidamente fazendo coisas que lhe foram proibidas, deve ser aconselhada em um tom suave e amoroso ao invés de ser punida ou abusada. O amor e o carinho devem ser confiados à criança. O comportamento rude para com elas as torna mentalmente fracas. E crianças mentalmente fracas tornam-se vítimas de transtornos mentais.

Caso ela seja um pouco maior, é possível introduzi-la nas práticas de yoga para proteção e fortalecimento da mente.

Abhyanga é a prática milenar de massagear o corpo com óleo, o que acalma o sistema nervoso, lubrifica e rejuvenesce os tecidos e promove a circulação saudável por todo o organismo. Não é por acaso que a palavra em sânscrito para óleo (sneha) também significa amor.

Essa prática beneficia tanto o organismo físico quanto as partes sutis da consciência, pois o próprio óleo forma uma capa protetora ao redor do corpo que auxilia a proteger o sistema nervoso e a mente contra as intempéries do dia. Além disso, essa ação fortalece a conexão entre quem aplica a massagem e a criança, estabelecendo uma relação de amor e confiança.

Para fazer a massagem nos filhos, os pais podem utilizar cerca de ¼ de xícara de óleo vegetal prensado a frio (de gergelim para épocas mais frias e de girassol ou coco para épocas mais quentes), aquecido em banho-maria. O banheiro ou outro local em que será feita a massagem precisa estar aquecido para a criança não sentir frio.

Inicia-se a massagem pela cabeça e couro cabeludo. Depois, deve-se descer até a face, pescoço e ombros, fazendo movimentos circulares, com alguma pressão, na direção de dentro para fora. A seguir, massageia-se o tronco, braços (movimento de cima para baixo) e abdômen (movimento circular da direita para esquerda). E, por fim, os quadris, pernas e pés (mantendo sempre a mesma lógica de movimento, de dentro para fora e de cima para baixo). Deve ser dada atenção especial às articulações, permanecendo-se um pouco mais de tempo em cada uma delas.

Em bebês e crianças pequenas, pode-se remover o excesso de óleo utilizado na massagem, antes do banho, com uma mistura de farinha de grão de bico com leite de vaca (na proporção de uma colher da farinha para cada ⅓ de copo de leite). O banho, a seguir, deve ser feito com água morna para quente. Caso tenha sido utilizada a mistura aqui citada para retirar o excesso de óleo, o uso de sabonete comum não será necessário.

Os pais e/ou responsáveis pelos cuidados com as crianças podem ser orientados ainda a usar os preparados caseiros descritos a seguir para auxiliar em alguns processos metabólicos.

O mel, por exemplo, pode ser utilizado para a digestão. Ele oferece capacidade de raspagem e limpeza, enquanto que as ervas aumentam a força digestiva (agni), que elimina os excessos nos doshas. Esse mel temperado é feito com 1/4 de colher de chá de combinações de ervas simples ou mistas, como pimenta-do-reino, canela, cardamomo, gengibre, cúrcuma ou trikatu, misturadas em uma colher de mel cru, devendo ser oferecido à criança de uma a três vezes por dia.

Já, para fazer o mel de gengibre, deve-se extrair o suco de um pedaço grande de gengibre fresco e acrescentar uma pitada de sal. Mede-se, então, a quantidade de suco e adiciona-se o dobro de mel cru, misturando bem. Esse preparado precisa ser mantido refrigerado, oferecendo-se à criança uma colher de chá de cada vez para estimular o agni, evitando a estagnação e promovendo calor e clareza em todo o organismo.

Ainda no que se refere à digestão e absorção dos alimentos, é possível preparar um chá com uma colher de chá de sementes de cominho, sementes de erva-doce e sementes de coentro, fervidas em 500 ml de água. Coa-se e coloca-se em uma garrafa térmica, para ser tomado durante o dia. Ele melhora o metabolismo, aumenta a absorção de nutrientes e reduz os gases, inchaço e indigestão.⁠

Para o trato respiratório, pode-se utilizar um chá de ervas aquecedoras e clarificantes, como gengibre e alcaçuz. E para auxiliar na remoção do excesso de muco é recomendado usar alho e gengibre ao cozinhar, em quantidades generosas. Isso deve ser feito sempre que a criança precisar de apoio extra para limpar o excesso de kapha e fortalecer o sistema imunológico.

