Uso de cannabis medicinal para distúrbios do sono

A cannabis medicinal tem sido cada vez mais incorporada ao arsenal terapêutico da maioria das especialidades. No Brasil, há vários produtos à base de cannabis disponíveis em diversas formulações, como óleos, cápsulas gelatinosas, tinturas, cremes dermatológicos e supositórios.

São várias as indicações possíveis, incluindo o tratamento de distúrbios do sono. Essa é uma das solicitações mais frequentes pelas quais os pacientes procuram os consultórios, buscando entender se a cannabis medicinal pode ajudar de alguma forma.

Com base nos estudos clínicos disponíveis e na experiência de uso por pacientes com outras patologias e que tinham também distúrbios do sono, hoje já se sabe como a cannabis afeta o sono e quais são os benefícios e os riscos associados à sua utilização.

Consegue-se ainda mapear em que direção as pesquisas estão indo no que se refere às diferentes formas de insônia, como aquela relacionada à apneia de sono, além de saber quais tipos de canabinoides podem ser utilizados com resultados melhores e que tragam benefícios para a indução e manutenção do sono.

No final, o que os pacientes buscam é uma alternativa mais natural do que os indutores de sono e a garantia de segurança do tratamento com o uso de produtos confiáveis com qualidade farmacêutica.

Uma pergunta bastante comum é sobre como a cannabis afeta a arquitetura do sono, ou seja, os ciclos e estágios do sono que vivenciamos todas as noites. Porém, não há uma resposta simples para essa pergunta, pois em grande parte existem vários fatores que entram em jogo, incluindo dosagem, tipos de canabinoides utilizados, horários de tomada e outros elementos da higiene do sono, como iluminação, ruídos, horário de refeições, tempo dos exercícios físicos, uso de telas de vídeo, etc.

Existem pesquisas científicas que abordam amplamente como a cannabis afeta os estágios e os ciclos do sono e como os principais compostos químicos nela encontrados influenciam a arquitetura do sono.

É importante saber mais sobre alguns dos componentes ativos mais significativos da cannabis e entender melhor como manejar os diferentes canabinoides em relação ao sono.

Principais componentes da cannabis e sua influência sobre o sono

Quando se fala sobre cannabis e seu papel no sono, os canabinoides vêm diretamente para o topo da lista de compostos químicos importantes. Existem mais de 400 compostos químicos na cannabis e uma centena de canabinoides conhecidos. Eles têm atraído muito interesse por seus benefícios potenciais para o sono e outras condições de saúde, incluindo depressão, ansiedade, dor crônica, doença de Alzheimer, doença de Parkinson, convulsões e até formas diferentes de suporte a pacientes com câncer.

São três os canabinoides mais conhecidos e estudados com efeitos sobre o sono: CBD, THC e CBN.

O canabidiol, ou CBD, é um canabinoide que promove o relaxamento e não tem efeitos psicoestimulantes. Isso significa que não há “alta” associada a esse composto. Através de estudos clínicos de fase I, hoje se sabe que o CBD diminui a concentração máxima do THC, alongando seu período de ação. Dessa forma, auxilia na diminuição dos efeitos adversos do THC, incluindo seu efeito psicoativo.

Há um conjunto convincente de pesquisas mostrando a capacidade do CBD de reduzir a ansiedade, aliviar a dor, promover foco mental e clareza. O CBD também pode reduzir a sonolência diurna e promover o estado de alerta.

Nos distúrbios do sono, o papel de CBD é auxiliar na manutenção do sono REM, melhorando, dessa forma, a qualidade do sono.

O tetraidrocanabinol, ou THC, é o principal canabinoide psicoativo da cannabis. É o que dá o “barato” associado ao uso de cannabis recreativa. O THC demonstrou ter uma série de benefícios terapêuticos, incluindo o alívio de dor, decorrente de seus efeitos sedativos.

Evidências emergentes realmente interessantes indicam que o THC pode melhorar a respiração durante o sono, o que o torna uma terapia potencial no tratamento da apneia obstrutiva do sono.

O canabinol, ou CBN, é um canabinoide menos conhecido do que o CBD. Parece ter um efeito sedativo significativo, que pode ser aumentado quando ele é combinado com o THC. O CBN também tem propriedades anti-inflamatórias e analgésicas.

O CBN ocorre naturalmente na planta de cannabis à medida que ela envelhece. Isso acontece porque ao longo do tempo – e quando é aquecido ou exposto ao oxigênio – o THC converte-se em CBN. O CBN também pode ser produzido a partir de THC extraído da cannabis.

