Emoções, inflamações, eixo cérebro-intestino e a consciência da homeostase

Conhecer a sabedoria do corpo humano parece-me ser cada vez mais uma atitude feliz, ao levarmos em conta as escolhas que podemos fazer para adquirir e manter uma melhor qualidade de vida.

Lembro-me do quanto gostei de estudar o tema inflamação, microinflamação e doenças associadas, bem como dieta anti-inflamatória, ao cursar Bases da Medicina Integrativa, no Centro de Pós-Graduação do Hospital Albert Einstein, em São Paulo, em 2016.

Na ocasião em que esse tema veio à tona, eu estava vivenciando um processo de inflamação aguda – uma gripe – e meu sistema imunológico “recrutava leucócitos” para combater o agente viral. Sentia-me mais cansada e indisposta, mas sabia o quanto de energia meu organismo estava investindo para que em breve eu retornasse à homeostase. Quando a febre cedeu, encorajei-me a traçar as primeiras reflexões sobre o tema, com direito a um chazinho quente. Agora, retomo esses escritos para aprofundar um pouco mais essas ideias e compartilhá-las com os leitores.

Li recentemente um artigo intitulado O peso do passado, escrito por Christophe André, médico psiquiatra e professor da Universidade de Paris. Ele começa o texto trazendo o termo francês regret, que significa “um estado de consciência penoso, ligado ao passado, pelo desaparecimento de momentos agradáveis”. Nesse sentido, trata-se de um lamento nostálgico de períodos dos quais sentimos falta, como, por exemplo, a infância que passou, uma viagem dos sonhos, amores idos.

Por outro lado, o termo regret pode assumir, em português, o sentido de arrependimento, descontentamento ou mágoa por ter feito algo ou não. E, nesse caso, relaciona-se a emoções de desconforto, como culpa e ressentimento, e a pensamentos insistentes, tais como “por que me deixei levar por isso?”, “se eu soubesse que ia dar nisso, não teria arriscado…” ou pensamentos depreciativos do tipo “como fui ingênuo(a)”, “bem-feito pra mim, quem mandou entrar nessa situação, confiar naquela pessoa e blá, blá, blá…”

Fico pensando o quanto de energia é dispendida pelo nosso organismo com esse tipo de emoções. Essas que dizemos remoer pensando, enquanto nos sentimos corroídos por dentro.

Imagino que se não cuidarmos para sair desse círculo vicioso de um padrão emocional desconfortante e de pensamentos atordoantes, criamos um ambiente propício para as silenciosas microinflamações.

O que me leva a deduzir isso é que permanecer em estados emocionais relacionados a arrependimento, culpa, mágoa e tristeza prolongada gera um processo de estresse, no qual os estressores encontram-se internamente, psiquicamente, na forma de pensamentos e emoções recorrentes, o que provavelmente leva a “um aumento de citocinas pró-inflamatórias pela ativação acentuada do eixo hipotálamo-hipófise-adrenal (HHA) e sistema simpático-adrenal (SA), que secretam hormônios como cortisol e norepinefrina”.(3)

Talvez seja por isso que escutamos dizer que há estimativas em pesquisa afirmando que “a depressão matará mais do que câncer e AIDS (Síndrome da Imunodeficiência Adquirida) no século XXI”.

Embora todos nós estejamos sensíveis em plena pandemia, não falarei aqui a respeito dos óbitos que testemunhamos e sobre as inflamações ocasionadas pela pandemia de COVID-19.

Retomando o foco em depressão, câncer e AIDS, acredito que possamos alterar o rumo das estimativas dessas pesquisas se tomarmos consciência do quanto é possível poupar nosso organismo de desgastes emocionais de longo prazo.

De todo modo, vale destacar que se trata de três doenças que também estão associadas tanto a microinflamações (depressão e câncer) quanto à inflamação crônica (AIDS), ou seja, nosso sistema imunológico ou de defesa, nesses casos, corre o risco de falir, de ter suas funções comprometidas se não houver, de nossa parte, uma mudança na forma de sentir, pensar e agir ou, dito de outro modo, uma mudança significativa de consciência.