O vapor quente também ajuda a liquefazer e limpar o kapha estagnado. Inalar o vapor medicado com hortelã ou gengibre pode ser útil quando as crianças estão com acúmulo de kapha em qualquer parte do trato respiratório.

Aplicar uma gota de óleo de gergelim nas narinas diariamente, previne o acúmulo de muco nas fossas nasais, evitando a sinusite e a rinite. Após a vaporização indicada acima, pode-se experimentar aplicar uma gota desse óleo. Com esse procedimento, protege-se a criança de gripes e resfriados recorrentes.

O óleo de gergelim pode ser aplicado também nos ouvidos. Suas gotas são suaves o suficiente para crianças e podem ser calmantes e relaxantes. Para apoiar ouvidos saudáveis, deve-se usar uma gota desse óleo em cada ouvido diariamente, aquecida à temperatura corporal. O cuidado diário protege o canal auditivo de inflamações recorrentes. Após a aplicação, a criança deve ficar deitada por alguns minutos antes de escorrer.

Outro preparado para se usar nos ouvidos são as gotas de água medicada com alho. Descasca-se um dente de alho, que depois deve ser amassado com a parte plana de uma faca. Deixa-se descansar em uma tigela pequena por 10 minutos. Em seguida, despeja-se 60 ml de água fervente sobre ele e aguarda-se que descanse por mais 10 minutos. Coa-se em um frasco conta-gotas esterilizado. Resfria-se e aplica-se no canal auditivo conforme o necessário para apoiar a resposta imunológica e promover clareza e equilíbrio. Pode-se até encher o canal auditivo e fazer com que a criança fique deitada por alguns minutos antes de drenar. Esse preparado precisa ser usado dentro de uma semana. Depois, deve-se fazer um novo lote, conforme necessário.

É preciso ressaltar, entretanto, que as orientações descritas acima não devem ser aplicadas em caso de inflamação ou tímpano perfurado.

Autoconfiança no cuidado

Os pais devem ser sensibilizados para o fato de que um dos elementos mais básicos para cuidar das crianças presentes em suas vidas é a autoconfiança. As crianças são incrivelmente sensíveis e intuitivas. Elas certamente se sentirão apoiadas quando perceberem que os pais estão à vontade para orientar o processo.

O ayurveda é um shastra, isto é, um campo de conhecimento. E, como medicina, deve ser estudado como tal. Por isso, ainda que o assunto seja completamente novo para os pais, eles precisam ser aconselhados que o fundamental é que confiem em sua própria orientação interior para determinar o que é mais importante para a(s) criança(s) em suas vidas. Além disso, treinar a observação é mais relevante do que saber todos os procedimentos e nomes em sânscrito. A inteligência natural que habita em todos nós pode reconhecer os recursos disponíveis dentro de cada criança. Cada uma será de um jeito, não existe uma fórmula-padrão.

Ademais, os pais necessitam reconhecer que não se trata de fazer as coisas perfeitamente. É sobre fazer o melhor e confiar que isso é o suficiente. Quaisquer ferramentas, por mais pequenas que sejam, poderão colocar seus filhos em um caminho melhor para a vida.

Sendo assim o recado final para os pais é: comemorem os seus corações generosos, deem os primeiros passos que puderem e saibam que as crianças são naturalmente resilientes. Elas têm sorte de terem pessoas como vocês em suas vidas, então abordem cada passo com curiosidade e admiração e aproveitem a jornada.


Luciana Kimi – Terapeuta especialista em ayurveda formada pela Clínica Dhanvantari, terapeuta em Yoga Massage pelo Viavidya Yoga e Ayurveda e facilitadora de processos de revitalização do ser, em atendimentos individuais, em grupo ou in-company.

 

Fontes

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Hebbar, J. V. Your child does not eat well? Causes, Ayurveda solutions.

Hebbar, J. V. How to improve your child’s sleep?

Charaka Samhita Sutrasthana 21/36.

Mischke, M. Ayurveda for kids.