Até o momento, as pesquisas sobre os benefícios terapêuticos do CBN são muito preliminares. Porém, com o aumento do interesse sobre os efeitos positivos dos canabinoides para a saúde e com a popularidade do CBD, cada vez mais surgem resultados de novos estudos.

Há indícios de que o CBN tem um efeito sedativo significativo. Pesquisas com animais indicam que ele pode prolongar o tempo de sono. Também há indicativos fortes de que os efeitos sedativos do CBN são sinérgicos ao uso concomitante de THC. Porém, ainda são necessários mais estudos.

Além dos canabinoides, há um outro conjunto completo de moléculas que interferem na forma como a cannabis age no corpo e afeta especificamente o sono. Os terpenos são moléculas minúsculas e aromáticas presentes na cannabis e que criam seu cheiro e sabor. Na verdade, os terpenos não são encontrados apenas na cannabis. Eles são abundantes no mundo natural aos milhares e encontrados na maioria das plantas, frutas e flores naturais.

Quando se trata de dormir, geralmente isso significa identificar uma cepa de cannabis que contenha terpenos relaxantes, um equilíbrio de CBD e uma concentração não muito alta de THC.

Efeitos da cannabis nos diversos estágios do sono

Nos mamíferos, o relógio biológico formado pelo núcleo supraquiasmático (NSQ) do hipotálamo anterior é fundamental para estabelecer o ritmo circadiano dos ciclos de sono-vigília. Mesmo em ambientes sem pistas temporais, o ciclo de sono-vigília mantém-se em um padrão de cerca de 24 horas, devido à participação do NSQ.

Esse mecanismo é controlado por duas populações de neurônios mutuamente inibitórios (GABAérgicos e dos núcleos tegmental laterodorsal/tegmental pedunculopontino – LPT/PPT)), localizados na parte superior da ponte e que são a chave para controlar as transições entre sono REM e NREM. Essa informação tem grande relevância para o tema discutido neste artigo, pois nesses locais são encontrados muitos receptores canabinoides – CB1 e CB2.

A arquitetura do sono refere-se à sua estrutura noturna, à medida que ele passa pelos ciclos repetidos e estágios individuais. Uma noite de sono típica de 7 a 8 horas inclui quatro ou cinco ciclos completos. Cada ciclo completo contém dois tipos principais de sono: o não REM (ou NREM) e o REM.

O NREM subdivide-se em quatro estágios diferentes de sono, indo do leve ao profundo. O sono REM é um estágio distinto desses quatro estágios do NREM. Todos os estágios do sono parecem ser, até certo ponto, afetados pela cannabis.

Estágios 1 e 2 do sono leve – a cannabis medicinal tende a aumentar os estágios leves (fases 1 e 2) do sono não REM. Quando o sistema endocanabinoide é ativado, prolongam-se as fases do sono não REM. As propriedades sedativas da cannabis, mais intimamente associadas ao canabinoide THC, bem como a vários terpenos diferentes nela encontrados, auxiliam a reduzir a latência de sono, ou seja, ajudam o indivíduo a adormecer mais rapidamente e talvez aumentem as fases iniciais desses estágios mais leves de sono não REM.

Ao longo de uma noite, o sono leve dá início aos estágios cíclicos de sono mais profundo e de sono REM, com mudanças nas ondas cerebrais, na atividade do sistema nervoso e nos hormônios. Sonhos podem ocorrer durante o sono leve, assim como importantes elementos do processamento cognitivo, incluindo o surgimento de fusos do sono no estágio 2, que ajudam o cérebro a transferir memórias e informações recém-adquiridas e a elevar a solidez (também conhecida como qualidade) do sono. A arquitetura do sono é um equilíbrio de estágios finamente calibrado, cada um servindo a propósitos importantes. Isso é verdade tanto para o sono leve quanto para o sono de ondas lentas e REM.

É no sono NREM que acontecem várias funções do organismo. Endócrina: secreção precoce de hormônio de crescimento (GH), secreção precoce de prolactina (PRL), secreção tardia de hormônio adrenocorticotrófico (ACTH), secreção tardia de testosterona e inibição de hormônio estimulante da tireoide (TSH). Respiração: diminuição regular da ventilação e manutenção do tônus das vias aéreas. Circulação: diminuição eurítmica da frequência cardíaca, diminuição regular da pressão arterial e diminuição do débito cardíaco. Sistema gastrointestinal e urinário: diminuição da função.

