Medicina chinesa: ferramenta valiosa na prevenção e tratamento da Covid-19

No ano de 2019, a humanidade iniciou mais um de seus desafios existenciais: vírus (causadores da doença que mais tarde seria chamada de Covid-19) alastraram-se com toda sua potência e nossos corpos não estavam preparados para lidar com esse encontro, o que produziu, desde então, milhões de mortes, internações hospitalares graves e sofrimento com as síndromes pós-Covid.

Nossos sistemas de saúde, públicos e privados, as autoridades políticas e econômicas, profissionais de saúde, cientistas, cidadãos comuns – todos assistiram atônitos a esse fenômeno e muitas teorias foram elaboradas, tanto na tentativa de explicação do surgimento do vírus, possibilidade de erradicação ou redução da propagação e técnicas de prevenção e tratamento quanto premonições do fim do mundo e/ou da humanidade.

A única ferramenta hegemonicamente conhecida da biomedicina e com grau razoável de eficácia eram as vacinas, utilizadas há mais de 100 anos de maneira compulsória para reduzir os prejuízos à saúde humana causados por determinados vírus e bactérias.

Como é necessário um longo tempo para elaboração de uma vacina com segurança a partir de um vírus novo, a maioria dos especialistas alertava para o fato de que teríamos que conviver com a situação, enquanto não fossem desenvolvidos os primeiros lotes vacinais contra a Covid-19. Nesse ínterim, foram sugeridas inúmeras medidas de redução da propagação do vírus, como distanciamento entre as pessoas, isolamento social, utilização de Equipamentos de Proteção Individual (EPIs – máscaras, principalmente) e reforço na higienização e sanitização gerais. A despeito dessas medidas, os vírus seguiram alastrando-se e produzindo uma letalidade surpreendente.

Será que havia outras alternativas para enfrentarmos esse desafio da Covid? Será que estivemos abertos para novas maneiras de lidar com uma agressão nova e relativamente desconhecida? Será que tentamos efetivamente produzir maneiras criativas de reduzir os danos do vírus? Será que aproveitamos esse desafio para enriquecermos nossa visão sobre saúde-doença? Será que estivemos atentos para outras racionalidades médicas que apresentam jeitos diversos de abordar essa situação ameaçadora, como a medicina chinesa? Será que nos mantivemos em uma postura egocêntrica e pedante de que apenas nossos conhecimentos instituídos seriam capazes de solucionar essa questão, sem estarmos dispostos a ouvir outras vozes, outros modos de pensar e produzir saúde e vida? Será que nossos métodos foram os mais eficazes?

Esse texto pretende demonstrar não a superioridade de uma racionalidade médica sobre outra (a chinesa sobre a biomedicina ou vice-versa). Visa a instigar nossos pensamentos a observarem novas maneiras de abordar questões de saúde e doença, principalmente quando nos deparamos com desafios para os quais não temos respostas e soluções prontas. A pandemia de Covid-19 obrigou-nos a enfrentar a constatação de que, por mais que nossa ciência esteja desenvolvida, há muitas lacunas que ainda não somos capazes de solucionar. Ou mesmo que algumas de nossas receitas de sucesso – a vacinação, por exemplo – precisam de um longo tempo para serem produzidas e, em casos de vírus novos, isso pode custar muitas vidas e muitos sofrimentos!

Interessa-nos que sejamos capazes de aguçar nossos olhares para maneiras diversas e criativas de abordar problemas que enfrentamos cotidianamente e que, assim, exercitemos jeitos de produzir soluções inovadoras quando forem necessárias. É uma oportunidade de abrirmos espaços de diálogo sobre críticas a nossos modos autômatos de responder às questões. Olhar a medicina chinesa não sob a lente da biomedicina que tende a colonizar saberes, mas abordá-la como racionalidade coerente, rica, eminentemente preventiva e que produz caminhos de saúde singulares na relação terapeuta/paciente de acordo com suas idiossincrasias pessoais e sociais!

Medicina chinesa: breve histórico e fundamentos

Para iniciarmos, é mister conhecermos um pouco melhor a medicina chinesa. Há indícios de que ela tenha se desenvolvido há aproximadamente cinco mil anos, porém, os primeiros registros arqueológicos datam do século XVI a.C. Inicialmente, era praticada pelos reis e xamãs e impregnada de religiosidade e superstições, mas, por volta do século VII a. C., inicia-se um esboço do desenvolvimento dessa medicina como instituição separada da religião.