Essa mudança de consciência requer atitudes de humildade, coragem, ânimo e disciplina da vontade para adotar novos hábitos ou mesmo fazer adequações no estilo de vida, sem que seja necessária uma transformação radical.

Aqui entram as contribuições da medicina integrativa quanto a exercícios físicos regulares, dieta adequada e práticas salutares capazes de ajudar o organismo a lidar melhor com os fatores estressores e retornar mais rapidamente ao seu estado de equilíbrio (homeostase), tais como meditação, yoga, terapia verbal ou corporal, atividades com linguagens artísticas como música e narração de histórias, etc.

A relação entre cérebro e intestino

Ao citar acima a narração de histórias, lembrei de um episódio ocorrido na época em que trabalhei como pedagoga, no acompanhamento da atuação de arte-educadores em hospitais públicos de São Paulo.

Uma paciente de três anos, internada e acompanhada pela oncologia pediátrica, insistia em fazer aparecer a palavra “cocô” durante uma brincadeira conosco. Se não era “cocô”, era a expressão “cheiro de pum”! Controlar esfíncteres e observar o que se produz, o que sai de dentro de nós, é algo curioso e que chama muito a atenção dos pequenos. Por isso, parece sempre um motivo de conversa e de graça, pois afinal cheiro de cocô e de pum não se disfarça! Existem boas histórias sobre esse tema adequadas a essa faixa etária, como Até as princesas soltam pum(1) e Da pequena toupeira que queria saber quem tinha feito cocô na cabeça dela.(2)

Penso que desde crianças sustentamos “intuitivamente” uma vaga noção da relação entre cérebro e intestino. Uma relação que merece ser melhor conhecida mais à frente em nossas vidas, porque refere-se a uma infinidade de emoções que sentimos.

Não é à toa que escutamos e usamos frases como estas que expressam a estreiteza dessa relação: “’Sentimos cagaço’ ou ‘nos borramos nas calças’ quando estamos com medo. ‘Pedimos penico’ quando já estamos no limite de nossas forças. ‘Engolimos uma decepção’, temos de ‘digerir’ as derrotas e uma crítica negativa nos deixa ‘azedos’. Diante de uma dificuldade, ‘fazemos das tripas coração’ para obtermos algum êxito. Nosso ‘eu’ compõe-se de cabeça e abdômen…”(2)

A citação deixa evidente o quanto nossos estados emocionais associam-se ao processo digestivo e, em especial, à vida do intestino. O que pensar então quando ruminamos pensamentos e emoções relacionados ao termo regret, que resgatei do artigo para iniciar esta reflexão?

Se um dos sentidos de regret está associado a estados emocionais desagradáveis, a uma “consciência penosa”, então nosso cérebro percebe que estar nesse estado é sinal de que “tem um problema a resolver”. Nesse caso, o fator estressor reconhecido pelo cérebro é psíquico, interno, mas não deixa de ser um “intruso ou invasor” (como num processo de resposta inflamatória natural), porque nos faz sair da condição de homeostase. O cérebro, assim, necessita de mais energia e a tomará emprestada sobretudo do intestino.

“Através das chamadas fibras nervosas simpáticas, o intestino é informado de que a situação predominante é emergencial e de que, excepcionalmente, terá de obedecer. De maneira colaborativa, poupa energia na digestão, produz menos mucilagem e reduz sua própria circulação sanguínea. Contudo, esse sistema não é feito para ser aplicado a longo prazo. Se o cérebro informa situações de emergência reiteradas vezes, acaba por explorar a generosidade do intestino. Em um momento como esse, o intestino também enviará sinais desagradáveis ao cérebro – do contrário, a situação não mudará. Desse modo, podemos nos sentir mais cansados ou sem apetite, ter mal-estar ou diarreia…” (2)

Isso tudo nos faz perceber nossa maneira orgânica, sistêmica e integrativa de funcionar. Vale destacar que grande parte da serotonina (neurotransmissor) é produzida nas células intestinais. Quando sofrem alterações, a produção da serotonina pelo organismo fica quimicamente comprometida e isso pode desencadear depressão e transtornos de ansiedade.