Estágios 3 e 4 do sono profundo – embora todo o espectro de pesquisas realizadas até o momento seja um tanto misto, com alguns estudos individuais mostrando que não há mudanças ou diminuição no sono de ondas lentas por meio da cannabis, estudos clínicos importantes demonstraram que ela é capaz de aumentar esses estágios de sono profundo. Essas fases 3 e 4 representam o período em que o corpo engaja-se em seu trabalho mais poderoso de restauração, reparando células e tecidos, fortalecendo a função imunológica e promovendo contribuições significativas para o processamento da memória.

Uma questão que ainda suscita dúvidas sobre os efeitos da cannabis no sono de ondas lentas é: por quanto tempo esses efeitos intensificadores do sono profundo podem durar? Algumas pesquisas indicam que o fenômeno pode não ser duradouro. Ainda não há uma resposta clara para essa pergunta.

Sono REM – tem havido muita atenção aos efeitos da cannabis no sono REM. A cannabis e, em especial, as altas doses de THC reduzem os níveis de sono REM. Esse é o estágio do sono em que o indivíduo tem os sonhos mais ativos e quando o cérebro realiza muito processamento de memória e consolidação de informações adquiridas, bem como o processamento de experiências emocionais. O sono REM pode ser pensado como uma espécie de “limpar a lousa” do cérebro todas as noites, ajudando a prepará-lo para as atividades, incluindo as cognitivas e emocionais, que ele potencializa em todos os momentos da vida desperta.

Supressão excessiva do sono REM não é saudável. De fato, isso é uma verdade em relação a todos os estágios do sono. Mas também é possível ter muito sono REM. A cannabis é agora cada vez mais reconhecida como uma ferramenta terapêutica promissora para distúrbios do sono associados ao sono REM anormal e sonhos perturbadores, incluindo o distúrbio de comportamento do sono REM e PTSD (estresse pós-traumático).

É durante o sono REM que ocorrem as funções de regulação fisiológica descritas a seguir. Respiração: ventilação com amplitude variável, anulação dos reflexos proprioceptivos, anulação do reflexo quimiorreceptor, inativação dos músculos intercostais e redução do tônus muscular das vias aéreas superiores. Circulação: arritmia variável na frequência cardíaca, oscilações irregulares na pressão arterial, oscilações variáveis no débito cardíaco e anulação dos reflexos proprioceptivo e quimiorreceptor. Sistema gastrointestinal e renal: diminuiçao das funções e redução do fluxo de urina. Sexual: ereção peniana.

Como os compostos da cannabis afetam a arquitetura do sono

O impacto que a cannabis provoca na arquitetura do sono é provavelmente influenciado por uma série de fatores, incluindo a composição de cada cepa. Diferentes cepas são compostas por quantidades diversas dos canabinoides THC, CBD, CBN, etc., bem como de outros compostos bioquímicos, como os terpenos.

O THC parece ser o canabinoide que desempenha o papel mais ativo na alteração da arquitetura do sono e no tempo gasto em seus estágios específicos. Ao longo das décadas de pesquisas sobre cannabis e sono, muitos estudos focaram em THC e cepas de cannabis ricas em THC, sendo esse o canabinoide que, em doses altas, está relacionado a reduções no sono REM e aumento do sono profundo de ondas lentas e estágios mais leves do sono não REM. O THC tem efeitos sedativos claros. As cepas de cannabis com teor mais alto de THC geralmente induzem mais o sono. A concentração muito alta de THC pode levar ao torpor no dia seguinte.

Já, os efeitos específicos do CBD sobre os ciclos e estágios do sono ainda não são tão claros. Em parte porque muitas das pesquisas que se concentram na cannabis e no sono incluem cepas com bastante THC, tornando difícil isolar os efeitos do CBD.

Alguns estudos demonstraram que o CBD oferece pouco ou nenhum efeito sobre a arquitetura do sono, mas é importante que se tenha mais pesquisas antes que se possa tirar qualquer conclusão firme.

O CBD tem se mostrado uma terapia promissora para o transtorno de comportamento REM. Em diferentes doses, ele pode ser estimulante ou sedativo. Doses baixas desse canabinoide tendem a fornecer estímulo, enquanto as doses mais altas proporcionam efeitos sedativos ou indutores do sono. No momento, parece que o papel mais potente do CBD em facilitar o sono vem por meio de sua capacidade de aliviar a ansiedade e a dor.

É possível também que a cannabis medicinal traga melhoras em quadros de distúrbios do sono relacionados a outras queixas. Ela pode ajudar pessoas que apresentam certas condições, como dor crônica, transtorno de estresse pós-traumático (PTSD) e esclerose múltipla, a adormecer mais rápido, acordar menos durante a noite e desfrutar de uma melhor qualidade de sono em geral. Um estudo recente descobriu que a cannabis também alivia efetivamente os sintomas de pessoas com síndrome das pernas inquietas (SPI).