O confucionismo é um dos três pilares do pensamento chinês, junto com o taoísmo e o budismo. A partir de Confúcio, é fortalecida a compreensão de que a etiologia das doenças é devida aos maus hábitos de vida, aos exageros, à indisciplina e à anarquia dos costumes, passando gradativamente do sobrenatural para a ordem natural e, mais especificamente, deixando de ser delegada aos espíritos para se tornar responsabilidade humana.

O confucionismo permanece forte enquanto o taoísmo floresce. A antiga teoria do yin-yang(1) convive com a nova teoria dos cinco movimentos(2), sendo todas essas concepções indispensáveis para o posterior desenvolvimento do paradigma do Qi(3).

O taoísmo(4) considera mais a natureza como um todo indivisível e sem hierarquias, onde o homem não é mais importante que um animal ou uma pedra ou o vento e em que a vida em sociedade corrompe o ser por eleger um gênero específico que deve estabelecer relações prioritárias entre si.

O budismo consolida-se na China, mas parece ter contribuído pouco para a medicina chinesa. Para os budistas, era muito importante a prática cotidiana e disciplinada da meditação e de exercícios energéticos(5) e talvez essas tenham sido suas maiores contribuições para a medicina chinesa.

No século XIX, houve crescente influência da biomedicina sobre a sociedade chinesa, já que a medicina tradicional não foi bem-sucedida em dizimar doenças infecciosas: a vacinação contra a varíola e a chegada da teoria dos germes (com a adoção de medidas higiênicas básicas) foram mais eficazes no controle dessas doenças e ganharam prestígio entre médicos e população leiga. Apesar do relativo sucesso da adoção de protocolos da medicina chinesa para redução dos casos de cólera. A criação da primeira faculdade de biomedicina no país se deu nessa época, o que ajudou a disseminar essa racionalidade pela China. Havia ainda muitos profissionais autônomos que atuavam com a medicina chinesa, mas oficialmente essa prática foi gradativamente sendo desestimulada – o país ficou por dois séculos sem uma medicina oficial hegemônica, nativa ou estrangeira.

Para o chinês, a natureza produz a si mesma sem que haja um ente externo que comande ou supervisione sua criação e reprodução. Isso ocorre de forma impermanente. Há uma substância única que se autoengendra e se expressa de formas diferentes, mas sem se separarem desse todo indivisível. A noção de separação parece ser uma criação da mente humana em seu processo de consciência e racionalidade.

O vitalismo é outro pressuposto dessa racionalidade médica. É a expressão no corpo da capacidade da natureza de se autoproduzir. Esse princípio considera que cada indivíduo possui uma habilidade intrínseca de se regular, uma inteligência própria que permite que os encontros que reduzam a potência de vida desse ser sejam neutralizados até certo limite individual.

Coerente com esses fundamentos da filosofia que embasam a medicina chinesa, o corpo que os chineses traçaram, anatômica e fisiologicamente, constitui-se de aspectos mais densos/materiais e de aspectos mais sutis/imateriais. Nessa concepção, importam mais os fluxos e os processos de produção do corpo do que propriamente sua anatomia palpável de nível mais extensivo. Não que não seja relevante esse corpo material, mas o que é mensurável e quantitativo pressupõe uma rigidez das coisas, pouco coerente com pensamentos menos mecânicos e mais dinâmicos.

A anatomia e a fisiologia incluem sistemas de órgãos (Zang) e de vísceras (Fu), que transformam, produzem, fazem circular e excretar todos os elementos mais densos e mais sutis do corpo. Sob o enfoque da Escola Zang Fu, os sistemas de órgãos são mais responsáveis pela produção, transformação e armazenamento de substâncias como Qi, Jing, Shen, Jin Ye e Xue(6), bem como células, tecidos e órgãos corporais, além dos vapores e humores liberados durante a produção desse corpo. Os sistemas de vísceras são mais responsáveis por receber, digerir, transformar e excretar alimentos e líquidos ingeridos.

Segundo a racionalidade da medicina chinesa, o Qi circula de forma organizada nos seres vivos por meio de canais (Jing) e colaterais (Luo), formando uma trama intricada: a rede por eles traçada é tão vasta e ampla que muitas vezes é considerada como uma área do corpo e não como vasos delimitados. O conceito de Jing Luo é a pedra angular da medicina chinesa e permite desenvolver as noções de fisiologia e os procedimentos terapêuticos (Alterouche e colaboradores – 2000).