Além disso, a sobrecarga do eixo HHA e AS em situações prolongadas de estresse predispõe nosso organismo às silenciosas e perigosas microinflamações(3) e a inflamações crônicas, como síndrome do cólon irritável, colite ulcerativa e doença de Crohn.(2)

Autocuidado, gratidão e saúde

Precisamos ter consciência de que a natureza, do mesmo jeito que faz o organismo operar de maneira integrativa, de modo que a desordem num dos órgãos afeta o sistema orgânico na sua integridade, nos faz também buscar medidas salutares para restaurar o equilíbrio, quando nos damos conta de que estamos submetidos a estresse de longo prazo, a um estado mental desconfortante de regret e a hábitos não favoráveis à manutenção da nossa saúde.

Mudanças na rotina, que envolvem higienização mental e desenvolvimento de atenção e consciência plena, através de práticas como relaxamento, yoga, meditação, etc., dieta saudável que inclua “pratos coloridos” com predomínio de frutas, legumes, fibras e muita água e realização regular de exercícios físicos ao longo da semana, tornam-se medidas valorizadas pela medicina integrativa, visando a obter o melhor da saúde e da cura do ser humano na sua totalidade.(4)

Afinal, é preciso que cada um exercite primeiramente a generosidade para consigo mesmo, através do autocuidado. Perceber o que precisa mudar, escutar o corpo e a mente e empenhar-se em fazer algo diferente em seu próprio benefício. Sem lamentação, sem arrependimento, sem permanência em um estado de consciência penoso ou regret.

Ao invés de escravizar-se em ressentimento, culpa e autocensura, libertar-se com generosidade, acolhimento, perdão e mudança de atitude. E, assim, nosso organismo, em sua homeostase, nos responde com gratidão e saúde.


Dra. Sandra Papesky Sabbag – Doutora e mestre em Psicologia da Educação (PUC-SP), pedagoga (USP) e especialista em Bases da Medicina Integrativa (Hospital Albert Einstein). Tem experiência como docente, formadora de professores, pesquisadora e pedagoga com atuação em hospitais públicos de São Paulo, em projeto cultural com artistas hospitalares. Atua como docente em Pesquisa Qualitativa em Saúde e Medicina & Narrativa, no Centro de Pós-Graduação do Hospital Albert Einstein, onde também orienta a elaboração de monografias. Autora das publicações Cuidados paliativos à luz da perspectiva da multidimensionalidade do ser humano e da vida: articulando saberes das áreas da educação e da saúde (International Journal of Health Management – Edição nº 2/2020) e Cartas de cuidar: correspondências para um mundo melhor (Editora Viseu/2019).

 

Fontes

1 – André, Christophe. O peso do passado. Revista Mente-Cérebro, edição especial, nº 55 – Depressão: como entendê-la e lidar com ela. SP: Editora Segmento, abril/maio 2016, p. 86-91.

2 – Enders, Giulia. O discreto charme do intestino: tudo sobre um órgão maravilhoso. SP: Editora WMF Martins Fontes, 2015.

3 – Gonzalez, Mario Peribañez. O processo inflamatório e sua interface com a prevenção de doenças crônicas. In Lima, Paulo de Tarso R. de (coordenador). Medicina Integrativa. Barueri, SP: Manole, 2015 (Série Manuais de Especialização), p.93-125.

4 – Lima, Paulo de Tarso R. de (coordenador). Medicina Integrativa. Barueri, SP: Manole, 2015 (Série Manuais de Especialização).