Os efeitos proporcionados pelos canabinoides na promoção do sono devem-se às suas interações com os receptores de canabinoides presentes no cérebro. Quando os canabinoides ligam-se a esses receptores, eles enviam mensagens para aumentar os níveis de adenosina promotores do sono e suprimir o sistema de excitação do cérebro. Juntos, esses efeitos podem ajudar os usuários de cannabis a sentirem-se sedados ou com sono.

Indutores naturais de sono e redução no uso de medicamentos

Tal como acontece com outros indutores naturais de sono, é possível que algumas pessoas recorram à cannabis medicinal em um esforço para evitar o uso de drogas mais potentes, como os hipnóticos e mesmo benzodiazepínicos e opioides. Embora possam ser muito eficazes em curto prazo, vários medicamentos para dormir prescritos ou sem receita médica estão associados a riscos de abuso, tolerância ou dependência. Por outro lado, alguns indutores naturais de sono, como a melatonina oral, parecem reduzir a insônia sem efeitos colaterais fortes, enquanto outras opções homeopáticas, como a valeriana, ainda precisam ser mais estudadas.

No Colorado, nos Estados Unidos, foi realizada uma pesquisa em lojas de varejo de cannabis recreativa, entre agosto e outubro de 2016. Os clientes que concordavam em participar recebiam um link para responder à pesquisa online. Todos os que relataram certificação médica foram excluídos. Dos 1.000 consumidores adultos entrevistados, 65% afirmaram consumir cannabis para aliviar a dor e 74% , para promover o sono.

Entre os entrevistados que tomaram cannabis para dor, 80% relataram que era muito ou extremamente útil, sendo que a maioria dos que tomavam analgésicos de venda livre (82%) ou analgésicos opioides (88%) afirmaram ter reduzido ou interrompido o uso desses medicamentos.

Entre os entrevistados que tomaram cannabis para dormir, 84% acharam muito ou extremamente útil, sendo que a maioria dos que tomavam medicamentos sem receita (87%) ou remédios para dormir com receita (83%) relataram ter reduzido ou interrompido o uso desses medicamentos.

O uso de cannabis com indicação médica de fato para alívio desses sintomas era também comum entre os clientes dos dispensários para adultos, sendo que a maioria deles relatou que devido à utilização da cannabis foi possível diminuir o uso de medicamentos.

Numa revisão sistemática de literatura, foi avaliada a base de evidências disponível sobre cannabis e sono, usando os bancos de dados PubMed, Scopus, Web of Science, Embase, CINAHL e PsycInfo. Um total de 14 estudos pré-clínicos e 12 estudos clínicos preencheram os critérios de inclusão. Os resultados indicaram que não há evidências suficientes para apoiar o uso clínico de rotina de terapias com canabinoides para o tratamento de qualquer distúrbio do sono, dada a falta de pesquisas publicadas e o risco moderado de viés identificado na maioria dos estudos pré-clínicos e clínicos concluídos. Provas preliminares promissoras fornecem a justificativa para a realização de futuros ensaios clínicos randomizados sobre terapias com canabinoides em indivíduos que apresentam apneia do sono, insônia, pesadelos relacionados a transtorno de estresse pós-traumático, síndrome das pernas inquietas, transtorno de comportamento do sono de movimento rápido dos olhos e narcolepsia.

Conclusão

Apesar de ainda haver uma escassez de informações científicas sobre esse tipo de indicação de uso da cannabis, com muitos pacientes estudados, grupos de controle, randomização, revisão por pares e publicação em revista internacional de alto impacto, temos visto cada vez mais evidências baseadas no número crescente de pacientes que nos procuram em nossas clínicas para o tratamento de distúrbios do sono, quase sempre associados a quadros de ansiedade, depressão e dores.

Talvez, como resultado da pandemia de SARS-CoV-2, somada ao ritmo frenético cada vez mais acelerado de nossas vidas, estejamos tendo a oportunidade de ver resultados animadores em nossos pacientes, principalmente com a associação de doses corretamente tituladas de CBD, THC e CBN.

Felizmente, já temos disponíveis no Brasil produtos à base de cannabis com quantidades bem interessantes de CBD, THC e CBN, que podem ser prescritos para os pacientes que relatam distúrbios do sono.

A somatória de todos esses elementos resultantes da observação clínica, literatura científica disponível e melhor acesso aos medicamentos à base de canabinoides propicia e indica a realização de estudos mais robustos e replicáveis sobre os efeitos da cannabis medicinal nos distúrbios do sono.


Dr. Wellington Briques – Chief Medical Officer – Instituto Butantan.