Essa rede de comunicação possibilita que o corpo seja estimulado em alguns pontos, como no caso da acupuntura, e seja capaz de autonomamente redistribuir esse estímulo por todos os recônditos não acessíveis diretamente. Além disso, demonstra também a perspectiva da inseparabilidade no corpo e explicita o vitalismo dos indivíduos (Birch e Felt – 2002).

Cada trajeto superficial dos canais principais possui pontos que têm funções específicas. A metáfora utilizada pelos chineses antigos, considerando a importância da água e seus fluxos para a vida nesse planeta, é a de que os canais seriam rios por onde fluem diversos tipos de Qi. Ao longo de cada rio, há portos – os acupontos – que são regiões mapeadas em que ocorrem de forma mais intensa e organizada trocas, abastecimentos de força, descarga de elementos, etc. Nesse sentido, cada ponto da acupuntura possui uma característica peculiar que se remete à sua localização anatômica, ao canal (rio) ao qual pertence e principalmente às ligações que existem nessa região com os demais canais e colaterais dos outros sistemas.

Segundo essa racionalidade médica, os Zang Fu possuem platôs normais de funcionamento e, sob a perspectiva do vitalismo, têm também uma capacidade de autorregulação frente aos encontros que ocorrem com o corpo. Cada ser possui tendências universais (a fisiologia e anatomia dos sistemas não se modifica sobremaneira entre diferentes pessoas) e tendências singulares (cada indivíduo possui suas próprias idiossincrasias e sensibilidades específicas). Tudo está relacionado à circulação de Qi: se o Qi circula de forma harmônica e organizada pelo corpo, o ser permanece em estado de saúde. Se o Qi se rebela, se lentifica ou se agita de maneira excessiva, estagna em determinadas regiões, surgindo sintomas de adoecimento.

Enquanto se experimentam encontros que trazem mais potência de vida (alimentos, atividades físicas, afetos que compõe com esse corpo), os órgãos e as vísceras funcionam dentro de seus limiares de normalidade, oscilando a cada momento, mas sem causar grandes alterações perceptíveis. Quando os estímulos são mais fortes ou mais prolongados do que o vitalismo é capaz de suportar ou quando ocorrem encontros que decompõem com esse corpo, a pessoa começa a apresentar sintomas de adoecimento (tudo aquilo que foge em demasia da normalidade universal e específica do ser). Esses sintomas podem se expressar de forma mais densa (sinais na pele, distúrbios digestivos, etc.) ou de maneira mais sutil (agitação mental frequente, tristeza exacerbada, etc.).

A etiopatogenia da medicina chinesa inclui fatores internos, externos ou mistos. Os internos são as emoções/sentimentos que se tornam compulsivos e estagnados no ser (estados constantes de raiva, tristeza, euforia, etc.). Os externos são provenientes de climas extremos, como vento, calor, frio, umidade e secura. Os mistos consistem na alimentação, atividade sexual, drogas (medicamentos, agrotóxicos, cigarro, etc.), poluição, relacionamentos e outros.

A medicina chinesa possui diversas formas de identificar sintomas de adoecimento. As principais são pela fala (interrogatório), pelo pulso (pulsologia) e pela língua. As demais, por sinais na pele (coloração, manchas, etc.), pela olfação e pela localização de pontos de dor, entre outros, as quais são utilizadas como auxiliares das primeiras. Todas essas formas de diagnóstico pressupõem que o corpo é uma unidade funcional que integra diversos sistemas com suas especificidades (Maciocia – 2007).

Assim como há tendências de funcionamento esperadas para cada sistema, há também disposições peculiares de suas disfunções. Coerente com a teoria da correspondência sistemática, cada parte do corpo expressa o todo, sendo que, na medicina chinesa, foram priorizados alguns espaços particulares de observação e identificação de desarmonias. Cada método diagnóstico pode ser utilizado individualmente e, se bem executado, é capaz de averiguar e identificar o principal sistema afetado e alguns sistemas coadjuvantes no adoecimento. Mas, em geral, são combinadas duas ou mais formas diagnósticas para fortalecer a convicção do terapeuta (Birch e Felt – 2002).

O diagnóstico pela anamnese é o mais difundido. Considerando as respostas e comparando-as com as expectativas que o terapeuta tem do funcionamento/disfunção de cada sistema, são criadas hipóteses dos Zang Fu mais imbricados no processo adoecedor e, assim, as perguntas são mais direcionadas para confirmar ou refutar a proposição inicial.

A pulsologia pressupõe que cada canal principal possui uma pulsação que o diferencia, além de existirem locais no corpo em que a aferição desse pulso é mais sensível. A partir do Nan Jing, foi proposta uma forma mais simples de medição, que efetivamente é usada até hoje, elegendo o canal de Fei, próximo à articulação do punho, para identificar as pulsações específicas de cada sistema. Apesar de haver uma explicação rebuscada, superficialmente é como se o Qi que circula por cada sistema tomasse deles suas idiossincrasias, impregnando-se de suas características funcionais e disfuncionais momentâneas/antigas, sendo possível, nessa região específica do pulmão (Fei), acessar a expressão de cada órgão e víscera. Consideram-se a velocidade, a profundidade e o tipo de movimento que a circulação de cada pulso demonstra (Maciocia – 2007 / Sionneau – 2014).

A língua é mapeada e cada região reporta-se a um Zang e Fu específicos. A observação da língua possibilita diagnosticar disfunções mais crônicas e está menos suscetível às alterações instantâneas. São analisadas forma, cor, umidade, saburra e Shen – o aspecto mais subjetivo, que diz respeito à vitalidade geral da língua, independentemente de suas características específicas, responsável pelo prognóstico do adoecimento.

Os pilares da medicina chinesa compõem-se de cinco grandes feixes de técnicas: dietoterapia e alimentação, exercícios energéticos para a saúde (tai chi chuan, chi kung, meditação, etc.), fitoterapia, massoterapia e acupuntura/moxabustão.

A partir da compreensão filosófica, anatômica e fisiológica, essa racionalidade apresenta um caráter forte de prevenção de doenças e promoção de saúde. A ordem de exposição está coerente com a ordem de utilização dessas práticas: se a doença está em estágios iniciais e mais leves, a dietoterapia é preferida. Mais além, inserem-se nas orientações os exercícios energéticos. Nos casos mais graves, são também prescritas fórmulas fitoterápicas. A massoterapia reforça os resultados anteriores e a acupuntura é utilizada apenas quando as práticas anteriores falharam ou em casos mais fortes (Testa – 2007).

A dietoterapia chinesa é bastante baseada na teoria dos cinco elementos. Nessa perspectiva, cada sistema Zang Fu possui um sabor particular que o tonifica e outro que pode lhe enfraquecer se utilizado em exagero. Há também uma forma de dietoterapia – menos dogmática e mais singularizada para cada indivíduo – que consiste em perceber qual alimento ou grupo de alimentos e preparações produzem encontros que tragam mais potência com cada corpo, sendo que isso pode variar de acordo com o dia, a fase da vida, etc. Se essas escolhas tornam-se conscientes e são feitas antes da pessoa adoecer, o alimento torna-se preventivo. Caso os sintomas já estejam instalados, a dieta adequada pode ser considerada como uma terapia.

Os exercícios energéticos são práticas que visam a expandir e organizar a circulação de Qi pelo corpo, por meio de atividades físicas guiadas por uma respiração consciente e atenção plena. São exemplos o chi kung, o lian kung, o tai chi chuan e outros. Por isso, são utilizados de forma preventiva para que a circulação de Qi mantenha-se dentro de seus platôs de normalidade, mas também como método terapêutico, pois auxiliam a restabelecer o fluxo harmônico de Qi pelo corpo (Sionneau – 2014).

O termo fitoterapia chinesa na verdade é uma tradução imprecisa do chinês para o português, visto que são utilizados produtos dos reinos mineral, animal e vegetal para preparação dos chás medicinais. Consiste em fórmulas muito rigorosas, baseadas principalmente na alquimia taoísta, que misturam inúmeros materiais, cada um com uma função específica para o doente: alguns servem para tonificar o sistema mais acometido, outros para sedar os sistemas que podem atrapalhar na recuperação da doença e outros ainda para mitigar efeitos colaterais dos demais componentes da fórmula (Birch e Felt – 2002).

A massoterapia utilizada na China é prioritariamente o tuiná. Mas há ainda massagens japonesas, como o shiatsu, que também se baseiam nos preceitos da medicina chinesa. Essas técnicas visam a estimular os canais principais, mais superficiais, por meio da pressão de mãos e dedos, para que levem mensagens a seus respectivos órgãos e vísceras no sentido de funcionarem com mais potência e retornarem a seu platô de normalidade de circulação de Qi. A massoterapia estimula todos os canais acessíveis, dando uma dinâmica geral ao corpo.

A acupuntura é um procedimento de inserção de agulhas em pontos específicos dos trajetos superficiais dos canais principais. Cada acuponto possui funções singulares de acordo com sua localização anatômica, sistema ao qual pertence e, primordialmente, conexões que estabelece com os demais sistemas. Ao inserir a agulha nesses pontos, são enviadas informações ao sistema como um todo, no intuito de estimular o vitalismo do organismo a restabelecer seu funcionamento esperado ou saudável.

Há várias escolas e, com elas, diferentes maneiras de escolher e combinar os pontos para um procedimento terapêutico, mas normalmente são escolhidos os trajetos dos sistemas identificados na anamnese como mais acometidos, combinando-os com pontos de seus pares acoplados ou respeitando os canais unitários. Tenta-se sempre estabelecer alguma coerência na escolha dos pontos segundo suas funções (Birch e Felt – 2002).

Assim, considerar a medicina chinesa como um sistema complementar de saúde parece ser um equívoco. Independente da forma como historicamente ela seja utilizada, sozinha ou combinada com outros sistemas de saúde, é importante frisar que ela é prenhe de uma lógica própria e complexa que prescinde de técnicas desenvolvidas por outras culturas. Sua utilização conjunta com outras racionalidades médicas ou terapias não é, portanto, necessária, apesar de poder, por óbvio, facilitar e potencializar os resultados, principalmente se considerada em sua totalidade, com a importância que dá às técnicas preventivas (Tesser – 2010).

É pretensão hercúlea abordar questões de saúde/doença apenas a partir da acupuntura, como muitas vezes vemos atualmente. Ao mesmo tempo, é necessário validar a discussão sobre a qualidade das fórmulas magistrais da fitoterapia chinesa que acessamos no Brasil (Alves – 2017). Temos muitos desafios nessa seara… mas retomaremos, agora, a questão premente da Covid-19.

Medicina chinesa no tratamento de doenças respiratórias de origem viral

O pensamento chinês é bastante prático e pouco afeito a abstrações que não tenham lastro na materialidade da vida. A medicina chinesa é viva, transforma-se a cada momento e teoriza indubitavelmente sobre corpos reais que também são impermanentes.

Esse sistema médico é dinâmico e os saberes descritos em seus livros clássicos devem servir como dispositivos de análise da realidade e não como categorias estanques a serem replicadas “ad aeternun” acriticamente. Assim como tem sido o desenvolvimento histórico da medicina chinesa, repleto de continuidades descontinuadas, ela se mantém como um importante instrumento para utilizarmos na discussão sobre o processo de saúde-doença sempre em transformação.

Há relatos de grande sucesso na utilização de técnicas da medicina chinesa no combate aos efeitos dos vírus respiratórios (SARS, MERS e gripe aviária H7N9) e aumento da capacidade de defesa dos indivíduos. A combinação de fitoterapia, exercícios energéticos para a saúde, acupuntura e moxabustão é a maneira mais difundida nos hospitais de medicina chinesa e centros de pesquisa. Durante a pandemia de Covid-19, muitas dessas técnicas foram utilizadas e vários manuais e protocolos foram produzidos para agilizar os atendimentos e resultados (Fahzu – 2 020). Nosso desafio, no Brasil, está em conseguir fórmulas magistrais de boa qualidade ou utilizar ervas brasileiras para obter resultados semelhantes (Alves – 2017).

A partir desses resultados eficazes, a Organização Mundial da Saúde produziu um protocolo de acupontos indicados para prevenção contra Covid-19, que se baseia principalmente na utilização dos pontos BP6/R6/E36/IG4/PC6 + aurículo SNC/SNV/Rim/Imunidade Anterior/Alegria + Shiatsu + Moxa (Ferreira e colaboradores – 2020).

Outra seara muito profícua em que a medicina chinesa pode atuar é na prevenção e tratamento de distúrbios emocionais produzidos pelo trauma da pandemia e alterações drásticas nas rotinas de vida de trabalhadores da saúde, de profissionais diretamente envolvidos no processo da Covid-19 e da população em geral. Sintomas como medo e pânico, sensação de impotência, tristeza e desânimo e intenção de suicídio, entre outros, podem ser reduzidos de maneira eficiente quando adotadas medidas simples como exercícios energéticos para a saúde diariamente e aplicação de moxabustão em pontos específicos – medidas que podem ser realizadas tanto coletivamente, no ambiente de trabalho, como individualmente nas famílias, tendo um forte cunho de autonomia e educação em saúde (Rios – 2020).

A síndrome pós-Covid tem produzido muitos efeitos residuais da infecção pelo coronavírus e a medicina chinesa tem demonstrado ser uma aliada potente no restabelecimento da saúde e redução dos sintomas dessa síndrome. Apesar de ser necessário pensar procedimentos terapêuticos singulares para cada caso, geralmente tratamentos que envolvem fortalecimento dos sistemas Fei/Pulmão e Pi/Baço-Pâncreas são muito potentes, assim como os exercícios energéticos para a saúde.

Conclusão

A pandemia de Covid-19 confrontou-nos com a percepção de que nossa ciência apresenta muitas lacunas que ainda não somos capazes de solucionar. É uma oportunidade de abrirmos espaços de diálogo sobre críticas a nossos modos autômatos de responder a questões. De olhar outras medicinas, além da biomedicina, como saberes ricos, prenhes de possibilidades!

Neste artigo, demonstramos que a medicina chinesa é um dos campos de exploração e experimentação para produzirmos maneiras mais eficazes de promoção de saúde, prevenção de doenças e sistema terapêutico no que tange à pandemia de Covid-19 e outros tantos desafios que temos na atualidade.

Notas

1 – Yin/yang são as expressões de movimento de todos os corpos do universo, sendo yin os movimentos mais lentos que podem produzir estados mais extensivos/materiais/densos e yang, os movimentos mais rápidos/intensivos/imateriais/sutis. Nesse sentido, yin e yang não são substantivos, não existe “o” yin ou “o” yang,  e sim estados mais yin e estados mais yang.

2 – A teoria dos cinco elementos ou cinco movimentos surgiu por volta do século II a.C. e pode ser compreendida como forças naturais que se sucedem, destruindo umas às outras. Consiste em um sistema de equivalências baseadas em estações do ano, pontos cardeais, cores e sabores, entre outros fatores.

3 – Qi é o que dá movimento e transformação em todo o universo. Seu paradigma concebe que tudo é constituído por Qi, que o universo autoproduz a si mesmo a todo momento e que Qi é a mola propulsora, gênese e gerado, substância única com várias formas de expressão desse movimento constante. O Qi pode se expressar de diversas maneiras singulares. Por exemplo: no corpo humano, há um Qi que é inspirado com o ar, um Qi que se ingere com os alimentos e uma combinação de Qi que se dá no organismo a partir dos processos de transformação fisiológicos (Qi nutritivo, Qi defensivo). Cada forma de expressão de Qi tem suas singularidades, mas não se desprende de sua função primordial de dar movimento.

4 – O Tao pode ser traduzido por caminho ou via, mas reunido com outro ideograma – Tao Te – pode dar a ideia de sucessão cíclica ou poder regulador universal. Tao Te não é uma causa primária (pois nessa concepção, o mundo não foi criado), mas um total eficaz. Importante frisar que há muitas concepções de Tao, mas os escritores taoístas destacam-se por tirar delas toda carga social.

5 – Os exercícios energéticos são práticas que visam a expandir a circulação de Qi pelo corpo por meio de atividades físicas guiadas por uma respiração consciente e atenção plena.

6 – Qi, Jing, Shen, Jin Ye e Xue – essas cinco substâncias constituem o humano e são as responsáveis pela produção e reprodução desse organismo. De forma superficial, o Qi é o responsável pelo eterno movimento caótico do universo e é absorvido pelo corpo por meio da respiração e alimentação; o Jing é a energia ancestral, tudo o que se herda da ancestralidade (familiar e da espécie humana); o Shen é o princípio organizador do universo que se particulariza no corpo no momento da concepção e reduz seu caos; Jin Ye são todos os líquidos orgânicos que compõem o organismo (lágrimas, urina, líquido intersticial, hormônios, etc.) e Xue é o sangue guiado pelo Qi, em movimento, o sangue vivo – também é um líquido orgânico, mas devido à sua importância funcional, é classificado separadamente (ROSS – 2009).


Patricia Stumpf – Nutricionista, pós-graduada em acupuntura, shiatsuterapeuta, homeopata, coordenadora do Curso de Acupuntura da ASBAMTHO – Associação  Sino Brasileira de Acupuntura, Moxabustão e Terapias Holísticas e coordenadora das PICs nas Academias da Saúde do SUS, em Petrópolis, no Rio de Janeiro.

 

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